Ao falar sobre os desafios da nova rotina profissional, a atual secretária Nacional de Promoção de Defesa das Pessoas LGBTQIA+, Symmy Larrat, lembra com humor das suas primeiras reações ao ser cogitada para o cargo: “Até comentei com a minha mãe: Governo Federal? Não quero, fique tranquila. Vão me chamar e eu vou dizer não!’. Mas quando Silvio [Silvio Almeida, ministro de Direitos Humanos] fez o convite, ele chegou num lugar diferente, chega num formato diferente e isso me fez mudar de ideia”, relembra: Ela foi nomeada há pouco mais de uma semana para comandar a secretaria inédita, subordinada ao Ministério dos Direitos Humanos.
Ativista, jornalista e paraense da cidade de Cametá, Symmy Larrat é a primeira travesti a ocupar o segundo escalão do Governo Federal. Antes, foi coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT no governo de Dilma Rousseff (PT).
Expandir o acesso à inclusão, com um recorte geográfico, “é sua missão principal”, diz. “Se isso é aplicável para uma corpa trans, como a minha, é aplicável ao homossexual masculino, a homossexual feminina, que saem da floresta para um grande centro”, reforça. “O doutorado que ela quer, a saúde que ela precisa. As pessoas não deveriam sair das suas próprias cidades para buscar essas coisas”.
A secretária considera urgente “reconstruir políticas públicas para pessoas LGBTI+, que foram abandonadas”, mas confessa que tem sido difícil compreender as reais demandas, diante do apagão de dados e de registros da gestão anterior. “As coisas, mesmo quando aconteciam, aconteceram com muito obscurantismo. Está no escopo [dos documentos] trechos sobre populações vulneráveis, mas você não vê a especificidade LGBT. Você não vê, sobretudo, a identidade de gênero, que simplesmente não aparecia no governo anterior”.
Ela pretende implementar, em nível nacional, o programa transcidadania, que coordenou em São Paulo, durante a gestão de Fernando Haddad (PT). A iniciativa promove a reintegração de pessoas transgêneras, com transferência de renda e bolsas para educação e qualificação profissional. Larrat também elenca como prioridade as ações de atenção à segurança entre as prioridades e defende a transversalidade do recorte LGBTQIA+ nas políticas públicas do Governo Federal.
“É nossa tarefa convocar e apontar demandas com o nosso recorte, mas a gente vai fazer um diálogo fraterno com todos os ministérios. Estamos levantando em todas as pastas o que é que tem pra ser feito dentro da pauta LGBTQIA+ e a gente vai bater na porta de todo mundo”, diz.
Veja os trechos da entrevista da secretária Symmy Larrat à Agência Pública.
Queria começar te perguntando sobre o ineditismo do cargo que você assumiu e da relevância que ele tem. Como foi para você receber esse convite?
Eu seria mentirosa se dissesse pra ti que não esperava que meu nome fosse ventilado, era algo natural. No processo de transição a gente já sabia sobre a secretaria nacional, e eu sabia que naturalmente as pessoas iam pensar no meu nome. Mas eu te confesso que estava num bom momento da minha vida: atuando no terceiro setor, morando perto do trabalho, vivendo sem muitos olhares em cima de mim. Eu estava vivendo uma vida como há muitos anos não vivia. Agora se eu for na esquina comprar pão tem alguém olhando pra mim.
Eu tinha dito pra minha mãe assim: Governo Federal? Não quero, fique tranquila. Vão me chamar e eu vou dizer não!’. Mas quando Silvio [Silvio Almeida, ministro de Direitos Humanos] fez o convite, ele chegou num lugar diferente, chega num formato diferente e isso me fez mudar de ideia. Me fez pensar: eu vou continuar dando mais tempo para um projeto mais coletivo e vou me jogar nesse processo. É um pouco sobre como chega esse convite, por quem chega. Eu tenho uma confiança enorme no Silvio e muita similaridade na maneira de pensar e de agir. Obviamente, consultei muitos parceiros do movimento social e tinha uma certa unanimidade. Assim, um “tem que ser você”, então aceitei.
Até pelo ineditismo, há muita expectativa sobre as ações e políticas públicas que podem ser criadas a partir da sua secretaria, sobretudo depois de uma gestão do Ministério de Direitos Humanos marcada pelo retrocesso nos direitos LGBTQIA+. Certamente você tem muitas prioridades à frente do cargo, mas quais ações considera urgentes?
Reconstruir políticas públicas para pessoas LGBTI+, que foram abandonadas. As coisas, mesmo quando aconteciam, aconteceram com muito obscurantismo. Está no escopo [dos documentos] trechos sobre populações vulneráveis, mas você não vê a especificidade LGBT. Você não vê, sobretudo, a identidade de gênero, que simplesmente não aparecia no governo anterior.
A retomada do conselho nacional [de Direitos Humanos], e que ele seja um conselho que saia do armário também. Que diga com todas as letras que ele é LGBTQIA+, porque nós queremos internacionalizar essa relação, então ele tem que ser um conselho digno de ser apresentado para a sociedade.
Outra emergencialidade é fazer valer as conquistas que nós tivemos nos últimos anos, sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Eu tô falando da criminalização da homotransfobia. A gente precisa entregar as normativas para que isso aconteça de fato na ponta [diz, se referindo às barreiras para a aprovação de uma lei que criminalize a homofobia, equiparada ao crime de racismo, desde de 2019, por decisão do STF].
No início de janeiro, já no novo governo, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) atentou, em nota pública, para a falta de “informações, menção ou localização da política nacional de saúde LGBT e do processo transexualizador” na nova estrutura do Ministério da Saúde. Embora essa seja uma questão de outra pasta, qual o papel da sua secretaria nessas situações?
Retomar a política integral de saúde é algo que precisa ser feito, para além do processo transexualizador. Ampliar o tamanho do serviço, que é hoje ofertado é algo que a gente precisa fazer. É uma demanda direta para o Ministério da Saúde, mas a lógica do governo foi feita para que a gente converse. É nossa tarefa convocar e apontar demandas com o nosso recorte, mas a gente vai fazer um diálogo fraterno com todos os ministérios. Estamos levantando em todas as pastas o que é que tem pra ser feito dentro da pauta LGBTQIA+ e a gente vai bater na porta de todo mundo.
Estamos no país que mais mata transexuais no mundo, de acordo com dossiê elaborado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e divulgado em 2021. Como enfrentar essa violência?
Uma coisa que é emergente é a segurança. Os canais de promoção da segurança dessas pessoas precisam de investimento e eu não estou falando só do Disque 100, eu tô falando da impunidade mesmo. Infelizmente no cenário que temos, a rua para um corpo travesti é o mais inseguro. Oferecer segurança é urgente. A gente precisa promover esses caminhos também.
Você é ex-presidenta da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), maior organização do gênero do continente. O governo anterior estabeleceu algumas alianças internacionais antidireitos LGBTQIA+ e contra direitos sexuais e reprodutivos, como foi o Consenso de Genebra, assinado pela ex-ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, do qual o Brasil saiu recentemente. Como reposicionar o Brasil nessas relações?
É essencial a retomada do diálogo internacional porque tem acontecido coisas muito importantes na América Latina com a pauta LGBTQIA+. Mas a gente precisa repactuar as relações. Porque essas relações são construídas a partir de posicionamentos, e tudo tem que ser consensuado. A gente olha pra Argentina, Cuba, México, Colômbia, tem coisas interessantes acontecendo. O Uruguai, por exemplo, teve avanços palpáveis na temática da proteção institucional à pessoa LGBTQIA+ e é reconhecido pela ONU em políticas antidiscriminatórias. Precisamos ver como certas coisas foram conquistadas.
O programa Transcidadania, que você coordenou na capital paulista, a partir de 2015, na gestão do então prefeito Fernando Haddad, é apontado como uma experiência bem sucedida. Alguns estados até tentaram replicar a iniciativa, pautada na transferência de renda e na oferta de uma bolsa para investimento na educação e qualificação profissional. Atualmente, o valor da bolsa-auxílio oferecida pelo programa, que foi mantido pela prefeitura de São Paulo, é de R$ 1,386. Há uma seleção de beneficiários, que devem comparecer ao centro de educação do programa pela duração de dois anos e recebem atendimento psicossocial, pedagógico e médico. Você pretende implementar esse programa em nível nacional?
Com toda certeza é uma das primeiras coisas que vou querer fazer. Mas não basta pegar o formato do transcidadania e universalizar. As negociações desde 2015 mostraram que os outros estados não conseguiram fazer da mesma forma, porque cada lugar tem as suas particularidades. Então, a gente sabe que não é um modelo que pode ser importado no mesmo formato. Mas a estruturação do transcidadania, nas bases do transcidadania, possui uma fórmula que precisa ser replicada nacionalmente. Não só para população trans, mas para população LGBTQIA+ como um todo e para a juventude negra. Um formato que cabe a transgeneridade, consegue abrigar todas as interseccionalidades.
Existe uma previsão para as primeiras ações do transcidadania em nível nacional?
A gente precisa saber como potencializar e transformar isso num formato federalizado. Esse é o desafio. Eu só não sei em quanto tempo a gente consegue isso, porque política pública não pode ser feita a toque de caixa. Fazer a toque de caixa é não querer fazer. Política pública requer paciência. Mas com toda certeza é uma das primeiras coisas que eu vou querer fazer. Falar sobre isso e fazer as pactuações. Essa vontade é nossa.
Essa questão da regionalização das políticas públicas para pessoas LGBTQIA+ é interessante porque as realidades dos estados são muito diferentes. Também tem relação com sua história porque você é paraense e precisou sair da sua cidade para estudar na capital. E, ao longo da vida, fez outros deslocamentos para trabalhar também.
Uma política pública só é efetiva quando ela pode ser aplicada em qualquer lugar desse país. Qualquer formato que a gente fizer, a gente tem que pensar para existir lá no Marajó, lá no Acre, porque se ela puder existir lá, o resto é complemento e adaptação. Eu te digo isso porque a população LGBTQIA+, especialmente a população transgênera, sofre o que a gente chama de migração forçada. A pessoa sai do seu local de origem para ser quem ela quer ser nos grandes centros urbanos e esse movimento pode ser muito doloroso. A política pública deve existir, então, para que a pessoa não precise sair do seu lugar. As pessoas precisam migrar porque querem sair, não porque esse ou aquele serviço ou oportunidade só existe em um lugar.
Expandir o acesso à inclusão, com um recorte geográfico, é minha missão principal. Se isso é aplicável para uma corpa trans, como a minha, é aplicável ao homossexual masculino, a homossexual feminina, que saem da floresta para um grande centro. O doutorado que ela quer, a saúde que ela precisa. As pessoas não deveriam sair das suas próprias cidades para buscar essas coisas.