Em Mirassol D’Oeste (MT), a 300 km de Cuiabá (MT), o sustento de pequenos agricultores depende das palmeiras de babaçu que ainda restam de pé neste encontro da Amazônia com o Pantanal. A partir do cultivo e beneficiamento da espécie, famílias camponesas produzem biscoitos, pães e até uma farinha usada na multimistura contra a desnutrição infantil. Mas, ainda no início da pandemia de Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro (PL) tomou decisões nocivas aos agricultores da região – boa parte, beneficiários da reforma agrária – conforme relatado à Agência Pública.
“Foi em 2020 que o governo cortou as compras dos nossos pães e biscoitos pelo antigo PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], e também diminuiu os pedidos que a gente recebia pelo PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar]”, diz Rita Zocal, uma das 33 agricultoras do grupo das Margaridas, parte da Associação Regional das Produtoras Extrativistas do Pantanal (ARPEP) – focada na produção agroecológica a partir da palmeira de babaçu no oeste mato grossense.
Beneficiária da reforma agrária no assentamento Margarida Alves, Zocal estima que, antes da pandemia, as entregas de biscoitos e pães eram semanais, sem contar os envios de 200 kg de farinha de babaçu à Pastoral da Criança em Cuiabá. Atualmente, ela e seu grupo de agricultoras entregam, apenas uma vez por mês, somente 90 kg de farinha via PNAE.
“O que mais entristece é a volta da fome, o pedido de comida de quem a gente antes ajudava, duas vezes por semana, com entregas de biscoitos e pães em um centro de atendimento à população aqui no município… isso aborrece muito, porque afeta crianças carentes em Mirassol [D’Oeste]”, disse a pequena agricultora à Pública.
Levantamento realizado pela reportagem a partir de dados do orçamento público federal, disponíveis no portal SIGA Brasil, embasam as críticas da pequena agricultora de Mirassol D’Oeste. Foi notável a queda do apoio financeiro a pequenos e médios agricultores durante a gestão Bolsonaro.
Em 2019, o governo federal repassou R$6 milhões para o apoio da agricultura familiar, menos de 0,2% do orçamento total do ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento à época. Em 2020 o valor caiu para R$1,2 milhões, menos de 0,1% da verba total naquele ano; já em 2021 e até outubro deste ano, não houve nem um real investido no setor, de acordo com a plataforma do governo federal.
Outro tombo no orçamento ocorreu no extinto PAA, hoje chamado de Programa Alimenta Brasil e na alçada do ministério da Cidadania. Os dados disponibilizados pelo governo via Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) mostram que, com exceção do ano inicial da pandemia de Covid-19, 2020, quando o ministério destinou R$217 milhões à compra de alimentos para doação, os gastos mantiveram-se baixos.
Em 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro, o governo separou R$31 milhões para a aquisição de alimentos da agricultura familiar para doação, e em 2021 o valor caiu para cerca de R$17 milhões. Até outubro deste ano, a verba destinada a este tipo de compra não chegou a R$1 milhão.
“O orçamento do PAA já chegou na casa de R$1 bilhão em 2014, mas desde então apenas decaiu, a ponto de, atualmente, praticamente inexistir um recurso substancial para o programa Alimenta Brasil”, diz Paulo Petersen, diretor da organização não-governamental AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia e membro da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA).
De acordo com Petersen, o antigo PAA incentivava a biodiversidade, por meio da agricultura familiar livre do uso de agrotóxicos, e impactava o bem-estar das populações pobres, que recebiam alimentos de qualidade a custo zero, com uma função social de incentivo ao desenvolvimento econômico das regiões que participavam do programa.
“O Alimenta Brasil muda completamente esta percepção integrada, inclusive com cortes orçamentários significativos no programa, que por vezes depende de emendas parlamentares para existir – há, até, recursos do ‘orçamento secreto’ destinados a isso”, afirma Petersen. “Podemos dizer, sem erro, que a ausência do PAA neste momento contribui com o aumento da insegurança alimentar no Brasil”, diz o membro da ANA.
O relato de Rita e os dados sobre repasses para agricultores trincam o discurso do ex-capitão do Exército sobre seu apoio à agricultura familiar. Bolsonaro tem se retratado como um apoiador dos camponeses durante as eleições e, quando aborda o tema, enfatiza que seu governo emitiu milhares de títulos de terra via reforma agrária.
O presidente não menciona, porém, que sua gestão não repassou a maior parte dos recursos destinados ao socorro da agricultura familiar durante a pandemia, nem os sucessivos cortes de verbas para a titulação de quilombos e para o financiamento direto da produção de pequenos agricultores – como as mulheres do grupo das Margaridas, por exemplo – aplicados pelo seu governo.
“A verdade é que ele [Bolsonaro] só apoia os grandes fazendeiros e o agronegócio, porque aqui em Mirassol [D’Oeste] só vimos corte de verbas, estamos há dois anos sem fazer nenhuma entrega pelo PAA [hoje rebatizado como Programa Alimenta Brasil], não temos assistência técnica para a nossa produção”, afirmou ainda Rita Zocal.
Desigualdade no repasse de verbas do Pronaf marca o atual governo
Não faltam estudos sobre o desmonte do apoio à agricultura familiar, especialmente a agroecológica, durante o atual governo. Organizações como a ANA e a Fundação Heinrich Boll, por exemplo, têm destacado o impacto causado pelo esvaziamento de recursos e pelo fechamento de conselhos da sociedade civil, que norteavam ações federais no setor.
Especialistas apontam ainda um aumento da desigualdade no repasse de recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) durante a gestão Bolsonaro.
Para se ter ideia, em 2020, segundo pesquisa coordenada pelo Instituto Tricontinental, 26% da verba total do programa foi usada para bancar a produção de soja, enquanto apenas 2,5% foi destinada para o cultivo de arroz e feijão, base da alimentação popular no Brasil.
Ainda naquele ano, mais da metade dos recursos do Pronaf foi repassada a agricultores do Sul, quando a maioria dos camponeses brasileiros vive no Nordeste – contemplado com apenas 14% das mesmas verbas em 2020.
A falta de recursos atinge pessoas como Marlene Pereira, coordenadora da Associação Agroecológica EcoBorborema e integrante do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Lagoa Seca (PB), a menos de 150 km da capital João Pessoa (PB), que também conversou com a Pública.
O grupo de pequenos agricultores da região se destaca na preservação de sementes crioulas de milho – as “Sementes da Paixão, cultivadas e protegidas por nossos antepassados, que as guardavam dentro de estátuas de santos, seladas com cera de abelha, como uma riqueza do nosso povo, que temos de preservar”, segundo a agricultora.
“A verdade é que, hoje, falta financiamento para nós, além de sofrermos com muitos cortes nos programas de compra de alimentos para doação… às vezes somos ‘forçados’ a vender nossa produção, orgânica, para atravessadores, quando, antes desse governo [Bolsonaro], a gente escoava para o PAA e o PNAE”, diz Pereira.
Perguntada sobre os argumentos do presidente da República, que alega ser um apoiador da agricultura familiar por emitir títulos de terra via reforma agrária, a agricultora de Lagoa Seca discorda. “É curioso ver ele [Bolsonaro] se gabando do que faz quando, na verdade, só pegou um monte de políticas públicas prontas, já encaminhadas, e desmontou outras, que nos davam uma renda extra, garantiam a comida no prato das famílias aqui em Lagoa Seca”, afirma Pereira.