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O caldo de mocotó e o Sport, o cacique irmão na defesa do Javari: as memórias que Bruno deixou em Atalaia, além de uma casinha branca e uma pequena biblioteca

Reportagem
21 de junho de 2022
14:50
Este artigo tem mais de 2 ano

Quando voltava das viagens de barco à Terra Indígena Vale do Javari, uma parada de Bruno em Atalaia do Norte (AM) era no pequeno restaurante de madeira do “seu” Rosedilson Barroso Salvador, onde tomava um caldo de mocotó e pedia para ouvir música sertaneja, em especial da dupla Milionário e José Rico. Fã de Roberto Carlos, Rosedilson tem salvo no computador um repertório selecionado de sucessos dos anos 60 e 70 que toca sem parar.

Rosedilson Salvador é dono de restaurante e amigo de Bruno.
Rosedilson Salvador lembra das conversas que tinha com Bruno em seu restaurante e lamenta a morte do amigo

“Ele subia essa rua do porto e sentava aí onde o senhor está sentado. Ele sempre perguntava se o Sport estava jogando, se ia jogar. Quando tinha jogo, pedia pra botar a televisão no jogo e pedia logo uma [cerveja] Itaipava”, disse Rosedilson. Nascido em Pernambuco, o indigenista era torcedor do Sport de Recife (PE). Morou cerca de cinco anos em Atalaia, de 2012 a 2016, quando deixou a coordenação regional da Funai. A partir de 2020 voltou a frequentar a cidade depois que se tornou consultor da Univaja, a principal entidade dos indígenas da região, e passou a ajudar na organização de equipes de vigilância indígenas.

Bruno também almoçava no restaurante da Dona Dila. No dia 2 de junho, conforme lembra José “Pacu”, marido da proprietária, o indigenista comeu dois peixes fritos e tomou quatro refrigerantes ao lado do jornalista Dom Phillips. Foi a última refeição em Atalaia antes de seguirem viagem pelo rio Itaquaí, da qual não mais voltariam.

Última refeição de Bruno e Dom no restaurante da Dona Dila em Atalaia do Norte
Última refeição de Bruno e Dom no restaurante da Dona Dila em Atalaia do Norte

“Eu não sabia que o Dom era assim uma pessoa tão importante, se soubesse tinha ido falar com ele”, disse José, mostrando o caderno de anotações com o pedido de Bruno. No papel está anotado um peixe, matrinchã, mas na última hora eles mudaram o pedido para tambaqui. “O Bruno era tranquilo, boa pessoa. Ele estava fazendo o serviço dele. É como os caras da Funai, eles são empregados. Eles fazem o trabalho deles.”

O comunicador em Atalaia Nailson Tenazor, do blog “Jambo Verde”, disse que Bruno e os indígenas apreenderam “muita coisa” de errado na região e isso atraía a contrariedade de pescadores e caçadores ilegais. “A última apreensão que eu lembro foi de quase 800 tracajás. Hoje um tracajá está R$ 180, dependendo do tracajá. A apreensão foi oitocentos. Fora a caça.”

“Eu falei muitas vezes com o Bruno, era para pegar informação, mas ter assim aquele bate papo… não. Mas eu sabia que ele tinha esse trabalho. Mas é um trabalho que… Conscientizar as pessoas é difícil.” Nailson disse que “não se pode ser hipócrita” e reconhece que “culturalmente todo atalaiense gosta de comer um tracajá”, mas o inaceitável para a comunidade da região, segundo ele, é a retirada de grandes quantidades de animais de dentro da terra indígena. “Isso é outra coisa.”

Nas ruas e nos restaurantes, pousadas e padarias de Atalaia do Norte, a cidade mais próxima da Terra Indígena Vale do Javari de pouco mais de 20 mil habitantes onde todos se conhecem, a morte de Bruno Pereira, assassinado no domingo, dia 5, ao lado de Dom, é lamentada como se fosse a de um parente ou amigo. Para muitas pessoas, ele de fato era.

O cacique mayoruna Waki, conhecido pelo apelido de “Kaissuma”, um tipo de mingau, não mora em Atalaia, mas de tempos em tempos vai à cidade para resolver problemas burocráticos na Funai e em outros órgãos públicos. São três ou quatro dias de barco pelos rios do Javari. Calhou de estar visitando Atalaia quando houve o desaparecimento de Bruno e do jornalista Dom Phillips.

Indigenista Bruno Pereira
Indigenista Bruno Pereira

O indigenista admirava tanto Waki (pronuncia-se “Uaquí”) que batizou um de seus filhos pequenos com o nome do cacique. Em 2013, quando viajei com Bruno Pereira para a aldeia mayrouna San Meirelles, na fronteira do Brasil com o Peru no limite oeste da Terra Indígena Vale do Javari, à qual se chega de avião, barco e uma curta caminhada a pé, foi justamente para acompanhar um encontro de lideranças mayorunas organizado pelo cacique Waki.

Para mim ficou nítido o motivo de tanta admiração de Bruno pelo cacique: Waki vinha sendo implacável com o transporte e o comércio de madeira roubada dentro da terra indígena, mesmo que isso significasse brigar com outros indígenas que aparentemente estavam facilitando o crime. Waki dizia que estava unindo todos os mayorunas para impedir o crime em todas as aldeias.

Nessa ocasião, Bruno me disse que Waki estava conseguindo um grande progresso e isso era um exemplo positivo que deveria ser replicado em todo o Vale do Javari. Bruno falava dele com entusiasmo, como se a solução para os problemas do Vale estivesse materializada na pessoa do cacique. Outros servidores da Funai nutrem o mesmo respeito e admiração por Waki, que pode muito bem ser descrito como um Bruno indígena. Waki é considerado por indigenistas “uma liderança emblemática do Javari”.

No dia seguinte à notícia de que Bruno e Dom foram de fato assassinados, encontrei Waki na antiga sede da Funai em Atalaia do Norte. O órgão indigenista foi transferido para outro prédio porque o terreno começou a ceder. Mesmo assim, os indígenas pedem para usá-lo como um abrigo temporário.

Waki estava com a cara fechada, abatido, triste. Ele havia reduzido bastante o cabelo com uma máquina. Ele me disse que raspar o cabelo é um sinal de luto entre os mayorunas, e havia feito aquilo em homenagem a Bruno. O cacique explicou que não gostaria de dar entrevista sobre Bruno porque, segundo ele, na cultura mayoruna não se fala, pelo menos por um certo tempo, sobre uma pessoa amiga que morreu.

Ao saber de novo que os corpos ainda não haviam sido localizados, Waki ficou muito contrariado. Ele fala português não fluente. Em síntese, disse que na cultura mayoruna não se esconde o corpo de uma pessoa assassinada. Quem mata deve anunciar para todos que matou e aguardar as consequências no próprio local da morte, junto aos corpos. Em síntese, Waki disse que os assassinos de Bruno e Dom, pescadores ilegais que ele chamou de “inimigos”, não passavam de covardes.

Nos últimos meses de vida, Bruno vinha se hospedando na Pousada Castro Alves. Além de bem situada, a poucos metros da praça central, ela fica a uma quadra da sede da Univaja, o que facilitava seu trabalho como consultor da entidade.

Por um bom tempo foi outra a morada de Bruno em Atalaia. Anos atrás, quando era coordenador da Funai no município, ele adquiriu um terreno e uma casa de madeira a uns 6 km do centro da cidade, já na estrada para Benjamin Constant. O imóvel foi comprado em conjunto com um grupo de sete servidores da Funai.

Chácara que Bruno e outros servidores da Funai compraram em conjunto
Chácara que Bruno e outros servidores da Funai compraram em conjunto

A casa verde de madeira grafitada com rostos de indígenas, hoje desabitada, chama a atenção de quem vem pela estrada de Benjamin (único caminho entre as duas cidades). Mais ao fundo no terreno e em frente a um lago, Bruno e a esposa Beatriz Matos construíram uma pequena casa branca de alvenaria. Poucos meses antes de morrer, no final de março, o casal convidou Jaime Mayoruna, que é o atual secretário de assuntos indígenas da Prefeitura de Atalaia e fora coordenador da frente de proteção da Funai em 2020, para cuidar da casa, o que foi prontamente aceito.

Casa onde Bruno morava
Casa onde Bruno morava

Jaime, que conhecia Bruno desde 2015, mudou-se para a casa com sua mulher e um filho pequeno no final de março último. Em troca, trabalha na preservação da casa e do terreno. Mayoruna comprou uma maquininha de cortar grama e já iniciou a limpeza do mato.

Um dia antes de iniciar a viagem derradeira pelo rio Itaquaí, Bruno conversou com Jaime na Univaja. Eles planejavam fazer em breve uma viagem para encontrar lideranças mayorunas na região do rio Jaquirana. “A gente queria fazer uma ação conjunta com a Prefeitura lá na aldeia.”

Jaime Mayuruna mora com a família na casa cedida pelo indigenista
Jaime Mayuruna mora com a família na casa cedida pelo indigenista

Com as mortes de Bruno e Dom, Jaime ainda não sabe qual será o futuro da casa e seu papel na preservação do terreno e da construção. Num quartinho ao lado da casa, Bruno deixou uma pequena biblioteca com livros e textos impressos, hoje pegando mofo. Beatriz pretende buscar os pertences do marido em breve. Há livros sobre a Funai e o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e textos antropológicos misturados a obras de interesse geral, como o “O anjo pornográfico”, a biografia do dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, e “Galvez, imperador do Acre”, do escritor Márcio de Souza.

Alguns livros de Bruno que estavam em sua chácara
Alguns livros de Bruno que estavam em sua chácara

No início da noite da quarta-feira (15), os corpos de Bruno e Dom foram trazidos para Atalaia e embarcados num helicóptero das Forças Armadas nos fundos da prefeitura de Atalaia. Ele decolou para Manaus e, de lá, os corpos foram levados para Brasília. Foi assim a última viagem de Bruno Pereira ao Vale do Javari que ele tanto amou e pelo qual sacrificou a própria vida.

O especial Vale do Javari — terra de conflitos e crime organizado é uma série de reportagens da Agência Pública com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center

José Medeiros/Agência Pública
José Medeiros/Agência Pública
Reprodução TV Globo
José Medeiros/Agência Pública
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