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Com apenas 13% do território titulado, quilombo Kalunga sofre novo ciclo de invasões, que ameaçam o modo de vida tradicional

Reportagem
11 de novembro de 2021
11:00
Este artigo tem mais de 2 ano

Às margens dos rios Paranã e Prata, a abertura de uma cerca preocupa João Ferreira dos Santos, conhecido como Joca. O receio é que o fechamento da fazenda Bonito, localizada dentro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, em Goiás, impeça que seus animais, criados livremente pelo território, numa tradição quilombola, não tenham mais espaço para se movimentar e se alimentar. Além disso, 4 mil hectares das terras mais promissoras e agricultáveis da região, em um período de seca, devem ficar nos limites da cerca.

Há quatro meses, uma cerca vem sendo construída para fechar 4 mil hectares de área no Território Kalunga

Na manhã de um sábado de setembro, a informação que nossa equipe está no povoado de Salinas se espalha. Joca se reúne com um grupo de moradores da comunidade e nos aguarda em sua casa. Ele, Valter Sousa de Melo, o Xandô, e Luciano Sena Batista lideram o encontro num rancho coberto com um telhado feito com palhas, tradicional em territórios quilombolas, que protege do sol forte. Os três homens nasceram e foram criados no local, assim como seus pais, avós e bisavós. 

Joca, Xandô e Luciano falam simultaneamente e, diversas vezes, se interrompem, mostrando a urgência em denunciar a mesma preocupação: um trator que, pelo menos desde julho, trabalha na abertura de uma área onde uma cerca será construída, deixando a comunidade encurralada.  

“Isso prejudica a gente que mexe com roça porque eles tão cercando os melhores lugares”, diz Joca, enquanto Luciano adiciona: “Vai ser difícil. Não podemos plantar na beira do rio e, dali pra cima, é só pedra. Não tem local para gente plantar”. Já Xandô, anfitrião do encontro que ocorre no quintal de sua casa, teme pela criação de gado: “Para quem tem animal, se cercarem… Não vai ter condição. Vai ter que vender porque não vai ter como criar. A gente cria tudo solto, desde sempre”.

Os quilombolas praticam agricultura de subsistência e criam seus animais livremente no campo

Pergunto se eles já sentem algum impacto na comunidade e Joca conta que os quilombolas já tiveram que pedir permissão algumas vezes para cruzar o imóvel, que está dentro da delimitação do Território Kalunga. “Tem 35 anos que vivo aqui. Minha avó tem 70 anos, todo esse tempo vivendo aqui. Agora eles querem dizer que a terra é deles?”, questiona o quilombola.

Suposto herdeiro dos tempos paroquiais

Após algumas horas de estrada de terra, sem cobertura de telefone celular por todo o trajeto, uma rede de internet Wi-Fi anuncia a chegada ao lugar ocupado: FAZ. BONITO. A única pessoa no local é Juarez Ferreira de Sousa, de 60 anos. O kalunga de Tocantins conta que vive no terreno desde 2009 a convite de Juvelan de Paula e Souza — agropecuarista de Arraias (TO) que, junto com seus irmãos, reivindica direito hereditário sobre as terras.

“Essa foi a época que o Juvelan começou a fazer levantamento da fazenda. Ele disse que a terra era dele e que ele estava na espera do Incra pagar, mas que eu poderia morar nesse local. Ele não me deu a terra”, explica Juarez, que presta serviços como caseiro da propriedade, onde mora. Sobre a cerca, ele afirma que a intenção do patrão é “fechar a fazenda” e retirar os “posseiros” que vivem no local. “Quem não quiser vender a posse para ele, pode ficar à vontade”, diz o gerente de Juvelan. “Mas o único jeito de continuar aqui, dentro da fazenda, é vendendo para eles.”

Juvelan traça a origem da área nos registros paroquiais, quando sua trisavó Joaquina Martinho de Sousa teria adquirido a área — ele seria herdeiro da parte que compete a seu pai, Elano de Paula e Souza, e Juventina José da Costa.  No entanto, há inconsistências nos registros que colocam dúvidas sobre a idoneidade dos documentos, segundo o pesquisador Francisco Bittencourt de Sousa, estudante de antropologia da Universidade de Brasília (UnB) que se debruça na operacionalização da grilagem de terras em Cavalcante, especialmente no território Kalunga. “O primeiro é que os nomes, principalmente da Joaquina, aparecem [com grafias] diferentes”, aponta. “Outro ponto curioso é que não há, nos registros paroquiais, a dimensão da área, o que já seria um indício de grilagem. O documento perfeito para a grilagem é o documento com o nome de uma pessoa, mas que não tem a determinação da área. Onde o documento cair, ele está valendo e, além disso, você consegue ainda ampliar essa área depois e revender muito mais que existe.”

A área da trisavó de Juvelan só foi determinada na Discriminatória, em 1990, onde o imóvel aparece com “duas e meia léguas”, dado que teria sido retirado do inventário de Joaquina. “Mas essa medida não existia antes, nos paroquiais”, lembra o pesquisador. Ele diz que essa linha de transmissão da fazenda Bonito tem imbróglios dos herdeiros de Joaquina, que teriam negociado a terra. “O que era de quem não está muito bem definido. Os herdeiros têm irmãos, mas, muitas vezes, um só negocia. Não sabemos se ele está negociando sozinho ou representando todos.”

Em 2004, o fazendeiro fez a negociação do território com o produtor paulista José Antônio Magri, mas entrou na Justiça e ganhou o direito de rescindir o contrato. Hoje falecido, Magri contestou a rescisão da venda das terras em 2009.

Há pelo menos um ano, o fazendeiro voltou a ocupar o território e construiu uma casa na beira do rio Paranã. Prometeu empregos na região e comprou ao menos duas propriedades na área quilombola. A Agência Pública conversou com uma das pessoas que afirma ter vendido uma casa a Juvelan por R$ 50 mil, pagos em duas parcelas — ainda que a área seja reconhecida como de interesse social para desapropriação por um decreto presidencial de 2009. As negociações estariam sendo efetuadas pelo advogado Antônio Marcos Ferreira.

Em resposta por e-mail à Pública, intermediado pelo mesmo advogado, Juvelan confirmou a realização de picadas com largura de 8 metros, “a fim de evitar incêndios”, e afirmou que a intenção da família é realmente cercar a área, “com respaldo na documentação que temos e na compra de alguns posseiros que lá residiam há vários anos”. Ele afirmou ainda ter obtido, em maio, autorização da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás para a abertura da área, com validade de cinco anos. “Tudo isso sem prejudicar nenhum ocupante, nem ‘calungueiro’ e nem proprietário de qualquer modalidade”, disse. 

Ele afirma que a informação de que as futuras cercas prejudicariam a comunidade quilombola é falsa, “oriunda de pessoas inconsequentes e ignorantes”. “É por demais sabido que a Comunidade Kalunga não ocupa e nem conseguirá ocupar nem 1% das terras que consta no bendito decreto”, afirma o fazendeiro, com argumentação semelhante aos de opositores da demarcação de terras indígenas e quilombolas.

O agropecuarista citou ainda que o Decreto 4.887, de 2003, que regulamenta a titulação de áreas quilombolas, determina que os imóveis rurais só perdem a propriedade após o efetivo pagamento das indenizações. O problema é que o fazendeiro de Arraias não é o único que alega ser dono da fazenda Bonito: dos 256 processos de desapropriação que tramitam no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) relacionados ao Território Kalunga, ao menos 35 processos reivindicam imóvel com o mesmo nome.

Em 2011, o então superintendente regional do Incra Marco Aurélio Bezerra da Rocha reconheceu, em um ofício, “inúmeros conflitos e sobreposições de matrículas, além de graves inconsistências” no registro dos imóveis no território quilombola. De acordo com o documento, existiam, naquele momento, cerca de 350 mil hectares de terras registradas no quilombo, sem contar as áreas devolutas do estado de Goiás, que somam cerca de 90 mil hectares — quando, na verdade, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga tem 262 mil hectares de extensão. 

“Para piorar a situação, em geral esses imóveis não são demarcados no campo, não possuem cerca de confrontação e, via de regra, nem sequer seus ditos proprietários sabem onde estão situados os imóveis. Outras vezes, as cercas existentes são recentes, construídas por força desses documentos de registro, em conflito com os posseiros antigos, em geral os próprios kalungas”, diz o texto assinado pelo superintendente do órgão. 

Em 2014, a fazenda Bonito tinha 150 matrículas e transcrições, documentos que comprovam posse, a maioria com áreas sobrepostas e dezenas apresentando formatos de polígonos perfeitos em uma região montanhosa do cerrado, cortada por rios e vales. Este número foi levantado por uma cartorária, que expôs uma rede de interesses de empresas e fazendeiros nas terras quilombolas. 

Cartório sob suspeitas

Descrita por colegas como uma mulher “idônea” e “muito correta”, Luslene Veloso não sabia o quanto sua vida mudaria ao aceitar uma transferência de trabalho. Ela concordou, ainda receosa, em encontrar a equipe da Pública em Cavalcante — município que deixou temendo retaliações, após exoneração depois de uma década dedicada ao cartório da cidade. A máscara preta que usava no encontro, devido à pandemia da covid-19, ganha uma dupla função de proteção: contra o vírus e por privacidade. “Muita gente não conhece meu rosto, me imaginam muito diferente do que sou”, explica. Por isso faz um pedido à reportagem: sem fotografias.

Luslene chegou ao cartório de Cavalcante em 2009, no período de intervenção. Naquele momento, o cartório da cidade já estava no radar da Polícia Federal e dois funcionários eram investigados por indícios de fraudes e atividades irregulares. Luslene notou, então, dez matrículas que, mesmo com proprietários diferentes, tinham a mesma descrição territorial. Todos os imóveis chamavam Bonito.

Intrigada, ela e sua equipe decidiram investigar os registros do imóvel. Na época, eles levantaram 64 transcrições e 86 matrículas originárias da fazenda Bonito, a maioria com áreas sobrepostas. “Observamos que, somando todas as áreas dos imóveis com a denominação Bonito, o total dava quase 50% da área do município”, lembra a cartorária. “Fizemos isso por conta própria, para nos prevenir e nos precaver.”

Entre as matrículas levantadas por Luslene, há dez que têm origem em aquisições de áreas de Abraão Simão da Silva e que, por sua vez, deram origem a outros documentos. Abraão havia assinado a primeira transferência no cartório da cidade de Nova Roma em 1967. No entanto, havia um problema: sua certidão de óbito atesta que ele havia falecido quase três décadas antes, em 1940. 

Na lista de supostos proprietários da fazenda Bonito, estão empresas que adquiriram parte do território e deram as terras como garantia a empréstimos e financiamentos em instituições bancárias, segundo a pesquisa de Luslene.

Entre as empresas que entraram com pedido de indenização está o grupo Dinâmica, com três áreas, uma delas com origem no espólio de Abraão. O valor total estimado em pagamento de indenizações para a empresa é de pouco mais de R$ 7 milhões, em valores de 2014. Duas das áreas que a empresa reivindica, as glebas 3 e 4 da fazenda Vista Linda, foram cedidas aos quilombolas em 2015.

A empresa do ramo de serviços pertence à família Pedrosa, tradicional do Distrito Federal. O grupo é conhecido por prestar serviços de limpeza e conservação em órgãos oficiais. O clã também é conhecido na política: Eliana Pedrosa (Pros) foi deputada distrital e chegou a concorrer em 2018 como candidata ao governo do DF; seu sobrinho, Eduardo Pedrosa (PTC), tem mandato como deputado distrital até 2022. Eles não integram a direção das empresas. A Pública entrou em contato mais de uma vez com advogados que representam a Dinâmica nos processos indenizatórios, mas não obteve resposta até esta publicação. 

Com o rigor da nova equipe no cartório, a pressão aumentou e dezenas de pedidos de regularização de documentos chegavam com urgência, lembra Luslene, principalmente envolvendo a fazenda Bonito. “Eu tinha preocupação de entender o histórico de cada imóvel”, ela conta. “Mas comecei a ter problemas porque os protocolos dos registros imobiliários têm prazos e às vezes não era possível fechar os relatórios dentro deles. As partes interessadas pressionavam muito. Até que entendi que a pressão que sofremos era proposital, para não percebermos detalhes que havia ali.”

“Comecei a observar que a fazenda Bonito estava sempre em evidência, com áreas gigantescas e que empresas compravam. Mas, quando fazíamos o retrocesso dessas aquisições, não chegamos a lugar algum. Não tinha uma origem”, denuncia a cartorária.

De acordo com a ex-funcionária, advogados e supostos proprietários ofereciam propinas para o cartório “dar um jeitinho” em documentos comprobatórios de posse. “Tudo funcionava assim: eu pago e você faz. Eles diziam ‘eu preciso de tal documento, quanto custa?’. Mas a pergunta não era sobre o valor para a emissão do documento, era a constituição de um documento. Isso sempre aconteceu com a fazenda Bonito”, afirma.

Em 2012, Luslene conheceu o então presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK), Vilmar Souza Costa, hoje prefeito de Cavalcante pelo PSB. No encontro, ela viu pela primeira vez o desenho que definia o perímetro do sítio histórico e percebeu que a fazenda Bonito, alvo de tantos processos irregulares no cartório, estava inserida no território quilombola. “Naquele momento, eu entendi que a especulação não era mais para compra e venda, mas era para esquentar a documentação que seria juntada nos processos de desapropriação e receber indenização.”

Em junho de 2014, a cartorária enviou à Justiça um pedido de providências. No texto, ela relata o dia a dia de irregularidades no cartório e sentencia: “Só tem dois caminhos: não ‘fazer’ ou dar um ‘jeitinho’, vicioso ‘jeitinho’, como costumavam fazer outros registradores”. Um mês depois, em julho de 2014, a então juíza substituta da comarca de Cavalcante, Priscila Lopes da Silveira, bloqueou matrículas relacionadas ao imóvel Bonito.

Com a decisão da magistrada, novas matrículas, novas transmissões de posse ou alterações no teor de matrículas antigas foram suspensas — o que aguçou ainda mais as tensões em torno do cartório. “A partir daí começou confusões, brigas e ameaças”, lembra. “Eu tive uma situação constrangedora em um restaurante em Cavalcante, onde um cara me ameaçou por causa de um documento e me disse: ‘Eu sempre consegui o que quis nesse cartório’. E era uma pessoa conhecida na cidade, sempre estava lá no Fórum, mesmo prédio em que o cartório funcionava antes. Então era percebido que era uma prática comum, que havia ‘clientes’ que vinham buscar esses documentos.”

Ela relata intimidações ainda mais graves: “Já estive com pessoas no cartório com um revólver em cima da mesa e que chegaram para ver o livro [de registros]. Eu neguei, porque eles não tinham autorização nenhuma, mas fui obrigada a mostrar os documentos”.

As ameaças contra Luslene, ela relata, se transformaram em denúncias na Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás e em mandados de segurança contra ela e o cartório. “Isso foi tomando uma repercussão e desgastando muito minha equipe”, conta a ex-funcionária. Em 2019, Luslene foi exonerada do cartório.

Em 2020, o novo juiz da Comarca de Cavalcante, Rodrigo Victor Foureaux, reiterou a decisão do bloqueio das matrículas, que continua em vigor. De acordo com o magistrado, o cancelamento das matrículas não foi considerado viável pela “garantia do contraditório e a ampla defesa dos interessados”.

“Revelou-se mais razoável que as matrículas permaneçam bloqueadas e os interessados deverão providenciar regularizar suas propriedades em ações judiciais próprias, indicando no polo passivo todas as pessoas que constam como titulares de matrículas que tenham a mesma área, uma vez que o perito já indicou no laudo que há sobreposição de área e que a soma das áreas das matrículas correspondem a 4,17 vezes mais o que consta dos títulos paroquiais”, disse Foureaux em nota enviada à Pública

O juiz informou também que um inquérito policial foi aberto para apurar irregularidades no registro de áreas do imóvel Bonito pelo cartório e identificar os responsáveis.

Ação no MP pede saída de invasores do território

A situação de insegurança jurídica sobre o território é uma porta de entrada para ocupações irregulares no quilombo. Neste ano, a diretoria da AQK notificou duas vezes o Ministério Público Federal (MPF) sobre as recentes invasões, em março e em abril. Em agosto, a associação  enviou um documento também ao Incra noticiando os conflitos, inclusive a ocupação por Juvelan de Paula e Souza. À reportagem, o órgão afirmou que fez vistoria no local e notificou o fazendeiro. Além disso, informou que existe uma ação de reintegração de posse em trâmite na Justiça.

Também em agosto, o MPF ajuizou uma ação civil pública pedindo a reintegração de todas as áreas invadidas nos limites do quilombo. O órgão pede também a atuação da União, do Incra e do estado para avançar nos processos de titulação do território. Em paralelo, um procedimento foi aberto para averiguar exclusivamente denúncias relacionadas à fazenda Bonito, sem conclusão dos trabalhos.

Em entrevista à Pública, o procurador da República Daniel César Avelino, autor da ação civil pública, afirmou que os supostos proprietários, ainda que com direito à indenização da área, não podem avançar sobre o território quilombola. E benfeitorias só podem ser feitas em propriedades com processos em andamento, como reparos ou manutenção.

O procurador Daniel Avelino ajuizou uma ação civil pública para impedir as invasões no quilombo

“Ele [o suposto proprietário] não pode aumentar a área de produção, com referência à época em que aquela área foi delimitada para fins de indenização. Ele não pode plantar ou avançar sobre novas áreas, fazer desmatamento ou aberturas de áreas. E é isso que está acontecendo. Quando se faz isso, está se avançando contra os direitos daquelas comunidades, diminuindo o aproveitamento econômico florestal da área”, alertou Avelino.

O procurador da República considerou também que transações de compra e venda de posses, na delimitação do quilombo, seriam irregulares. “A partir do momento em que você tem a delimitação de que aquela terra é da comunidade kalunga, qualquer aquisição que se faça no território é uma aquisição de má-fé e, então, você não pode considerar ela para fins jurídicos, nem de indenização nem de permissão que haja ampliação da ocupação da área. Ainda que haja o pagamento, isso é irregular”, avaliou.

A demora em finalizar os processos de titulação é, para Avelino, a origem dos conflitos fundiários na região. “Se o território estivesse totalmente regularizado e o Incra estivesse cumprindo seu papel constitucional, provavelmente não haveria nem 2% dos conflitos que a gente vislumbra na comunidade hoje”, argumenta. Segundo ele, por causa da morosidade do órgão, juízes têm arquivado processos indenizatórios com o argumento de que o decreto de desapropriação assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2009, teria caducado. 

À Pública, Juvelan utilizou o argumento de que o texto perdeu a sua vigência por não ter sido concretizado no prazo legal de dois anos e informou que, em agosto, entrou com uma Ação Declaratória de Caducidade na Vara Federal de Formosa. O agropecuarista informou ainda que pretende ingressar com ações para anular títulos falsos em relação à fazenda Bonito. “Em nossa documentação não existe nenhuma falha, sequer nulidade, grilagem ou ‘arranjos’ que porventura tenham ocorrido naquele cartório”, disse o fazendeiro. 

Já o Incra afirmou que o território demanda articulação entre os governos estadual e federal para promover a regularização fundiária. “Também é necessária disponibilidade orçamentária e financeira para avaliar imóveis rurais particulares e ajuizar ações desapropriatórias”, completou o órgão. Em 2021, o orçamento do Incra para executar ações que envolvem a regularização fundiária de territórios quilombolas em todo o país é de R$ 286 mil — valor 166 vezes menor que os R$47,6 milhões empenhados em 2012, ano em que o órgão teve o maior montante de recursos disponíveis para execução do processo desde 2004.

Direitos em retrocesso

A ação civil pública do MPF deve ser apreciada pela Vara Federal de Formosa. Em caso de deferimento, a União e o estado serão obrigados a apresentar um plano para regularização fundiária do quilombo.

No Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Edson Fachin tomou decisão semelhante em agosto. Fachin pediu à União a apresentação de um cronograma de trabalho e de orçamento para a regularização de todos os quilombos do país. A advogada kalunga Vercilene Dias, uma das autoras da ação no Supremo, representando a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), explica que a ação pedia a proteção e segurança das comunidades durante a pandemia de covid-19, o que passa pela regularização fundiária. A União recorreu da decisão.

“A gente está em um contexto de retrocesso dos direitos quilombolas. E não só pelas invasões dos territórios, mas também pela própria postura do Incra. Estamos passando por um processo revisional”, afirma a advogada, primeira mestranda em direito quilombola do país. “Essa demora fez essas invasões ocorrerem e os fazendeiros voltarem às propriedades para garantir as indenizações que eles alegam ter direito. E, para isso, eles destroem, desmatam e cercam.”

Para o pesquisador Francisco Sousa, além do impacto ambiental, a grilagem de terras traz prejuízos econômicos e, principalmente, sociais. “Os invasores entram no território observando os quilombolas, dizendo que a terra não pertence a eles. Isso vai criando um regime de medo, de pavor, criando dúvida sobre a própria etnia, que é o que unifica as pessoas naquele território”, analisa o pesquisador.

Joca, que mora próximo à construção da cerca, teme que o fechamento da fazenda Bonito promova episódios de conflito e violência na comunidade. No início de outubro, os quilombolas barraram o avanço do trator. “Eles querem tomar a terra da comunidade. Mas nós temos medo de eles voltarem de novo.”

Trator trabalha em território kalunga; quilombolas se sentem ameaçados

Indagado sobre o que fará caso a cerca seja realmente construída, ele tem dificuldades de pensar no que fazer se não tiver o território à disposição: “Não sei nem o que pensar, vivemos a vida toda aqui”, diz. Para ele, o problema de quem seria a indenização não é dos quilombolas, que estão há três séculos no território: “Se o documento dele é verdadeiro, ele tem que correr atrás do Incra. Não tem que vir aqui cercar”.

José Cícero/Agência Pública
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Estefânia Uchôa / CMADS
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