Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal encerrou o julgamento da chamada Pauta Verde, como ficou conhecido o pacote de sete ações sobre a gestão do atual governo na área ambiental. Para a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, apesar de “frustrante” em alguns aspectos, o julgamento fez sinalizações importantes ao Executivo, ao Congresso e à sociedade brasileira ao exercer seu papel na garantia do cumprimento do dever constitucional de preservar o meio ambiente.
Co-presidente do Painel Internacional de Recursos do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas, Teixeira comandou a pasta entre 2010 e 2016 durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. À época, o Brasil chegou a alcançar o mínimo histórico de desmatamento, taxa que foi quase triplicada com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. A redução do desmatamento durante sua gestão levou Teixeira a ganhar, em 2013, o Prêmio Global “Campeões da Terra”, da ONU Meio Ambiente.
Conhecida por ter sido uma ministra mais técnica e menos midiática, defendeu a necessidade de “o Brasil estar no futuro e não ser um país do futuro”. De acordo com Teixeira, o país não pode seguir adiando decisões importantes no combate à crise climática, como a regulação do mercado de carbono e a transição energética.
“O Brasil precisa deixar o passado para trás. Se eu quero uma sociedade menos violenta, mais inclusiva e mais sustentável, o desmatamento tem que estar fora da agenda. Se eu quero uma sociedade mais competitiva na agricultura, em uma agricultura que trabalhe a segurança alimentar no mundo, é necessário segurança climática e inclusão social. Não adianta querer discutir uma agricultura que foi modelada 45 anos atrás”.
Para a ex-ministra, a área ambiental soube construir um grande legado nos últimos 40 anos, mas falhou ao não traduzir isso em expressão política. “Nós estamos aprendendo hoje como é quando alguém vem, destrói tudo e fragmenta tudo, o que levou até o presidente do Ibama a se autodeclarar um psicopata.”
Ela também considera que o agronegócio brasileiro tem um papel estratégico para a segurança alimentar no mundo e não deve ser visto como um grupo com uma opinião só. “Não há um agro homogêneo, o que temos é uma expressão política predominante de lideranças ultraconservadoras [do agro] que se traduzem em poder político no Congresso Nacional”.
Confira os principais trechos da entrevista:
Na última semana, terminou o julgamento da Pauta Verde, como ficou conhecido o conjunto de sete ações no STF sobre a política ambiental e a ação do governo Bolsonaro. Interlocutores ouvidos pela Pública avaliaram mal o resultado, considerando que houve mais “atuação” e “espetacularização” do que uma efetiva decisão dos ministros para barrar retrocessos. A senhora concorda?
Eu não diria que foi mau o resultado, eu acho que as pessoas devem entender o processo político, e entender que o Supremo Tribunal Federal dedicou-se à avaliação pelo seu pleno. Isso é uma sinalização política importante. Porém, as pessoas têm uma ansiedade.
O julgamento trouxe contornos constitucionais que foram colocados na mesa. Ao entrar na Corte Suprema, você não lê o mundo só sob a questão ambiental, mas sob as relações das questões ambientais com outros temas constitucionais. O Supremo não julga só a partir do Capítulo 225 da Constituição [que trata especificamente sobre meio ambiente], ele julga na visão de toda a Constituição. As três principais ações, no meu entendimento, foram tiradas de pauta. Ganhamos nos conselhos e perdemos na poluição do ar, que foi uma derrota importante. Na questão da representação do FNMA [Fundo Nacional do Meio Ambiente], o reconhecimento do papel e da legitimidade de representação da sociedade civil foi uma vitória histórica, uma vitória pela democracia, que se refere a algo que este governo fez questão de banir, que foi a interlocução política com a sociedade civil brasileira.
Por fim, acho que houve uma sinalização importante que o Supremo fez em relação ao Congresso. Os contornos dizem exatamente: ‘Olha, tem muita coisa aqui que é inconstitucional, então cuidado com o que vocês estão votando’. Foi um recado político importante sobre a constitucionalidade do que está em discussão em matéria ambiental no Congresso Nacional.
Na sua avaliação, o que se destacou nos julgamentos?
Particularmente, achei a posição da relatora Cármen Lúcia excepcional. Ela fez votos históricos. A posição da relatora é uma posição extremamente importante, como a posição do presidente da Corte Suprema de pautar isso num pacote só. Nós [movimento ambientalista] afirmamos às vezes coisas que não necessariamente são percebidas assim na perspectiva da constitucionalidade, e ela defendeu os interesses da área ambiental em todos os votos dela, todos, sem exceção, e foi afirmativa em mostrar a gravidade das políticas que estão sendo praticadas em um processo disruptivo dos interesses da sociedade brasileira.
Houve alguma decepção com o resultado?
O que pode ser frustrante, eu não digo que terminou mal, mas é frustrante, é o fato de que o julgamento revela três coisas que precisam ser melhor trabalhadas politicamente por todos que se mobilizam. A primeira é dimensão política das análises as quais o Supremo se debruçou. Além da visão constitucional, que é a competência do Supremo, há dimensões políticas por trás, e essas dimensões políticas me parecem que são pouco traduzidas ou pouco claras, ou são vistas a partir de interesses [de outros setores], mas não existe robustez de conhecimento nem de capacidade de interlocução.
A última decisão [ADI 6148], sobre a qualidade do ar, é muito representativa disso. É um tema complexo, um tema cujos interesses políticos e econômicos, alinhados com perspectivas internacionais, mostra a necessidade de entender melhor os interesses em jogo. O Supremo derrotar a relatora na decisão de poluição do ar revela uma complexidade de interesses econômicos, tecnológicos e divisões do setor privado, que também estão respaldados no texto constitucional. Dessa forma, mesmo na derrota, é para mim um amadurecimento político para a área ambiental.
Duas das ações mais esperadas, a ADPF 760 e a ADO 59, que tratam do Fundo Amazônia, não tiveram seu julgamento concluído. A primeira porque houve um pedido de vista por parte do ministro André Mendonça, indicado por Jair Bolsonaro; e a segunda porque foi retirada pela relatora, Rosa Weber, sem dar explicações. De que forma isso prejudicou o saldo final do julgamento da Pauta Verde?
A questão do Fundo Amazônia ter sido retirada pela relatora Rosa Weber é algo que não entendo até hoje. Eu lamento, porque era uma discussão extremamente importante em si, mas também por estar ligada às duas primeiras ações, para as quais André Mendonça pediu vista, e que têm na centralidade a questão do combate ao desmatamento.
No meu entendimento, o pedido de vista revela com clareza que, do ponto de vista político, o que está sendo praticado hoje no Brasil, e o que foi apresentado pelo voto da relatora, está em desalinhamento com a Constituição Federal. Por isso [André Mendonça] pede vista, com argumentos que, na minha opinião, são muito aquém. São argumentos defensivos, não estratégicos. Tirar o Fundo Amazônia de pauta e pedir vistas de ações centrais, na urgência de uma reorganização do plano de combate ao desmatamento, quando o Brasil continua entregando aumento de desmatamento e destruição da floresta, são ações contrárias ao interesse da Constituição Brasileira, da soberania brasileira e dos interesses dos brasileiros. No meu entendimento, pedir vistas é proteger isso [a destruição do meio ambiente], a não ser que volte muito rápido, e não há nenhuma sinalização de que isso possa vir à Corte antes das eleições.
Na sua avaliação, o papel de garantir justiça climática e justiça ambiental no Brasil também é do Judiciário? Se sim, os atores estão cumprindo com os deveres?
É de toda a sociedade brasileira. É do Executivo, do Legislativo, do poder moderador, que é o Ministério Público, e do Judiciário. É um papel de todos nós, cidadãos. As nossas atitudes individuais e coletivas são determinantes sobre um processo de justiça climática e justiça ambiental. As nossas escolhas como consumidores são determinantes, as nossas escolhas como empresários também são determinantes. O Brasil será um país mais justo e mais inclusivo do ponto de vista climático, ambiental ou socioambiental a partir de uma vontade expressa da sua sociedade e de uma pressão legítima pela democracia e suas instituições.
Se o Congresso vota na direção contrária, existe um Judiciário para garantir a constitucionalidade e existe um Executivo para vetar. E teria que ter uma opinião pública pela mídia e pelo Ministério Público para defender os interesses da sociedade brasileira. O que nós temos hoje é exatamente a desarrumação disso. Hoje não temos um Ministério Público Federal que defenda a sociedade brasileira, ele defende alguns interesses. Existe um contexto muito tumultuado no Brasil.
A senhora afirmou em entrevista ao UOL que o Brasil deve seguir a agenda do futuro e não do passado. O que é essa agenda do futuro?
É sobre o Brasil estar no futuro e não o Brasil ser um país do futuro. Um país do futuro é um país que adia suas decisões e vai pensar no futuro intangível, já o Brasil no futuro é entender como é que o futuro está vindo hoje. No futuro do Brasil, o mundo terá que lidar com a crise climática, ambiental e da poluição, a tripla crise ambiental. O Brasil precisa lidar com isso, tem que entender o seu papel nisso. Não adianta falar que você tem emissões históricas de 3%, porque não estamos vivendo no passado.
A sociedade brasileira é signatária do acordo de Paris, então deve se comprometer, sim, com a mitigação, adaptação e resiliência. O Brasil precisa discutir isso hoje para saber como suas vantagens comparativas serão competitivas no mundo de baixo carbono.
O Brasil precisa deixar o passado para trás. Desmatamento é uma agenda do passado, mas insistem em trazê-lo no presente. O desmatamento não está no futuro, ele não deve estar no futuro, porque é crime, é corrupção. Se eu quero uma sociedade menos violenta, se eu quero uma sociedade mais inclusiva e mais sustentável, o desmatamento tem que estar fora da agenda. Se eu quero uma sociedade mais competitiva na minha agricultura, na agricultura que trabalha a segurança alimentar no mundo, ela também tem que trabalhar a segurança climática. Não se trabalhará segurança alimentar no mundo no futuro sem segurança climática e sem inclusão social, e não adianta querer discutir uma agricultura que foi modelada 45 anos atrás.
O Brasil e o mundo terão que lidar com os efeitos da guerra, da recessão, da pandemia e construir soluções ao mesmo tempo, pois as decisões precisam ser tomadas agora para que em 2025 ou 2040 estejamos em um futuro descarbonizado. O Brasil tem que adicionar uma descarbonização com inclusão. Esse é o meu mote para o Brasil.
Muito se fala do “agro” brasileiro, cujos interesses seriam contrários às intenções de quem defende a pauta ambientalista e climática. Na sua avaliação, falar no agro como um só pode atrapalhar essa luta? De que forma?
Falar do agro como um só não traduz o que o agro é. É preciso enxergar o agronegócio com seu papel estratégico de segurança alimentar do mundo, pela perspectiva tecnológica, pela perspectiva econômica e comercial e pela perspectiva de inclusão social, como a formação de uma classe média no campo. Existem várias lentes. Não há um agro homogêneo. O que temos é uma expressão política predominante de lideranças ultraconservadoras que se traduzem em poder político no Congresso Nacional. Eles acham que o mundo continuará sendo pautado pelos interesses de curto prazo e comerciais. Eles [também são] importantes, tanto que estão colocando o Brasil com o papel estratégico de segurança alimentar no mundo, só que não vai ter água, não vai ter solo, não vai ter serviço ambiental para continuar produzindo. Está seco em Mato Grosso, e o povo do agronegócio no Mato Grosso já está falando que isso é problema ligado às mudanças climáticas. Está surgindo uma consciência política de que o ambiente está mudando, não só pelas novas gerações dentro do agronegócio e da agricultura familiar, mas também pelo impacto da natureza sobre os negócios no curto prazo.
O risco climático já é realidade na incerteza do sistema financeiro internacional, já é realidade do sistema de seguros, já é realidade nas cadeias produtivas de alimentos, com a inflação de preços. E esse risco não está sozinho, está junto ao risco de guerra, ao risco social, à desigualdade, com o risco de diferentes interesses geopolíticos na divisão do mundo entre Estados Unidos e China… Tudo tá na equação de risco. Só enxerga isso quem tem a capacidade de liderar por ser afirmativo no futuro e não por ser reativo do passado. Infelizmente parte do agro brasileiro hoje ainda vive uma liderança reativa do passado.
A oposição hoje ao governo tem cometido esse erro de generalizar agro?
Eu não acho que ela generaliza o agro, mas ela lida com a expressão política do agro. A oposição é uma posição política, e ela lida exatamente com esse domínio político do agro reativo, do passado, que é a voz do retrocesso, que explora a dicotomia e a polarização entre meio ambiente e agricultura, que explora a exclusão social das ONGs e a sociedade civil no seu debate e privilegia os interesses de curto prazo de parte do setor privado. A oposição política lida com a realidade política e a realidade política é essa.
A senhora já citou a necessidade de o país “reconhecer erros do passado” para seguir em frente com uma agenda climática e ambiental responsável. Que erros seriam esses? A senhora se arrepende de alguma decisão tomada enquanto ministra?
Eu não me arrependo de nenhuma decisão tomada enquanto ministra. Nenhuma decisão. E se elas reportam alguns erros, os erros são meus, não das instituições. Não me arrependo, porque todas as minhas decisões foram calcadas pela democracia e pelos processos técnicos, científicos, institucionais e políticos. Eu sempre valorizei as instituições, sempre ouvi a ciência, a sociedade, e tomei decisões no curso da democracia. Não me arrependo de nenhuma.
E quais foram esses “erros do passado”?
Os erros são não estar usando as lentes certas no óculos para fotografar os vários Brasis e saber intervir sobre as realidades e construir processos com escala. Sabemos problematizar, formar o quadro do problema, sabemos entender o nosso papel, a nossa responsabilidade, sabemos, sim, construir questões legais, instrumentos legais importantes. Mas nós temos que entender que precisamos ser mais ampliados nas relações políticas entre Estado e sociedade, Poder Público e sociedade, ter mais robustez, um chamado backup das instituições. O Bolsonaro destruiu o Inpe e o Ibama, e não teríamos informações ambientais se o Map Biomas não existisse. Hoje ele funciona como uma salvaguarda. Nós estamos aprendendo hoje como é quando alguém vem, destrói tudo e fragmenta tudo, o que levou até o presidente do Ibama a se autodeclarar um psicopata.
Os erros também têm a ver com o nosso comportamento político. A área ambiental é tão afirmativa e é tão importante, e ela soube construir um legado fantástico nos últimos 40 anos, mas nós não conseguimos traduzir isso em expressão política em bancada. Está faltando uma adesão da sociedade e uma maior aderência às realidades desses Brasis que nós temos. O Brasil também precisa dar escala para suas soluções socioambientais e isso significa entender a complexidade das relações políticas de curto prazo e históricas de território. Temos que falar de Amazônia 1.0 antes de falarmos de Amazônia 4.0. Nós somos capazes de bolar soluções incríveis como a Amazônia 4.0, mas não temos todo o chamado framework político e institucional construído para lidar com 1.0.
Por fim, também é importante reconhecer que nós perdemos muito tempo. Ter levado dez anos para tomar uma decisão sobre Código Florestal é um erro, porque há uma relação direta de meio ambiente com agricultura e vice-versa. E quantas oportunidades a área ambiental teve de rever uma lei ou de fazer uma lei de licenciamento? Você não pode levar 21 anos negociando a lei de resíduos sólidos e nessa lei não tratar as questões tributárias como de uma solução com logística reversa. O processo de negociação é longo, tem que ser longo, mas não tanto. A gente precisa distensionar e voltar a construir convergência.
Durante a COP 26, no ano passado, quando o Ministério do Meio Ambiente retirou a tramitação do PL 528/2021 sobre mercado de carbono, a senhora avaliou que o governo “não quer um mercado de carbono regulado”. Neste ano, este mesmo PL foi incluído na lista de prioridades do governo, e a agenda do ministro Joaquim Leite mostra que esta foi a pauta mais frequente. Como o governo parece estar lidando com o mercado de carbono?
Continuo dizendo que não é prioritário. O ministro Joaquim Leite quer regular por decreto, criar um mercado por decreto, e está se dedicando a consultas entre seus pares para isso. Só que ele ofereceu um decreto que não agradou nem aos seus pares. Por isso é importante olhar o mercado por outra perspectiva.
Não há como você solucionar a questão climática sem o setor privado, e o setor privado tem um papel nas questões de tecnologias, de comércio internacional e descarbonização, de precificação de carbono e de mercado de carbono. Me parece que o governo quer fazer o mercado que ele quer, não o mercado negociado com a sociedade por intermédio do Congresso. Então ele pega os interesses que ele quer desenhar, com alguns agentes do setor privado e desenha o decreto. Ele cria um mercado sem considerar a segurança jurídica, a visão estratégica de mitigação, sem lidar com a qualidade de carbono. É como resolver a questão para atender quatro ou cinco pessoas interessantes. Isso não é uma discussão estratégica de interesse nacional, que contribua para a mitigação climática, para uma visão de que o Brasil está fazendo entregas concretas no arranjo internacional global e gerando critérios muito objetivos para os nossos requisitos verdes, para o nosso protecionismo verde climático. Pelo contrário, poderá criar uma grande incerteza sobre o país, porque é tudo feito com base em interesses de curtíssimo prazo, Isso não é estruturante, não é assim que se faz política de Estado. Para isso é preciso fazer uma grande pactuação e eu não vejo isso sendo debatido.
O Brasil comete erros, não só por uma postura de negacionismo climático, mas por uma postura amadora de regulação. O governo tem papel estratégico de regulação e regulação significa segurança jurídica, caminhos objetivos para negócios e investimentos que nos leve rumo a descarbonização inclusiva. O que você tem hoje é uma situação que o ministro se reúne com seus pares, está tomado por isso, faz reuniões, seminários, mas descolado. Todo mundo vê aquilo com muita desconfiança, mesmo coisas boas que possam estar sendo propostas serão colocadas no contexto de desconfiança. Isso é ruim, porque você parte atrasado.
Ao pensar em mudanças climáticas e como responder a elas, existem especialistas que avaliam que de nada adianta se não houver uma perspectiva de direitos humanos para discutir a temática. A senhora concorda? Como isso poderia ser feito?
A questão climática é uma questão de desenvolvimento, ela está na centralidade da equação do desenvolvimento do mundo. Portanto, todos os assuntos correlatos à agenda do desenvolvimento tem a ver com atenção climática. Todos. Uma das questões centrais do processo de desenvolvimento é como desenvolver com mais inclusão, com mais equidade, e você não pode partir do zero, existe um passivo, que a pandemia exacerbou.
É necessário trabalhar com os instrumentos da questão climática, por meio de discussão sobre o que é NDC [Contribuições Nacionalmente Determinadas], o que está fora, o que deve ser voluntário, quais setores estão fora da equação… Porque alguns setores estão fora da equação. Quem opera com carvão tem uma sobrevida de 15 ou 20 anos, por exemplo. O que você vai fazer com os trabalhadores que vivem da indústria? Com pensamento estratégico se opera a curto e médio prazo, arrumando os caminhos, abrindo possibilidades no futuro, não fechando. Isso é um país com pensamento estratégico, mas nada disso está acontecendo hoje. Tudo é reativo e reativo, muitas vezes, com a visão do passado ou com a visão “neoliberal”, de dar vantagem para o setor privado.
A agenda de direitos humanos ganha outra dimensão, ganha importância nisso. Você está tratando de direitos, mas também de deveres humanos, porque se trata de corresponsabilidade. Isso o Brasil não faz bem hoje, não só pela característica firme desse governo de ser anti direitos humanos – nós temos uma anti-ministra de direitos humanos –, mas por não estar repactuando com a sociedade essa visão de direitos humanos que inclui cidadania climática, justiça climática, que inclui o passivo que nós temos de desigualdade. Nós vamos trilhar novos caminhos de desenvolvimento da economia acirrando desigualdades? Ou nós vamos trazer isso com realinhamento? Essa repactuação precisa ser feita com vozes da sociedade, pela sociedade, com lideranças que são traduzidas em lideranças políticas, do setor privado, com representatividade em governos eleitos. Precisamos de uma repactuação política, e não vai ser com essas pessoas que estão aí.
Um dos instrumentos climáticos são os programas de Pagamento por Serviço Ambiental. Inclusive, um deles, o Floresta + Amazônia, está sendo realizado por meio de recursos conquistados durante a sua gestão no Ministério do Meio Ambiente do governo Dilma por conta da redução do desmatamento. Como a senhora avalia a forma como os PSAs estão sendo geridos?
Eles estão lidando muito mal, porque eles não compreendem o Pagamento por Serviço Ambiental como um novo momento da relação do homem com a natureza. Eles têm uma visão colonialista com a natureza, de sacar e remunerar o setor privado, que detém áreas privadas da floresta em pé. Se eles tivessem responsabilidade sobre isso, eles estariam reduzindo o desmatamento. Quando nós fizemos isso [o governo Dilma criou a primeira Comissão Nacional para REDD +, sigla que significa Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, para refletir sobre estratégias e pagamento por resultados em 2015], nós tínhamos uma visão estratégica, que nós colocamos na cooperação internacional.
O Pagamento por Serviços Ambientais está no conjunto do que hoje nós chamamos de soluções baseadas na natureza, e o Brasil tem que ter uma visão estratégica sobre isso. O Brasil tem um Código Florestal para restaurar e tem um Marco Legal, portanto, tudo que for feito a mais [do mínimo definido por lei] é o que pode ser reconhecido internacionalmente.
A gestão de áreas protegidas no Brasil envolve áreas públicas e áreas privadas. Pelo Cadastro Ambiental Rural [CAR] conseguimos provar que tinha mais área em pé do que a área desmatada irregularmente em propriedade privada. Se o Brasil não tem nenhuma visão estratégica sobre gestão de áreas protegidas, considerando o público e o privado, como será feito o Pagamento por Serviços Ambientais? [Parece que o Ministério] só quer remunerar individualmente algumas pessoas que estão na sua base.
O projeto Floresta +, mostrando o fracasso que ele é, tem cinco ou seis módulos, mas nenhuma visão estratégica de se é para conter desmatamento, se o foco está em propriedades em fronteira de desmatamento, se o projeto está combinando isso com segurança hídrica, se está associado a corredores de fauna ou polinizador… Ou seja, é um pagamento de serviços ambientais para sua turma, não um pagamento de serviços ambientais para beneficiar a sociedade brasileira.
Além de não beneficiar efetivamente a sociedade, que outras consequências a criação de programas falhos pode gerar?
Existe uma grande preocupação internacional, porque, para você conseguir recursos, você tem que reduzir o desmatamento. O Floresta + foi estruturado com a doação de 100 milhões de dólares que vem da redução de desmatamento da minha época. Com o desmatamento aumentando, o futuro ministro não vai ter dinheiro. Ele vai ter que reduzir o desmatamento, passar quatro anos reduzindo, para poder tentar viabilizar recursos dessa mesma natureza. Esse governo não só impõe o atraso no presente, mas no futuro. São atitudes de incompetência que imobilizam o Brasil no futuro. O Brasil terá que ser muito mais criativo, terá que combinar outros arranjos e acessar outro dinheiro. Terá que ter base no resultado. Não adianta fazer mais promessas, este governo fez promessas equivocadas e expôs as instituições brasileiras.
De que forma as instituições foram expostas?
Uma das instituições mais expostas pela sua fragilidade na área ambiental são as Forças Armadas, que sempre trabalharam conosco em apoio na logística. Hoje tem general autorizando desmatamento e garimpo em zona de fronteira; e todas as iniciativas comandadas pelo General Mourão resultaram em resultados absolutamente concretos: aumento do desmatamento da Amazônia.
Isso é concreto, o Brasil é um país que aumentou o desmatamento ilegal em terra indígena, aumentou o desmatamento em terra pública, aumentou o desmatamento em Unidade de Conservação. Isso são os resultados desta gestão, não adianta esconder, não adianta levar embaixador de país estrangeiro para ver uma Amazônia intocável e não mostrar o restante. A Amazônia hoje, nos territórios que desmatam, tem o maior índice médio de homicídio do Brasil. O Brasil já tem um índice de violência enorme no mundo, isso é fruto desta administração, isso é fruto do governo Bolsonaro, fruto da irresponsabilidade daqueles que manejam instituições públicas brasileiras para fazer esse tipo de resultado.
É um insucesso absoluto, não tem credibilidade, não tem confiança. Prometeu e não fez e, ironicamente, nunca se gastou tanto dinheiro. Proporcionalmente o Brasil nunca teve tanto dinheiro para fiscalização, nunca se gastou tão mal um dinheiro. Para mim, tem uma grande incompetência institucional e talvez pudesse reduzir isso numa frase: se você pedir um analista ambiental para comprar um tanque de guerra, um drone militar, ele possivelmente vai errar muito, ele não é especialista nisso.
A senhora também falou em outras entrevistas sobre o que chamou de fake green. O presidente ontem mesmo publicou um vídeo em suas redes sociais em que afirmou que não há desmatamento na Amazônia. Qual o papel da desinformação ambiental para esse governo?
O governo é fake green. Por isso que publica esses vídeos. Ele não conta o que aconteceu na destruição da Amazônia na gestão do governo dele. É impossível você desmatar a Amazônia em quatro anos, então ele mostra uma coisa intocável de 80% preservados e não fala dos 20% e da contribuição do governo dele sobre isso. Ele faz uso da maquiagem verde. Ele manipula as informações. O fake green determina no Brasil a perda de credibilidade e confiança, por um lado, e por outro lado permite que muita gente nos chame de mentirosos. Um chefe de estado ser chamado politicamente de mentiroso é o esvaziamento político de um país. É nessa perspectiva que ele está jogando. O fake green é a identidade política do governo. Ele manipula as informações. É tudo falso, ele lidera pelo o que é fake, liderança pelo que não é real, lidera pela destruição.
Um dos argumentos do governo Bolsonaro é que eles são a favor da defesa da soberania nacional, e que os países estrangeiros e ONGs querem ganhar dinheiro e roubar a Amazônia. Esse discurso já foi checado e comprovado falso; ainda assim, a geopolítica é um campo de interesses. De acordo com as suas experiências, existem cuidados que devem ser tomados ao aceitar dinheiro e colaborar para fomentar programas ambientais? Pode existir algum outro interesse de países e atores que se colocam em defesa do meio ambiente para além de ‘salvar o mundo e permitir a vida no planeta’?
O Brasil sempre defendeu seus interesses durante toda a trajetória da sua cooperação internacional. Nós nunca aceitamos nenhum dinheiro que fosse contrário aos nossos interesses, nem pela sociedade civil. Para mim, o argumento do governo é completamente equivocado. Os países estrangeiros têm interesse, sim, eles têm visões, eles defendem seus interesses nacionais. A questão é que nós estamos indo para a dimensão planetária. A geopolítica climática coloca o Brasil em um papel estratégico de segurança climática, mas o Brasil está queimando este papel, entregando a Amazônia para o crime, não para o desenvolvimento. Quem entrega para o crime, não é soberano. O meio ambiente é um bem público de interesse da sociedade, tem que ser protegido. Se eu protejo os meus interesses, eu estou sendo soberano. Soberania se exerce, não se declara. Exercer a soberania é proteger os interesses da sociedade.
O Brasil precisa definir o que ele quer dessa agenda e quais são seus interesses. Precisa definir o seu protecionismo verde de maneira propositiva e não reativa. Bolsonaro só reage aos outros, ele não diz como é que ele quer, não afirma. Para afirmar ele tem que saber proteger. O governo atual não sabe, na perspectiva do protecionismo verde, defender os interesses brasileiros. São reativos, quando vão negociar eles usam os ativos que nós fizemos, quando querem dinheiro internacional, vão dizer o que nós fizemos. A Amazônia está de pé 80% porque nós preservamos, não eles. Quando esse país sentar e falar “vamos funcionar assim”, não vai ter para ninguém. Aí o mundo vai vir atrás do Brasil. Fazendo seus resultados, o Brasil pauta o mundo. Jogando como está jogando, ele é pautado pelo mundo.
Hoje a Petrobrás já não pode ser considerada e nem vendida como a salvação do Brasil. Quais são os desafios da transição energética?
O Brasil precisa, sim, discutir uma transição energética que não seja um adiamento energético. Todos os cenários que o Brasil publicou recentemente nos colocam na mesma fotografia de transição energética que tínhamos em 2015. Não acho que o Brasil esteja discutindo transição, o governo está discutindo como ganhar tempo. Nós temos uma posição ainda confortável, mas a competitividade nessa agenda vai ser cada vez mais crescente e, com a guerra [da Ucrânia], essa agenda trouxe uma nova perspectiva geopolítica sobre a questão energética. O Brasil precisa se debruçar sobre isso, não só sobre combustíveis fósseis, mas sobre energias renováveis. Nós estamos perdendo alguns espaços e não estamos preenchendo os espaços estratégicos.
O Brasil ainda discute uma perspectiva, por exemplo, do Pré-Sal ser importante para a questão energética brasileira, mas sem discutir o impacto das responsabilidades do escopo 3 da cadeia de petróleo e gás. Quem queima petróleo do Brasil não é o Brasil, nós exportamos isso. Qual é o desenho de corresponsabilidade que vamos ter nisso? Ninguém está discutindo isso, está todo mundo vivendo o nirvana do lucro de curto prazo com dólar em cima, sem entender discussões estratégicas em relação à segurança e a questão do petróleo.
A transição energética no Brasil deveria ser usada de fato como agenda estratégica de transição de uma descarbonização brasileira para o desenvolvimento sustentável. Não vejo liderança no governo sobre isso, o Ministério de Minas e Energia hoje tem posições que me parecem muito de energia naftalina, não de energia contemporânea.
Por fim, a senhora está satisfeita com o papel que a pauta ambiental climática tem desempenhado até então na pré-campanha do principal candidato de oposição, que é o ex-presidente Lula? Como a senhora avalia as promessas que têm sido feitas?
Eu acho que o presidente Lula e o vice-presidente Alckmin lançaram uma campanha com discurso modelando, sim, os caminhos que precisam ser retomados e abrindo portas para uma discussão mais contemporânea sobre as questões socioambientais. É preciso entender a dimensão do retrocesso na formulação política, então você tem que conter o sangramento. Para conter, você tem que afirmar um realinhamento, tem que mobilizar as pessoas para que elas possam acreditar na sua capacidade de reconstruir, mas não reconstruir com base no passado, é construir olhando para o futuro.
Nós temos problemas contemporâneos que nós vamos ter que lidar, como a questão climática. Temos problemas do passado que estão no presente, como a questão da fome, que nós já tínhamos banido e voltou, e a questão da pobreza. Isso são equações que a área ambiental terá que se deparar para oferecer saídas, por exemplo, para ter alimentos mais baratos. Para ter uma alimentação barata, eu preciso de segurança hídrica, eu preciso de segurança de propriedade, preciso de crédito de propriedade. Para isso eu vou ter que trabalhar com uma visão crítica sobre regulação fundiária, terei que trabalhar com soluções em territórios.
Tanto o discurso do vice-presidente Alckmin, como do presidente Lula, sinalizam isso: a necessidade de alinhamento contemporâneo com a questão climática, com a necessidade de reconhecer os direitos indígenas sobre seus territórios. A necessidade de discutir projetos de estrutura importantes para o Brasil, tendo os indígenas o direito de serem ouvidos propriamente e participarem do processo. É preciso tirar os preconceitos da mesa para lidar com soluções, que permitam não só o desenvolvimento do país de maneira sustentável e inclusiva, mas que permitam que não mais volte mais o retrocesso que nós estamos experimentando.
O Brasil precisa reconhecer os direitos dos excluídos, mas precisa reconhecer os seus deveres em relação a não ter mais degradação e desigualdade. Precisa definir o que não é mais permitido: não é permitindo que a pobreza volte, que a fome volte, que a violência no campo volte, que o desmatamento volte. Isso tudo está na nossa conta como cidadãos, nós temos que entender isso e ter esse compromisso com o futuro.
Pauta Verde no STF
Das sete ações inicialmente pautadas para serem julgadas durante a Pauta Verde, duas foram consideradas procedentes e uma improcedente com a necessidade de alterações. Entre as procedentes estão: ADI 6.808, sobre licenciamento ambiental automático e ADPF 651, sobre participação da sociedade civil no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente.
A ADI 6.148, sobre qualidade do ar, foi considerada improcedente, mas o Executivo deve, em 24 meses, editar nova resolução mais protetiva.
Outras três, ligadas ao Fundo Amazônia e combate ao desmatamento, não foram julgadas. A ADO 59 foi retirada pela relatora, ministra Rosa Weber, sem explicações. O julgamento das ADPF 760 e ADO 54 foi paralisado por conta de pedido de vista do ministro André Mendonça.
Também deixou a pauta a ADPF 735, sobre a retirada de autonomia do Ibama como agente de fiscalização na Operação Verde Brasil 2, de relatoria da ministra Cármen Lúcia.