O atropelamento que o governo federal sofreu nesta semana, no Congresso Nacional, ao ver as principais ações que havia tomado na área ambiental serem desmontadas pela bancada ruralista e membros do Centrão, exibiu uma cena inédita. Até agora, não se tinha notícia de um cenário como o atual, em que parlamentares decidiram rejeitar a organização estatal montada pelo presidente da República, interferindo diretamente na estrutura dos órgãos.
Numa lapada só, o relatório final que trata da Medida Provisória da reorganização da Esplanada (1.154/23), e que foi aprovado por uma comissão especial parlamentar, impôs a retirada da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Ministério do Meio Ambiente. A ANA ficaria sob o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional. O CAR passaria para o comando do Ministério da Gestão. De quebra, o texto determina a saída da demarcação de terras indígenas do novo Ministério dos Povos Indígenas, repassando essa atribuição para a pasta da Justiça e Segurança Pública.
Ainda que parte do governo federal tenha observado essas adulterações com certa passividade, houve quem reclamasse. O ministro Flávio Dino foi às redes sociais para dizer que o governo federal é quem tem a competência de definir como funcionará a sua estrutura e que, se assim quiser, pode fazer isso por meio de decreto presidencial, desde que isso não implique na criação de novos órgãos públicos, nem aumento de gastos.
Os ataques da Câmara prosseguiram. Em outra medida provisória (1.150/22), a Câmara ignorou decisões que já tinham passado pelo Senado e, com apoio do presidente Arthur Lira (PP-AL), decidiu retomar medidas que fragilizam a proteção da Mata Atlântica. Foi a vez de o senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) ir às redes sociais dizer que vai ao Supremo Tribunal Federal (STF) “para corrigir o absurdo”.
A Agência Pública ouviu juristas e especialistas no assunto para entender se as decisões tomadas pelos parlamentares poderiam ser reformadas, seja por decreto ou por questionamentos junto ao Supremo. A resposta é: sim. A questão seguinte é calcular o custo político destas decisões.
O ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto, que cita de cabeça os artigos e parágrafos da Constituição Federal, explica que, de fato, a Constituição reserva ao presidente da República o poder de definir, por meio de um decreto, como vai organizar a administração federal em sua gestão.
“A Constituição prevê essa possibilidade, quando não implicar aumento de despesas, nem criação ou extinção de órgãos públicos. Se isso ocorrer, é preciso lei, ou seja, deve passar pelo Congresso. No caso concreto desta medida provisória, que será convertida em lei, o que vemos é que ela foi adulterada pelo Congresso”, disse Ayres Britto. “Houve um desvio de objeto, seu propósito foi diametralmente adulterado. É um tipo de boicote.”
O ex-ministro do STF lembra ainda que a administração pública é regida pelo princípio da eficiência, conforme previsto na Constituição. “O Congresso, ao alterar a medida provisória, ignora esse princípio, porque retira órgãos de ministérios especializados para entregá-los a outros que não têm a mesma especialização”, comentou. “Isso é um boicote explícito ao princípio da eficiência.”
Na avaliação de Ayres Britto, os parlamentares cometeram um equívoco flagrante. O jurista cita uma frase do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht para ilustrar a situação. “Brecht disse o seguinte: ‘há quem prepare cuidadosamente o seu próximo erro’. O Congresso preparou cuidadosamente o seu próximo erro. E que erro? Boicotar o princípio da eficiência administrativa, deixando de prestigiar órgãos especializados em determinadas atividades, para embaralhar as coisas.”
Se podia fazer as mudanças por decreto, por que não o fez?
O fato de o governo ter editado uma medida provisória para reestruturar os ministérios federais deve-se, na prática, a um grande conjunto de medidas que, dada a sua complexidade – como a extinção de pastas e criação de outras –, exigia que este caminho fosse trilhado, ou seja, não se tratava apenas de remanejamento de órgãos dentro de ministérios. Fora isso, há ainda uma questão de tradição.
“Se podia ser feito por decreto, como defendeu Flávio Dino, por que recorreu a uma medida provisória? Há uma tradição de que essas alterações em ministérios sejam feitas por MP, para serem submetidas ao Legislativo, justamente para se ter um diálogo com o Congresso e não ser uma coisa impositiva”, afirma o advogado Gustavo Mascarenhas, doutor pela Universidade de São Paulo e professor no IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), em Brasília.
Foi o que aconteceu durante as gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro, por exemplo, que também lançaram mão de MPs para reorganizar a máquina federal. A reorganização de órgãos internos, porém, pode ser efetivamente feita por decreto presidencial.
Mascarenhas defende, porém, o direito do Congresso em fazer as alterações. “Se eu enviei uma medida provisória, eu não posso te chamar para debater o tema e, depois, se eu não gostar do resultado, dizer, ‘olha, apaga isso, porque quem ganhou o debate fui eu’ e ponto final”, afirma o advogado. “Se o governo decidir fazer isso por decreto, terá de pagar um custo político. Se resolver levar ao STF, são grandes as chances de a mesa do Congresso judicializar a questão.”
As MPs, uma vez publicadas, têm validade imediata, pelo prazo de 90 dias. Se necessário, esse prazo pode ser renovado por mais 90 dias, como aconteceu com a MP da reformulação da Esplanada. Ou seja, ela teve duração de seis meses, prazo que acaba na próxima quinta-feira, 1º de junho. Isso significa que, se o texto não for aprovado até essa data pelo Congresso, o governo Lula seria obrigado a retomar toda a estrutura ministerial anterior, ou seja, aquela que tinha sido implementada por Bolsonaro.
Lula, por exemplo, criou pastas novas, que simplesmente deixariam de existir se a MP caducar, como o próprio Ministério dos Povos Indígenas. Por isso, o interesse geral do governo era aprovar o texto, mesmo que este passe a incluir mudanças feitas pelos parlamentares durante a sua tramitação no Congresso.
Eduardo Ubaldo Barbosa, mestre e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília e sócio de Ubaldo Rabelo Advogados, lembra que a possibilidade de fazer as mudanças na gestão federal via decreto se deve a uma emenda constitucional feita em 2001.
“O objetivo dessa emenda foi, justamente, permitir de maneira expressa que o presidente possa, por decreto, tratar da organização e funcionamento da administração federal. Essa emenda reformulou amplamente as regras alusivas às medidas provisórias”, comentou.
Apesar de reconhecer o direito do governo federal em fazer uso deste instrumento, Barbosa diz não ter identificado nenhuma irregularidade nas mudanças feitas pelo Congresso. “Particularmente, não vejo nenhum óbice na decisão que foi tomada pela comissão mista do Congresso, não enxergo inconstitucionalidade.”
Segue o jogo
Mesmo que as alterações feitas nas medidas provisórias sejam aprovadas pela maioria dos parlamentares, seus textos ainda podem ser alvo de veto pelo presidente Lula. Acontece que esse veto, se ocorrer, também pode ser derrubado posteriormente pelo Congresso, por meio de edição de um projeto de decreto legislativo apresentado por algum parlamentar. Para que isso se confirme, porém, é preciso ter o voto da maioria absoluta das casas – metade mais um –, ou seja, 41 senadores e 257 deputados.
Outro caminho possível seria o questionamento dos atos dos parlamentares junto ao Supremo Tribunal Federal, diz Acacio Miranda da Silva Filho, doutor em Direito Constitucional pelo IDP. Isso se daria, por exemplo, por meio de uma ação conhecida como Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), instrumento que foi muito usado durante a pandemia, por exemplo, para liberação de recursos e outras medidas urgentes. “Esta possibilidade é, inclusive, uma regra sujeita ao que chamamos de simetria constitucional”, comentou.
Diante do imbróglio, o governo faz o cálculo político, avaliando se há espaço para chegar a um consenso ou se parte para a briga de vez. “É aqui que entra o estadista, para congregar, conciliar, harmonizar ou partir para o confronto”, diz o ex-ministro Carlos Ayres Brito. “Isso depende de cada um, das circunstâncias e do estilo de governo de cada presidente. O caminho ainda é passível de pavimentação, sem precisar de uma ação direta de inconstitucionalidade.”