Há alguns dias, quando conversou com a Agência Pública, a pesquisadora Luciana Gatti expressou a sensação de desespero ao ver “a Amazônia ser assassinada”, como descreveu.
Ela falava sobre o novo estudo que acaba de lançar indicando que os dois primeiros anos de governo de Jair Bolsonaro provocaram na Amazônia um efeito equivalente ao evento extremo de grandes proporções El Niño. Segundo a pesquisa, em 2019 e 2020, as emissões de dióxido de carbono, o CO2, um dos principais gases de efeito estufa, dobraram na região devido ao enfraquecimento dos órgãos de fiscalização ambiental, o que teria resultado em um aumento no desmatamento e degradação, entre outros fatores. O artigo, submetido à conceituada revista Nature, foi produzido por uma equipe de 30 cientistas liderada por Gatti e está em fase de preprint – quando ainda não foi publicado em um periódico científico e avaliado pelos pares.
Os números apontam uma piora em relação ao estudo anterior, divulgado no ano passado com dados de 2010 a 2018, que trouxe a assustadora revelação de que a maior floresta tropical do mundo já atua como fonte de CO2 para a atmosfera, em vez de sumidouro. A publicação soou o alerta de que a Amazônia poderia estar na iminência do ponto de não retorno, em que perde irreversivelmente suas características originais e capacidade de prestar serviços ecossistêmicos.
Química de formação e coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa (LaGEE) do Inpe, Gatti explicou à Pública que a nova pesquisa nos dá duas “péssimas notícias”. Primeiro, a de que a estação chuvosa da Amazônia, que ocorre majoritariamente entre janeiro, fevereiro e março, foi afetada: em 2020, ela apresentou queda de 26% nas chuvas e um aumento de 0,6ºC na temperatura. A segunda é que a parte oeste do bioma, antes neutra, também passou a ser fonte de CO2, sobretudo devido à alta do desmatamento no Amazonas e queimadas em Roraima.
Realizando pesquisas na Amazônia há cerca de vinte anos, Gatti se mostra indignada com a atual situação da floresta e suas potenciais consequências. “Não vamos só perder a Amazônia. Vai ser vai ser uma calamidade no Brasil, vai ser a quebradeira do agronegócio, o aumento de eventos extremos. Um monte de gente vai morrer, perder tudo”, alerta. “As pessoas têm que entender cada árvore como um climatizador natural. Têm que entender que a floresta não é desperdício de terra, é fábrica de chuva e de água.”
No entanto, ela não fala em tom pessimista, como se nada pudesse ser feito para interromper a rota de destruição. Pelo contrário: afirma que é urgente tomarmos medidas para frear o colapso, como a moratória imediata do desmatamento na Amazônia e projetos de reflorestamento de áreas desmatadas e degradadas. Também defende que a gestão do meio ambiente no país seja encarada como questão de Estado, não de governo. “A visão do Brasil que eu tenho é a de um avião indo para o abismo. O piloto kamikaze, o capitão Bolsonaro, levando todo mundo para o abismo e o povo lá: “que friozinho na barriga, esse piloto é bom”, diz.
Quais os principais alertas do novo estudo em relação às emissões de CO2 na Amazônia, seu regime de chuvas e condições climáticas?
A primeira péssima notícia é a de que a estação chuvosa foi afetada. Até 2018, a gente viu que apenas a estação seca havia sido atingida – ela estava mais seca, quente e longa. E que isso promove um stress na floresta que faz com que ela perca a capacidade de absorver carbono. Dessa vez, identificamos que o problema caminhou para a estação chuvosa. Tem lugar que perdeu 40% de chuva e local onde a temperatura subiu 0,8ºC nos meses de janeiro, fevereiro e março, da estação chuvosa. A segunda péssima notícia é que o oeste da Amazônia virou fonte [de emissão de CO2]. O lado oeste antes era mais preservado, a floresta absorvia e praticamente compensava todas as emissões humanas [em relação ao lado leste]. Em 2020, choveu 12% a menos na Amazônia inteira, no acumulado anual. Isso é uma tragédia. Choveu 26% a menos em plena estação chuvosa. Até 2018, a grande mudança que a gente identificou havia sido na estação seca. Só Santarém [no Pará], onde o desmatamento está perto de 40%, é que a gente viu perder chuva na estação chuvosa. E aquela região representa 10% da Amazônia. Dessa vez, constatamos isso na Amazônia inteira. Essa foi uma péssima notícia.
Como se explica essa mudança de cenário na parte oeste da Amazônia?
A piora na parte oeste tem a ver com com Roraima, Amazonas, Rondônia e Acre. O desmatamento começou em 2019, mas não vimos o efeito no ciclo do carbono naquele ano, fomos vê-lo em 2020. Esse pessoal quer fazer aquela região ser o Matopiba, mas vai faltar chuva. Não só para eles, porque vai afetar mais ainda o Pantanal, o Cerrado, o Sudeste, o Sul do país. As pessoas têm que entender que estamos num período em que a mudança climática está afetando tudo, porque a natureza é complexa. A visão do Brasil que eu tenho é a de um avião indo para o abismo. O piloto kamikaze, o capitão Bolsonaro, levando todo mundo para o abismo e o povo lá: “que friozinho na barriga, esse piloto é bom”.
O fato de a porção oeste ter se tornado fonte de emissões tem a ver com o surgimento da nova fronteira agrícola na região entre o leste do Acre, sul do Amazonas e norte de Rondônia, conhecida como Amacro (junção das siglas desses estados) e inspirada pelo Matopiba?
É esse projeto que está fazendo com que o lado oeste da Amazônia também vire fonte de emissões de CO2. Depois de tudo que aconteceu na Amazônia nesses dois anos [2019 e 2020], a gente viu as emissões de carbono dobrarem. Mas o problema não é só esse, quando a gente pensa na Amazônia, não pode só pensar no estoque de carbono. Na natureza, tudo está vinculado, uma coisa está ligada à outra. Aí você começa a ver a Amazônia como uma grande proteção contra as mudanças climáticas.
Poderia explicar como ela desempenha esse papel?
Quanto mais gases de efeito estufa na atmosfera, mais alta é a temperatura. Quando a temperatura é mais alta, mais vapor de água fica na atmosfera sem condição de virar chuva. Quando acontece um processo de condensação, tem muito mais água lá em cima, então toda essa água precipita num curto período de tempo – por isso ocorrem as chuvas torrenciais. A Amazônia é uma grande fábrica de chuva: cada arvorezinha tira a água do solo em formato líquido e joga na atmosfera em forma de vapor. Para passar de líquido para vapor, ela rouba energia na faixa do infravermelho, que é o calor. Conforme vaporiza, resfria a atmosfera. A floresta faz chuva, resfria a atmosfera e ainda absorve carbono. Mas na hora em que a gente desmata, ela está jogando mais CO2 na atmosfera, reduzindo mais a chuva e aumentando mais ainda a temperatura, porque vai vaporizar menos. Com isso, estamos fazendo a Amazônia virar um acelerador das mudanças climáticas. Estamos desequilibrando, num espaço curto de tempo, as condições climáticas do país. A gente precisa propagandear: a floresta amazônica é uma fábrica de chuva que garante a produtividade agrícola. O que será do agronegócio brasileiro com menos chuva e com mais eventos extremos? As pessoas têm que entender cada árvore como um climatizador natural. Têm que entender que a floresta não é desperdício de terra, é fábrica de chuva e de água.
Como você descreve os impactos da política ambiental de Jair Bolsonaro para a Amazônia em termos de emissões de CO2?
Eu diria que o governo Bolsonaro é um risco de morte para a Amazônia. Mais quatro anos dele significam a certeza de que perderemos a Amazônia. Mas não vamos só perder a Amazônia. Vai ser vai ser uma calamidade no Brasil, vai ser a quebradeira do agronegócio, o aumento de eventos extremos. Um monte de gente vai morrer, perder tudo. O fato de você negar as coisas não muda a realidade. As consequências nós vamos pagar, e o pior, todos vamos pagar pelo erro dele. A maior lição que vejo desse governo é que meio ambiente e energia não deveriam ser questão de governo, e sim de Estado. Nada impede um maluco de sentar na cadeira e fazer um monte de barbaridades.
É possível fazer alguma projeção para os dados de 2021 e 2022? Em sua análise, eles devem vir semelhantes?
Com certeza, porque o desmatamento foi mais intenso em 2021 e 2022. A expectativa é de um cenário pior. Quão pior? Não sei, porque não esperava já ver efeito na estação chuvosa. Não esperava ver o oeste virando fonte [de emissões]. Esperava que o sudeste estivesse pior [região que abrange o sul do Pará e o norte do Mato Grosso, onde, no estudo do ano passado, havia-se observado o maior aumento de temperatura]. Estou desesperada vendo a Amazônia ser assassinada. Estão matando a Amazônia. A Amazônia está 20% desmatada, mas está mais 20% degradada, então estamos falando de uma perda de 40%, não de 20%. Bolsonaro fala que ainda tem 80% [da floresta] intactos, mas não tem.
É por isso que você e outros pesquisadores dizem que os inventários de emissões e remoções de gases de efeito estufa submetidos pelo governo brasileiro à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) estão subestimados?
O inventário não computa emissões oriundas de degradação. E pior: não computa nada de emissões de queimadas. São dois motivos para estarem subestimados. E tem ainda um terceiro: a absorção [de CO2] considerada é maior do que a real.
No ano passado, após a publicação do primeiro estudo, você defendia a moratória imediata do desmatamento na Amazônia e a necessidade de se promover projetos de reflorestamento. Isso se faz ainda mais urgente agora?
Isso é emergente. A gente com certeza já desmatou mais do que podia. E o pior é que estão aí novos projetos para rodovias, hidrelétricas. Vamos perder a Amazônia e colocar o Brasil numa situação de calamidade, de falência completa do agronegócio. Ou esses caras escutam a ciência, ou vão botar o Brasil num estado de calamidade assustador. Foi por isso que eu fiz a divulgação em preprint, pela urgência.