Na tarde deste sábado, 29 de outubro, a deputada federal Carla Zambelli (PL) afirmou ter sido agredida fisicamente no bairro dos Jardins, na zona oeste de São Paulo. “Fui agredida agora pouco, me empurraram no chão. Eram vários. Eles usaram um homem negro para vir para cima de mim”, disse a parlamentar num vídeo postado no Instagram que teve mais de 1,8 milhão de visualizações. A versão foi confirmada em nota de sua assessoria de imprensa. Zambelli então perseguiu o suposto “agressor” e teria efetuado um disparo em plena rua, segundo informou à polícia.
Mas, segundo apurou a reportagem da Agência Pública no local, a versão de agressão foi negada por ao menos quatro pessoas presentes durante a ocorrência em frente ao restaurante japonês Kiichi. Duas delas contam que a deputada teria perdido o equilíbrio e escorregado no meio-fio.
“Ela caiu, e aí eu acho que eles tentaram armar uma situação, entendeu? De que ela estava sendo agredida. Ele correu e ela foi correndo atrás dele, os homens dela também. Foram correndo atrás quando eles começaram a atirar”, conta uma funcionária que trabalha no bar Uliving Jardins, na Alameda Lorena, que fica ao lado do restaurante onde Zambelli almoçava com o filho.
“Ela estava mentindo numa entrevista aqui na frente pra TV Bandeirantes, falando, tipo, coisas absurdas que ele agrediu a ela. Ele não agrediu ela, entendeu?”, explica outro funcionário do estabelecimento – ambos pediram para não ter o nome revelado por temerem represálias.
“Na hora eu corri, porque é muito fácil bala perdida acertar as pessoas, eu tenho casos como esse na minha família, então fico bem assustada”, reforça a funcionária do Uliving Jardins.
Outras duas testemunhas ouvidas pela reportagem fizeram relatos no mesmo sentido e pediram para não serem identificadas.
Estopim, correria e tiros
Foi ao sair do restaurante com o filho que a confusão teria se iniciado, diz Zambelli. A deputada contou ter percebido que um grupo gritava o nome de Lula, quando então foi xingada. A discussão na calçada foi registrada em vídeos que circulam nas redes sociais.
No vídeo é possível ver que a deputada, de camiseta verde, tenta partir para cima do rapaz, que chama Luan Araújo. Neste momento, ela teria escorregado na calçada. O homem então se afasta, mas Carla Zambelli vai atrás. Um outro homem, que também estava no tumulto, saca a arma e também corre. Na sequência, se ouve um disparo.
As testemunhas ouvidas pela reportagem confirmaram o disparo, que pode ser ouvido no vídeo.
Luan corre para dentro de um bar mas é perseguido pela deputada que o persegue com uma arma em riste.
Um dos homens que acompanha Zambelli na perseguição ao rapaz grita: “Deita no chão, vagabundo”. Luan responde gritando: “Vocês querem me matar pra quê, mano?”. O vídeo abaixo mostra o homem afirmando que não vai deitar no chão por não ser bandido.
O vídeo mostra Zambelli agarrando Luan pela camiseta, obrigando-o a pedir desculpas. Ele então responde “Eu não te agredi”.
Nessa hora, o advogado João Guilherme Desenzi, presidente estadual da juventude socialista do PDT, que estava no bar almoçando com amigos, saiu de dentro do estabelecimento correndo com as mãos para cima após ficar encurralado. Ele contou à Pública que a deputada federal apontou uma arma para a cara dele dentro do bar e que pretende fazer um boletim de ocorrência contra ela.
A deputada estava em companhia de dois homens. “Um deles chegou a dar tapas no rapaz perseguido”, afirmou ele. “E a todo momento [ela estava] berrando, deita no chão, deita no chão”. Segundo ele, Luan não reagiu. “Ele só gritava: ‘eu não quero morrer'”.
Segundo relato de Desenzi, Zambelli teria dito: “Você só vai sair daqui a hora que pedir desculpa”.
A parlamentar teria então afirmado que Luan deu “sorte” por ela não poder dar voz de prisão – o que é uma determinação da lei eleitoral.
“Ela ameaçou dar voz de prisão para ele também a todo momento”, reforça Desenzi.
Deputada assumiu autoria do disparo, mas quem atirou foi segurança
No 4º Distrito Policial da Consolação prestaram depoimento Luan Araújo, Carla Zambelli e os dois seguranças que acompanhavam a parlamentar (um homem de camiseta cinza e um de camiseta verde que aparecem nos vídeos). Segundo a advogada Dora Cavalcanti, que defende Luan, o homem de camiseta cinza seria policial. O nome dele não foi revelado. Segundo o jornalista Marcelo Godoy, os homens que estavam com Zambelli são da PM.
As duas armas que aparecem nos vídeos foram apreendidas pela polícia, tanto a de Zambelli quanto a do homem que teria disparado. À imprensa, Zambelli afirmou que foi ela quem teria efetuado o disparo, o que não foi confirmado pela investigação policial. Em um dos vídeos, a deputada não aparece com arma na mão quando o tiro ouvido pelas testemunhas ocorre.
A advogada de Luan, Dora Cavalcanti, também falou à Pública. Ela afirma acreditar que quem disparou a arma de fogo foi o segurança da deputada. Segundo ela, existe “uma distinção entre a deputada federal e seu segurança, que é policial, que fez uso de arma de fogo em espaço público, perseguindo pessoas desarmadas que não têm proteção adicional do mandato parlamentar”.
Na madrugada, a versão de Zambelli caiu por terra e seu segurança foi preso pela polícia civil por ser autor do disparo. Em seguida, foi arbitrada fiança no valor de 1 salário mínimo, que foi paga e então o segurança foi liberado. O caso foi comunicado à Justiça Eleitoral para análise.
O delegado havia anteriormente mandado submeter todo grupo a exame residuográfico para verificar quem tinha pólvora nas mãos.
Homem perseguido pede proteção
Luan, o homem que foi perseguido, é jornalista esportivo em São Paulo e membro da Gaviões da Fiel e da Democracia Corintiana. Dentro da delegacia, a reportagem da Pública presenciou Luan muito nervoso e com medo. Ele comentou com os presentes que temia por sua vida e tinha receio de sair para votar neste domingo. “Eu só quero minha vida de volta”, disse.
Do lado de fora da delegacia, ele declarou à imprensa que é um homem preto, periférico e que tudo foi muito assustador. “Pode acontecer qualquer coisa comigo a qualquer momento agora que veio a repercussão. Então só quero proteção, só quero que me protejam, protejam a minha mãe, a minha família”, disse.
Perguntado se foi vítima de racismo, ele preferiu não comentar. “Eu não vou comentar, mas eu sou um homem preto periférico que apontaram uma arma pra mim em plena luz do dia”. Luan saiu escoltado por membros da Gaviões da Fiel.
Luan, assim como as testemunhas ouvidas pela Pública, diz que não empurrou a deputada bolsonarista.
A Polícia Civil vai investigar possível ocorrência dos crimes de porte ilegal de arma, ameaça, lesão corporal e disparo de arma de fogo. Será a análise do vídeo com a direção do disparo que mostrará a intenção do autor do tiro.
Porte de arma
Zambelli, por ser deputada, pode ter porte de arma emitido pela Polícia Federal. No entanto, uma resolução de 2021 do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) proíbe o porte de armas de civis e policiais que não estejam em serviço um dia antes da eleição a cem metros da seção eleitoral dois dias antes e um dia depois do pleito.
A deputada afirmou que ignorou a resolução de forma consciente. “Não é lei, a resolução é ilegal, e ordens ilegais não se cumprem. Conscientemente estava ignorando a resolução, e continuarei ignorando a resolução do doutor Alexandre de Moraes, porque ele não é legislador. Ele é, simplesmente, o presidente do TSE é um membro do STF”, disse Zambelli a jornalistas.
“Semana passada nós vimos Roberto Jefferson enfrentando todo o arcabouços jurídico, assumindo que podia praticar violência à margem da legalidade e hoje é a vez da deputada recém-eleita, incorrendo na mesma conduta, colocando em risco a vida das pessoas”, comentou Dora Cavalcante.
O outro advogado de Luan, Renan Bohus, afirma que uma troca de xingamentos não justifica o disparo de uma arma de fogo nem a perseguição. Para ele, a deputada estaria utilizando a acusação de agressão física para justificar a reação desproporcional da parlamentar do PL.
Diante da situação, um relatório reservado foi produzido a pedido do gabinete do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. A Corte analisa a possibilidade da deputada federal ter cometido um crime eleitoral por portar arma de fogo em local público na véspera da eleição e tumultuar o processo eleitoral.
Zambelli tentou pautar redes sociais
Uma das maiores influenciadoras bolsonaristas e envolvida em disseminação de campanhas de desinformação, Carla Zambelli correu às redes sociais para tentar transformar o evento em uma campanha narrativa a seu favor. A deputada imediatamente tratou de propagar sua versão em um vídeo no Instagram em que afirmava ter sido agredida fisicamente por um grupo de petistas e ter reagido com a arma para que um deles aguardasse a voz de prisão em flagrante. O vídeo foi assistido por mais de 1,8 milhão de pessoas em poucas horas no Instagram.
O vídeo foi compartilhado por Flávio Bolsonaro no Twtitter, onde teve mais de 165 mil visualizações. Ele apoiou o uso da arma pela deputada: “Carla foi agredida fisicamente, empurrada no chão, cuspida e xingada por um grupo de petistas. Assim petistas tratam as mulheres. Talvez se ela estive com um livro, e não com uma arma, teria sido assassinada. Arma serve pra isso, cidadão de bem se defender de bandidos”.
Embora o presidente tenha se mantido fora da polêmica, outro filho de Bolsonaro entrou para apoia-la. No Twitter, Eduardo escreveu que “Nenhuma mulher merece ser agredida, quanto mais por suas opiniões. Todo apoio a @Zambelli2210”. Teve 22,3 mil curtidas. Fabio Wajngarten seguiu na mesma linha: “Minha solidariedade à Deputada @Zambelli2210 que foi agredida nos jardins em SP enquanto almoçava com seu filho. Sandra, repórter da Band, atestou tudo ao vivo agora no Datena. A equipe da Band também foi ameaçada de forma covarde”. A postagem teve 22,5 mil likes.
Porém, a versão da deputada não vigorou nas redes sociais durante muito tempo. Após vídeos nas redes sociais demonstrarem que Zambelli não foi derrubada no chão e reportagens da imprensa confirmarem isso, influenciadores como o deputado federal eleito pelo PL Nikolas Ferreira apagaram tweets em que afirmavam que ela teria sido agredida fisicamente.
Nos 122 grupos de Telegram monitorados pela Agência Pública, o tom também começou a mudar no início da noite, com integrantes acusando a deputada de querer “prejudicar” o presidente Jair Bolsonaro.
“Vcs vão ver como vai sair na mídia: ZAMBELLI SACA PISTOLA PRA HOMEM NEGRO. E, pelo vídeo, a maluca não foi empurrada. Essa arroz de festa aí só faz prejudicar o capitão!”, escreveu um usuário.
Outro usuário comparou a situação da deputada federal com a do presidente do PTB, Roberto Jefferson, preso na última semana após atirar granadas e fuzilar uma equipe de policiais federais. “Como eu já disse. Temos que abandonar a Zambelli assim como fizemos com o Roberto Jefferson, não podemos aceitar essas coisas prejudicando a imagem do presidente. Se dermos apoio pra ela vai ficar ruim para o presidente”.
*Reportagem atualizada em 30/10 às 9h para incluir prisão do segurança de Zambelli.