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Cofundador da Fiquem Sabendo, Bruno Morassutti explica como o presidente eleito pode revelar segredos do atual governo

Entrevista
30 de novembro de 2022
04:00
Este artigo tem mais de 2 ano

“É por isso que no dia 2 de outubro o povo vai te mandar para casa. Eu vou fazer uma coisa, vou fazer um decreto, acabando com seu sigilo de 100 anos para saber o que tanto você quer esconder por 100 anos”, afirmou o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva em debate na TV Globo, durante o primeiro turno das eleições presidenciais.

A primeira parte dessa promessa se realizou com um mês de atraso: Lula derrotou Bolsonaro nas urnas no segundo turno das votações. Já a segunda tem gerado dúvidas e expectativas sobre o que de fato Lula pode e irá fazer depois da posse.

“Do ponto de vista jurídico o governo pode tomar as medidas que ele achar assim necessárias, e são várias”, diz o advogado Bruno Morassutti, conselheiro da Open Knowledge Brasil e co-fundador da Fiquem Sabendo, agência de dados independente e especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI). Em entrevista à Pública, ele explica que Lula pode sim editar decretos para ampliar o acesso à informação, explicitando ou até mesmo restringindo hipóteses de sigilo que passaram a ser usadas pelo governo Bolsonaro.

“Além disso, se ele quisesse ampliar o acesso à informação para outras áreas além do Executivo, ele poderia apresentar um Projeto de Lei ou uma Medida Provisória para para modificar a Lei de Acesso à Informação. Dependeria do Congresso Nacional, dependeria, mas ele tem poderes para isso”, comenta.

Na entrevista, Morassutti também avalia o papel da Controladoria-Geral da União (CGU) sob Bolsonaro, se houve algum avanço na transparência na atual gestão e lista quais são os temas prioritários nos quais o novo governo deveria agir para aumentar a transparência.

Bruno Morassutti, conselheiro da Open Knowledge Brasil e co-fundador da Fiquem Sabendo, é um homem branco com cabelos pretos. Na imagem, Bruno usa óculos, camisa azul e gravata azul quadriculada.
Bruno Morassutti, conselheiro da Open Knowledge Brasil e co-fundador da Fiquem Sabendo

Quando se fala no fim do governo Bolsonaro é quase automático pensar no sigilo de cem anos. A expressão foi bastante usada pela campanha de Lula, inclusive nos debates. O que é o sigilo de cem anos? Ele é previsto pela Lei de Acesso à Informação? E em que situações ele tem sido aplicado?

Sim, o sigilo de cem anos está na Lei de Acesso à Informação (LAI), mas de uma forma diferente da que tem sido usada. Segundo a Lei, no que diz respeito às informações pessoais que afetem negativamente a honra, a intimidade e a vida privada de pessoas, essas informações podem ter seu acesso restrito pelo prazo de até cem anos. A partir daí já temos vários problemas quando vemos o governo utilizando o sigilo em várias situações.

Primeiro, o sigilo tem que ser exceção e não a regra. Um órgão não poderia de forma alguma aplicar indiscriminadamente o prazo máximo de cem anos. Se a transparência é a regra e o sigilo exceção, é preciso argumentar toda vez que se estiver usando o prazo máximo.

O segundo ponto é que a Lei prevê o sigilo de cem anos apenas para informações relacionadas à vida privada ou intimidade. Isso deveria excluir tudo que diz respeito ao agente público no exercício da função. Se a pessoa é agente público e eu estou perguntando algo relacionado à função pública dele, isso não poderia ser de acesso restrito.

Esse seria o caso do processo administrativo contra o ex-ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello? O governo não concedeu acesso ao processo, mas não se trata de uma informação da vida privada, correto?

Sim. Há inclusive o entendimento pela CGU e outros órgãos de que processos administrativos têm que ser divulgados após o encerramento. A população tem interesse em saber não apenas qual foi a decisão, mas também ter condições de fiscalizar a atividade sancionatória pela administração pública, se ela está punindo e de que forma está punindo agentes públicos que cometem desvios.

Isso é uma questão de transparência e também de segurança. Se eu tenho acesso a uma decisão que foi usada contra mim, por exemplo, e sei que ela foi aplicada contra outras pessoas, eu posso comparar e ver se pessoas que passaram pela mesma situação tiveram a mesma decisão. 

O governo Bolsonaro aumentou a utilização do sigilo de cem anos?

Sim, houve um aumento, mas não foi um aumento indiscriminado e sim um aumento em casos estratégicos — e isso é o mais preocupante.

É esse o caso das sanções por emprego de mão de obra análoga à escravidão, em que o governo chegou a ensaiar a utilização de sigilo. O mesmo tem acontecido com casos de multas ambientais e com os dados de proprietários do Cadastro Ambiental Rural. O governo tem negado essas informações.

Até mesmo o cartão de vacinação do presidente, que ao meu ver é uma informação pública. Ao contrário de nós, ele não é um cidadão qualquer. Quanto mais poderes se tem, juridicamente, mais restrições à direitos e menos intimidade o cidadão deve ter. 

Lula pode reverter o sigilo desses casos? Na prática, quais são os atos que ele precisaria tomar para reverter os sigilos impostos no governo Bolsonaro?

Sim, ele pode. E existem várias formas. A primeira delas: por mais que o presidente não discuta casos isolados, ele nomeia pessoas que vão estar em cargos chaves na administração pública. Além dos próprios ministros, há também os membros da Comissão Mista de Reavaliação de Informações, que é o órgão máximo que vai estabelecer o entendimento federal sobre o acesso à informação.

O segundo ponto é o exemplo: o Supremo Tribunal Federal (STF) foi o primeiro órgão do Judiciário a divulgar os contracheques dos magistrados. A partir do momento que ele fez isso, outros órgãos do Judiciário começaram a fazer o mesmo, surgiram leis que obrigaram a transparência dos contracheques. Isso também aconteceu no restante do Executivo quando começou a divulgação ativa de informações pela Presidência. Então, o exemplo arrasta. Ele gera a percepção de que se o chefe está fazendo, o resto também tem que fazer.

Além disso, há também a possibilidade do presidente Lula alterar o decreto 7724 que regulamenta a LAI no Governo Federal, e tornar mais clara a interpretação do decreto em algumas situações que hoje são usadas para impedir o acesso às informações.

Seria essa então a principal canetada que Lula poderia dar para acabar com o sigilo?

Sim, ele poderia fazer isso. Além disso, se ele quisesse ampliar o acesso à informação para outras áreas além do Executivo, ele poderia apresentar um Projeto de Lei ou uma Medida Provisória para para modificar a Lei de Acesso à Informação. Dependeria do Congresso Nacional, dependeria, mas ele tem poderes para isso.

Do ponto de vista jurídico o governo pode tomar as medidas que ele achar assim necessárias, E são várias. A gente precisa ver como é que vai ser na prática. O discurso de transparência ele é muito fácil de fazer, mas difícil de aplicar. Mas poderes jurídicos para tornar o governo mais transparente eles têm. 

Quais pontos faria sentido que Lula mudasse na Lei de Acesso à informação para aumentar a transparência pública?

O presidente poderia tornar claro que não existe sigilo por prazo indeterminado, independentemente da hipótese do sigilo, e mesmo se ela for vinculada a uma Lei que não seja a Lei de Acesso à Informação. Ele poderia determinar que o artigo 31 da LAI só se aplica para informações particulares, e não sobre agentes públicos ou sobre pessoas que se relacionam com agentes públicos.

O presidente também poderia ampliar a participação da sociedade civil no funcionamento do Sistema Federal de Acesso à Informação. Hoje nós temos o Conselho de Transparência Pública e o Comitê Gestor da Infraestrutura Nacional de Dados Abertos, que são instâncias consultivas, e não podem deliberar. Seria importante que pudéssemos ter algum tipo de participação mais ativa da sociedade civil, mesmo que não seja obrigando o governo a concordar com as decisões, mas ao menos forçando a administração a ter que decidir e responder de forma fundamentada. Toda vez que há uma negativa vazia, sem fundamentação, ela é uma por si só uma negativa fácil. No momento que o governo tem que se explicar, dizer claramente porque não abriu acesso a uma informação, isso gera uma melhoria no processo democrático. 

Você citou o caso do cartão de vacinação de Bolsonaro. Quem definiria o acesso a esse dado? Lula teria poderes para abrir essa informação?

Em tese, sim. Os órgãos vão permanecer lá. O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) vai seguir existindo, a Casa Civil, as pessoas que estão lá é que irão mudar. Se elas tiverem outros entendimentos em matéria de transparência pública, esse acesso poderia mudar.

Qual órgão de fato vai conceder acesso a essa informação depende da organização interna, poderia ser a própria Presidência, poderia ser o GSI. Vai depender de quem o presidente colocar nessas funções.

Já o processo administrativo do Pazuello depende das Forças Armadas, correto? Lula poderia agir nesse caso?

Sim, como o chefe do Poder Executivo ele, entre aspas, tem todas as funções do governo, e delega para outras pessoas as suas funções. Ele poderia eventualmente modificar esses atos de acesso às informações do processo ou determinar ao novo comandante do Exército ou quem quer que ele atribua essa função que ele realizasse a mudança na decisão. E se o presidente quiser criar um um temporariamente uma comissão específica para reavaliar atos do governo, ele poderia.

Algo como criar uma comissão do sigilo?

Eu prefiro chamar de grupo de trabalho, mas sim.

E quanto aos gastos do cartão corporativo? Em outros governos já havia problemas de transparência. Hoje essa é outra informação guardada por Bolsonaro…

Algumas informações estão disponíveis, mas nem todas. O cartão corporativo sempre foi um tema difícil na prática de quem trabalha com transparência pública. Claro, temos motivos razoáveis para certo sigilo existir. E os avanços graduais no geral foram motivados por escândalos. Hoje a gente tem acesso aos quantitativos e a algumas poucas despesas específicas. Mas se você pedir para acessar o recibo do uso de um determinado dia, é bastante provável que você não consiga o acesso. 

Desde o início do governo Bolsonaro, houve ataques à Lei de Acesso à Informação e à transparência: o vice-presidente Hamilton Mourão, em um dos primeiros atos do governo, em janeiro de 2019, tentou alterar quem seriam as autoridades capazes de colocar informações sob sigilo. O decreto foi derrubado na Câmara no mês seguinte. Qual a sua avaliação desses quase quatro anos de governo? Quais foram os principais retrocessos? E houve algum avanço?

Eu acho difícil dizer categoricamente que só houve retrocessos. Houve, sim, mas também houve avanços.

Um exemplo é a Lei do Governo Digital, que trouxe muitos pontos em relação à transparência pública — ela permite que a gente faça requerimentos de abertura de base de dados em todo o país, e exige a publicação de vários tipos de informações por transparência ativa, como contratos, convênios, multas etc. E ela foi sancionada no governo Bolsonaro.

Outro ponto foi o decreto de transparência do Sistema S. E também alguns acordos internacionais elaborados pelo Legislativo e ratificados pelo Executivo que serão bastante importantes em matéria de transparência.

Do ponto de vista de atos normativos, de decretos para cima, houve sim esses avanços. O retrocesso, do meu ponto de vista, ocorreu na aplicação da Lei de Acesso.

Houve uma ampliação da utilização de hipóteses para restringir o acesso a informações, da interpretação da Lei. O que que eu quero dizer com isso? O “espírito” da Lei de Acesso é evitar o sigilo eterno de informações públicas. Antes, não havia prazo na legislação [para liberação de informações]. Com isso, tínhamos cenários nos quais o governo poderia ir prorrogando o sigilo de forma indeterminada, até não conceder efetivamente acesso.

É óbvio que podemos ter informações que são restritas temporariamente, com o sigilo sendo bem fundamentado e aplicado de modo razoável. Mas isso deve ser temporário, e não negado por um tempo indeterminado. O que percebemos é que, nos últimos anos, o governo usou uma série de hipóteses, de interpretações, com base em pontos da Lei que são mais vagos, para manter o sigilo eterno.

Existem informações sobre a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o sistema aeronáutico, o sigilo bancário, fiscal, empresarial, que vão escapando da Lei de Acesso porque o governo vai permitindo interpretações abusivas da lei. Tanto a Controladoria-Geral da União (CGU), quanto a Advocacia-Geral da União (AGU), quanto a própria Casa Civil vão permitindo esse esvaziamento para hipóteses cada vez mais amplas.

Você poderia dar exemplos?

Pela Lei de Acesso, toda vez que um órgão coloca uma informação sob sigilo, ele tem três opções: declarar como reservado (5 anos), secreto (15 anos) ou ultrassecreto (25 anos). Além disso, o órgão precisa publicar uma lista dessas informações, com o número que identifique esses documentos, e após o encerramento desse prazo essa informação tem que ser divulgada.

O que que acontece? Acontece que quando a gente solicita a informação depois que passa o prazo, a Abin tem dito que o prazo da lei de acesso passou, mas o artigo 22 da LAI permite outras hipóteses de sigilo e a Lei do Sistema de Inteligência Brasileira diz que as informações relacionadas ao sistema de inteligência brasileira são sigilosas. Por causa disso, e como essa lei não coloca prazo, o órgão diz que não pode fornecer a informação por tempo indeterminado. 

Isso não faz sentido porque a própria Lei de Acesso estabelece os casos de sigilo, dentro das opções para isso (reservado, secreto ou ultrassecreto). O órgão não poderia simplesmente dizer: “olha, temos aqui uma outra situação e vamos usar outra Lei para não fornecer a informação”. No limite, isso abriria a possibilidade do governo usar outras leis antigas para não fornecer informações, como decretos da época da ditadura, que não foram revogados e que falam que o governo poderia revogar informações com um prazo indeterminado.

Foi por isso que foi editada a Lei de Acesso. Até a CIA, o Departamento de Estado Americano, a NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA), o FBI, essas grandes agências de inteligência com volume de atividades muito maiores que a Abin, divulgam informações por transparência ativa e passiva. Não é porque uma informação está relacionada à atividade de inteligência que ela não possa ser pública nunca.

A Abin começou a aplicar isso e depois virou uma regra. 

Como você avalia o papel da CGU no acesso à informação durante o governo Bolsonaro?

A CGU avançou em alguns pontos de gestão de acesso à informação e criou um sistema que foi bem importante, o Fala BR, que unificou a utilização dos mecanismos de ouvidoria não só no Governo Federal, mas para governos estaduais e municipais. Isso foi bem positivo.

Mas a CGU restringiu a aplicação da LAI em razão de alguns entendimentos que antes ela não tinha. Ela passou a não aceitar alguns recursos que antes aceitava, e passou a não ter um papel de intervenção nas decisões de outros órgãos, apenas de verificar se o procedimento foi correto ou não — antigamente, a CGU fazia uma interlocução maior para ver se realmente, do ponto de vista de mérito, a decisão estava correta. Isso representou um retrocesso na nossa opinião. E temos um cenário em que a CGU tem cada vez menos servidores, e com isso eles não podem mais abraçar tudo o que eles abraçavam.

A gente acompanhou casos em que se verificou uma mudança de postura. Houve algumas informações que passaram a ser negadas. Por exemplo, antigamente, era muito mais difícil a CGU aceitar uma resposta de um órgão dizendo que o acesso à informação iria gerar muito trabalho. Ela também dificilmente aceitava negativas de sigilo eterno, no geral, e determinava que se estabelecesse um prazo. E isso passou a ser menos comum. 

Um dos órgãos que mais tenho visto argumentar que não pode fornecer informações por gerar trabalho adicional tem sido o Itamaraty. Como você avalia o papel do Itamaraty no acesso à informação e se isso piorou com Bolsonaro?

Na realidade, não chega a ser uma grande novidade. O Itamaraty sempre teve dificuldade com a transparência pública, historicamente é um órgão contra o acesso à informação. Não é uma posição apenas deste governo, o que aconteceu é que, como a CGU passou a rever menos os entendimentos do Itamaraty, a gente passou a ter mais dificuldade de acessar determinadas informações. 

Quais órgãos costumam ser os mais contrários ao acesso à informação?

Se você ver os pareceres da edição da Lei de Acesso, os órgãos que foram mais contrários à Lei eram o Itamaraty, os comandos das Forças Armadas e o Ministério da Defesa. São esses os que têm mais dificuldade com o Acesso à Informação.

Para finalizar, quais seriam as informações que você acha mais importantes que o novo governo aumente a transparência?

A primeira seria acabar com o sigilo de documentos que baseiam a atividade normativa do Poder Executivo Federal. Precisamos saber o motivo de o governo estar sancionando ou vetando algum decreto ou lei.

A segunda seria ter acesso às informações sobre beneficiários finais empresas. Existe um movimento internacional de combate à corrupção que defende que, na consulta do CNPJ, a gente possa ter acesso não apenas às pessoas físicas dos sócios, mas quem é que está na outra ponta recebendo o dinheiro. Isso está sendo cada vez mais exigido para fins de combate à corrupção, evasão de divisas, mas o Brasil ainda dificulta o acesso a essas informações por decisão da Receita Federal. 

O Cadastro Ambiental Rural deveria ser aberto com o nome de todos os proprietários. A gente deveria ter acesso no mesmo sistema de servidores civis todas as sanções aplicadas contra agentes militares. E inquéritos policiais concluídos que não estejam expressamente sobre segredo de justiça deveriam estar abertos. O Governo Federal poderia determinar a abertura a partir de uma ação do Ministério da Justiça. Já seria um avanço bem significativo.

E poderíamos ter um avanço, talvez em grandes capitais, de alguma espécie de controle do Governo Federal, de exigir algum tipo de comprovação de medidas de transparência para realizar repasses, por exemplo. 

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