“Fiquei arrasada. Não só pelo tempo que não pude aproveitar com a minha filha, mas porque isso fez uma ferida enorme na própria validação da minha maternidade”, desabafa a enfermeira Mariana Castelo Branco sobre quando teve seu pedido de licença-maternidade negado. A princípio, ela chegou a ter o afastamento concedido pelo hospital onde trabalha: “fiquei em casa por apenas quatro dias, então eles perceberam que eu não era a mãe gestante. O RH me ligou sem grandes explicações e exigiu que eu voltasse a trabalhar”.
O hospital localizado em Botucatu, no interior de São Paulo, cujo nome não pode ser divulgado porque o processo corre em sigilo, “retirou” a licença-maternidade de Mariana ao perceber que ela não havia engravidado da filha Moana, fruto de uma fertilização in vitro gestada pela esposa dela Lizandra Hachuy.
Por saber que as leis trabalhistas não contemplam diretamente famílias no formato da delas, o casal recorreu à justiça já no momento em que confirmou a gravidez, mas diante dos atrasos no processo – que até hoje não foi concluído – a enfermeira decidiu seguir o caminho tradicional e negociar diretamente com o hospital empregador. “Enviei a documentação que comprova o nascimento e eles aprovaram de primeira. Lembro que fiquei tão feliz que chorei na maternidade quando li o e-mail”, conta Castelo Branco. Ela conta que, mais tarde, compreendeu que o hospital acreditou que ela fosse a mãe gestante, apesar de não haver menção sobre isso no pedido, e por isso concedeu a licença tão rapidamente.
“O problema é que, poucos dias depois, chegou uma intimação judicial que falava sobre o processo que abrimos [no início da gravidez] para a obtenção da licença-maternidade. No processo, claro, constava que foi a minha esposa que engravidou, não eu. Foi quando eles retiraram a licença”, diz.
A legislação brasileira é omissa em relação à dupla licença-maternidade porque não prevê especificidades para uma família cuja criança foi gerada por duas mulheres. Existe uma legislação uniforme sobre adoção, que pode chegar a 180 dias de licença, como na maternidade biológica, dependendo da idade da criança. A falta de um entendimento uniforme sobre o assunto, quando se trata de filhos biológicos de famílias homoafetivas, deixa uma brecha para que as empresas não validem licenças-maternidade de mães não gestantes como detentoras de direitos. Consequentemente, o padrão faz com que a maioria dos casos sejam levados à Justiça e julgados um a um.
Há, contudo, uma perspectiva de mudança: diante do grande volume de processos semelhantes que chegam ao Supremo Tribunal Federal (STF), o assunto ganhou o status de “tema de repercussão geral”. Isso significa que quando esse processo for julgado a tese que vier a ser estabelecida deve ser aplicada em todos os processos que estão em curso com esse tema no Brasil.
Ao assumir novamente a função de enfermeira obstétrica enquanto a filha ainda estava nos primeiros dias de vida, Mariana Castelo Branco adoeceu. “Eu tive crises de pânico e de ansiedade. Não conseguia trabalhar. Procurei um psiquiatra”, recorda. A resposta da Justiça sobre o pedido de licença-maternidade tramita até hoje, apesar dos dois anos de idade completos por Moana e do fato de que, há dois meses, a profissional de saúde pediu demissão do hospital. “Eu sei que eu não preciso disso, dessa validação externa e jurídica que me reconheça como mãe. Mas eu percebo em mim uma dor sobre esse lugar [de mãe da Moana]. Uma dor que corre junto com esse processo, que tem sido desgastante, cruel”, desabafa Mariana.
De acordo com a advogada do casal, Bruna Andrade, co-fundadora do Bicha da Justiça, empresa especializada em judicialização de casos em defesa dos direitos LGBTQIA+, a licença-maternidade para não gestantes é “a pauta que mais gera instabilidade e incerteza no judiciário”. “Nem todos os juízes entendem da mesma forma, então existem decisões que são muito díspares. Podem conceder ou não conceder”, explica. Segundo ela, “um ponto quase intransponível é o preconceito institucionalizado”. “A má compreensão do que é, por direito, a licença-maternidade. Isso ocorre porque o nosso judiciário é majoritariamente composto por homens brancos cisgêneros. Ninguém ali passa pelo processo de maternar”. Andrade conta que o escritório possui, neste momento, cerca de 80 casos de dupla maternidade semelhantes ao de Mariana.
A dificuldade em negociar diretamente com o empregador, ainda de acordo com a advogada, está no temor por parte das empregadoras de que o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), responsável por pagamentos dessa natureza, não assuma as despesas do auxílio-maternidade, fazendo com que as despesas sejam pagas pelo próprio caixa da empresa. Para evitar o risco, é comum que a licença seja concedida apenas diante da ordem judicial ou que o empregador ofereça, como contrapartida, o equivalente à licença-paternidade de cinco dias. “Isso explica a orientação de que o processo seja aberto precocemente, de forma que haja uma resposta antes da chegada do bebê”, diz.
“Teoricamente a abertura do processo para obtenção da licença-maternidade de não gestantes simples consiste em comprovar a união estável do casal e a gravidez da parceira. Essa comprovação pode ser feita com qualquer documento de clínica de ultrassom, por exemplo. Depois entramos com o pedido de reconhecimento dessa maternidade não gestante, que se fundamenta principalmente no fato de que qualquer diferença entre maternidades ocorre puramente por preconceito”, explica. A advogada Bruna Andrade reforça que, há alguns anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) se posiciona de forma a reconhecer a pluralidade de famílias enquanto composições legítimas. “O problema não está na complexidade do pedido, mas na falta de uniformidade das decisões, que tornam o direito quase uma loteria”.
Procurado pela Agência Pública, o Ministério Público do Trabalho (MPT) afirmou que o Grupo de Trabalho dedicado a questões de “gênero e cuidado” observa o tema e, no momento, “está em fase de desenvolvimento de um pensamento institucional, conforme preceituado pelo princípio da unidade”.
Constitucionalidade da licença para não gestantes está no STF
Em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou um caso protocolado em 2019, que julga a constitucionalidade da licença-maternidade à mãe não gestante. O processo é movido pelo município paulista de São Bernardo do Campo contra um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que concedeu o direito de 180 dias de licença dessa natureza a uma servidora municipal.
Na argumentação, o município defende “que o direito ao afastamento laboral remunerado é exclusivo da mãe gestante, que necessita de um período de recuperação após as alterações físicas decorrentes da gestação e do parto”.
O Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, admitido pelo relator Luiz Fux como amicus curiae no processo (amigo da Corte, quando alguém que não é parte na ação pede para participar) afirma que “quanto maior for a ampliação do direito que deverá acompanhar a evolução da sociedade, menor a chance de desigualdades e, portanto, maior será o alcance do bem estar social e acrescenta que “a restrição [à licença-maternidade], como ora é colocada na legislação, vai à contramão de todo o propósito constitucional“.
A advogada Bruna Andrade comenta que um entendimento que preocupa, e que pode ser considerado na decisão do STF é que “a licença dupla poderia de alguma maneira trazer ônus ao INSS”. “Esse é o principal argumento de quem se posiciona de maneira contrária à licença concedida às duas mães”, diz
Lactação induzida como argumento jurídico
A amamentação por mães não grávidas é uma prática comum, que pode fortalecer os vínculos com o bebê e dividir uma possível sobrecarga da mãe gestante. Diante de uma cultura que prioriza a argumentação biológica e genética, contudo, é comum que a amamentação seja considerada em decisões judiciais de licença-maternidade, o que termina por pressionar mães que não possuem condições ou desejo de amamentar.
“É visível nas decisões um diferencial quase imediato quando as mães não gestantes estão amamentando ou vão amamentar. Parece ser um ponto muito importante para a compreensão do juiz de que a licença-maternidade precisa ser concedida e eu acho que isso vem de uma compreensão equivocada, mais uma vez partindo de algo estrutural. Porque nos remete ao tempo em que essa maternidade inicial estava associada somente à questão do resguardo e alimentação da criança, e não à oportunidade de criar vínculos com o bebê e os demais cuidados necessários nesse momento”, diz Andrade.
Em entrevista à Pública, uma mãe não gestante que escolheu não se identificar, disse ter investido no processo de lactação contra o próprio desejo, por acreditar que seria esse facilitador para a obtenção da licença no escritório onde trabalha. “Eu sou advogada trabalhista. Sabia que seria um facilitador para o entendimento do juiz que eu fosse também uma mãe lactante. É algo que eu tenho certo constrangimento em dizer que não queria fazer, sequer conversei direito com a minha esposa na época. Claro que eu não odiei amamentar o meu filho, mas foi uma escolha movida principalmente pelo medo de ter os meus direitos como mãe negados diante da justiça e da sociedade, que também se importa muito com a coisa da mãe biológica”, diz.
De acordo com a advogada Bruna Andrade, muitas das mulheres que conseguem gozar da licença-maternidade dupla o fazem a partir de acordos com a empresa. A documentarista Juliana Borges é um exemplo. Aos 47 anos, Borges conta que o emprego fixo num mercado [audiovisual] predominantemente formado por profissionais autônomos é considerado por ela “um privilégio” e, por isso, o tempo em casa após a chegada do primeiro filho, Dom, com a esposa Milene Milan, era uma preocupação. Apesar disso, ela acrescenta que “não ter esse tempo nunca foi uma opção”.
“Minha chefe já sabia que nós estávamos grávidas, eu compartilhei com ela desde o início, então, quando o parto foi se aproximando, eu conversei com ela disse que já estava esperando aquela conversa acontecer. Foi muito legal, porque eles me deixaram à vontade para dizer quantos meses eu queria de licença remunerada, eu acabei ficando quatro meses em casa”, diz, sobre a produtora audiovisual Café Royal. “Uma coisa que me entristeceu, por outro lado, foi perceber a surpresa como as pessoas receberam a notícia. Falo dos meus amigos, mas também de outras mães que vivem uma batalha pela licença. Muita gente queria saber quais passos eu segui”, conta.
Já Patrícia Luna, que é empresária autônoma, conseguiu a licença lidando diretamente com o INSS, responsável pelo pagamento do auxílio. “Eu só precisei comprovar o nascimento do meu filho com um documento que já recebi na clínica em que ele nasceu. Poucos dias depois o pedido foi aprovado”, diz. Patrícia acredita que um fator que contribuiu para a rápida aquisição da licença foi o fato de que a obstetra, no momento em que o preencheu os documentos, não fez qualquer distinção sobre maternidades. “Existe a DNV, que é a Declaração de Nascido Vivo, o primeiro documento do bebê. Esse documento inclui o nome da mãe que pariu, por motivos óbvios. Porém no mesmo dia a médica também fez uma declaração do pedido de licença-maternidade que incluía o nome de nós duas”, explica.
“Meu caso inclusive se tornou jurisprudência para outro processo, e eu acho muito importante por isso”, conta. Apesar da convicção de ser possuidora do direito, a empresária diz que, durante as primeiras semanas de afastamento, teve medo de falar sobre o assunto. “Eu sabia que o mais comum era não conceder. Tive medo que isso ganhasse uma repercussão muito grande e o INSS pedisse revisão, considerasse um erro, sei lá”.
O caso que utilizou a licença-maternidade da empresária como jurisprudência foi o do casal Patrícia Santos e Susane Tamanho, ambas policiais militares do estado de Mato Grosso e mães das trigêmeas Maria Lívia, Maria Sofia e Maria Fernanda, que nasceram em 2020.
“Na época do nascimento das meninas, anexamos o caso da Patrícia Luna no nosso próprio pedido de licença-maternidade, assim como comprovantes de que eu também estava amamentando. Recebi um parecer positivo da corregedoria da polícia, da assessoria jurídica da PM e o processo seguiu para a Procuradoria Geral do Estado (PGE), que entendeu que não tínhamos o direito”, conta a tenente-coronel Patrícia Santos. “A partir daí seguimos para a Secretaria de Gestão de Pessoas do Estado (Seges), que escolheu avocar o processo e conceder o parecer positivo. Ao todo, foram seis meses até que a licença fosse finalmente aprovada”, completa.