Após comemorarem a criação, por meio de um dos primeiros decretos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de uma nova secretaria voltada para comunidades quilombolas e tradicionais, entidades representativas do setor se disseram desapontadas com o processo político que levou à escolha do nome para o novo órgão e pediram protagonismo na execução das políticas públicas.
O cargo em questão é o comando da nova Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar), uma das pastas recriadas por Lula. Entre as várias atribuições da secretaria, está a de “promover, fortalecer e articular as políticas públicas de reconhecimento territorial e acesso à terra por quilombolas e povos e comunidades tradicionais dos campos, das florestas e das águas”.
A expectativa do movimento negro e quilombola é que o novo órgão coloque em andamento os mais de 1.800 processos de regularização de territórios quilombolas que ficaram paralisados ao longo do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Hoje há pouco mais de 200 territórios regularizados no país. A criação da secretaria foi uma das ideias discutidas pelo grupo de transição do setor de desenvolvimento agrário montado pelo governo Lula após o segundo turno das eleições, em 30 de outubro.
Em 2 de janeiro, logo após a posse de Lula, a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e 27 entidades da sociedade civil enviaram uma carta ao governo pela qual indicaram ao cargo de secretária o nome da servidora pública do Incra Robervane Severina de Melo Pereira do Nascimento, “mulher preta e militante, mãe de quilombolas, engenheira agrônoma, perita federal do Incra há 17 anos, mestre e doutora em Agronomia, com vasta experiência acadêmica na área de ciências agrárias, com ênfase em ciência do solo, no estudo da qualidade do solo, avaliação do uso e ocupação atual das terras”.
Robervane foi uma das coordenadoras do grupo de transição agrário no final do ano e exerceu cargos no tema específico quilombola no Incra, como o de coordenadora-substituta do setor em Brasília de 2011 a 2014. Segundo a carta, ela “tem contribuído para a visibilização das especificidades dos quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais na estrutura do novo Ministério, bem como para a diminuição da situação de vulnerabilidade desses segmentos, ligada a dificuldade do acesso à terra e ao território, e a redução da violação dos direitos humanos à alimentação adequada dos povos indígenas, quilombolas, PCTs [povos e comunidades tradicionais]”.
Os subscritores da carta pediram protagonismo na nova secretaria. “Participamos ativamente no processo de eleição e construção do Governo Lula, tendo atuado no período de transição governamental e, por isso, conseguimos firmar presença em estruturas específicas da administração do governo federal para que todos os segmentos de povos e comunidades tradicionais possam atingir o acesso à terra, inclusão produtiva e participação efetiva no processo de reconstrução social e política do país. Ressaltamos que a Política de Desenvolvimento dos Povos Comunidades Tradicionais é fruto de uma construção popular efetivada durante os primeiros anos do Governo Lula e que é a base da nossa afirmação e resistência dos territórios tradicionais frente a destruição dos diferentes biomas brasileiros pelos projetos de morte”, diz a carta.
Além da Conaq, subscreveram a carta entidades como o CNS (Conselho Nacional das Populações Extrativistas), a Rede GTA (Grupo de Trabalho Amazônico), a Apoinme (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo) e o MIQCB (Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu).
Nos últimos dias, contudo, o movimento quilombola recebeu a informação de que o novo secretário deverá ser o historiador Edmilton Cerqueira, filiado ao PT da Bahia e integrante do MNU (Movimento Negro Unificado), entidade criada em 1978. As entidades reconhecem que ele tem experiência no tema — foi coordenador-geral das Políticas para Povos e Comunidades Tradicionais do MDA durante o governo Dilma Rousseff – mas entendem que Robervane Nascimento participou de toda a construção da nova secretaria, tem a prioridade no apoio do movimento e seria o nome natural para ocupar a secretaria.
Um dos coordenadores nacionais da Conaq, Denildo Rodrigues de Moraes, o Biko, disse à Agência Pública que o movimento “ajudou a construir esse espaço”, a nova secretaria, tanto antes quanto durante a transição de governo. “A secretaria para nós é muito importante. Qualquer determinação sobre a secretaria deveria passar pelo crivo das comunidades quilombolas e tradicionais. É como gerar o filho por nove meses e depois não avançar na criação. Essa indicação [de Cerqueira] não foi construída conosco”, disse Biko.
“É uma luta histórica dos povos tradicionais e quilombolas. O governo Lula, assim como fez com os indígenas, prometeu esse espaço aos quilombolas, achamos que é um espaço importante para avançar na regularização fundiária dos territórios.”
O novo ministro do MDA, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), disse à Pública que recebeu os representantes da Conaq em audiência no último sábado (14) e propôs “a participação da Conaq no Ministério e no Incra”. A Conaq, segundo o ministro, ficou de responder nesta terça-feira (17). Ele também confirmou que Edmilton Cerqueira é o escolhido para comandar a secretaria.
Após a reunião, Biko, da Conaq, disse à Pública que o cargo sugerido pelo MDA foi de uma diretoria que fica subordinada à secretaria. A Conaq ainda não decidiu qual resposta dará, mas a tendência é que concorde com a indicação de um nome para a diretoria — não o de Robervane. As críticas ao processo de escolha na secretaria permanecem, disse Biko, e o movimento promete “cobrar o governo de todas as promessas para o setor”.
A Pública procurou, por telefone, mas não conseguiu contato com Edmilton Cerqueira para ouvi-lo a respeito do novo cargo.