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A valentia dos cientistas e o silêncio da imprensa sobre a extradição de Assange

SBPC mobiliza sociedade e pede asilo ao fundador do WikiLeaks enquanto imprensa segue calada

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16 de julho de 2023
06:00

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Quatro mil, seiscentos e quatro dias. Esse é o tanto de tempo que o australiano Julian Assange está preso por ter dado a conhecer à opinião pública mundial documentos secretos do governo americano.

Quatro mil, seiscentos e quatro dias é também o tempo que o governo americano tem dedicado para manter Julian Assange detido, sob vigilância, para puni-lo lenta e cruelmente como exemplo para todos os demais jornalistas, editores, colunistas, blogueiros, comunicadores, publishers e donos de jornais que se atreverem a receber e publicar documentos da maior potência militar mundial. 

Se alguém ainda tivesse dúvida de que a perseguição a Assange é um perigo para todos nós, ela deveria se dissipar com o recente relato do premiado jornalista investigativo James Ball, que contou na revista Rolling Stone como vem sendo assediado há anos pela polícia britânica para ser “testemunha voluntária” contra Julian no caso montado pelo governo dos Estados Unidos. Algumas vezes, policiais ligaram diretamente para seu celular. Outra vez, recebeu um e-mail de um procurador americano com um suposto testemunho de um polêmico escritor russo, dizendo que Ball lhe entregou documentos sobre “os judeus” – Ball nega. Ele também refutou entrar nesse jogo dos procuradores. 

Mas talvez o encontro mais sinistro tenha sido aquele em que um policial britânico disse a seu advogado que estava “trabalhando proximamente com os americanos nisso” e que as “agências de 3 letras” – FBI, CIA, NSA – tinham muita informação sobre ele. “Sabemos que James Ball não existe”, completou. 

Como esse é seu nome de registro, a insinuação levou James a uma busca existencial, para descobrir se ele teria sido adotado secretamente ou se havia alguma coisa errada no seu registro de nascimento. Ou seria uma ameaça de que a pessoa dele poderia deixar de existir?

Por cautela, sob orientação de seus advogados, James evitou viajar para os EUA por dois anos. Agora, resolveu quebrar o silêncio porque soube que outros jornalistas ingleses, entre eles o ex-editor do Guardian David Leigh, também foram assediados pela polícia inglesa. 

Que fique claro. Estamos diante de mais um caso de ampliação da territorialidade da Justiça americana. Os EUA estão a um passo de conseguir a extradição de um jornalista que não é americano e que não pôs os pés nos EUA – e, portanto, não tem nenhum compromisso de lealdade com o Estado americano nem deveria estar submetido à Justiça daquele país. 

Tem mais. Como editor-chefe do WikiLeaks, Julian selecionou os documentos sobre as guerras do Iraque e do Afeganistão, os prisioneiros de Guantánamo e os comunicados diplomáticos das embaixadas americanas no mundo todo. Elaborou uma estratégia de publicação visando impacto, organizou uma equipe, criou um sistema seguro de administração dos documentos, garantiu sua veracidade e, então, entregou os documentos a jornalistas, que os leram, organizaram e vetaram os nomes de cada um dos informantes dos diplomatas americanos nas embaixadas do mundo todo. Ao mesmo tempo que saíam as centenas de notícias nos jornais, o WikiLeaks publicava a íntegra de cada documento revisado pelos jornalistas no seu site para que qualquer pessoa pudesse verificar por si mesma, ajudando a formar um consenso sobre o que representava aquele tesouro histórico. Como disse recentemente uma grande amiga jornalista, o que o WikiLeaks fez ao agir assim foi uma grande homenagem ao jornalismo, numa época em que já estava mais do que claro o seu declínio. 

O trabalho do WikiLeaks e de Julian, pessoalmente, ajudou a revigorar a imprensa em um momento de enorme incerteza; demonstrou que o jornalismo investigativo era popular, que investigar os poderosos seguia em voga. Reinventou um dos mais antigos expedientes do jornalismo, o vazamento de informações internas de empresas e governos por informantes, aliando-o à irrefreável digitalização das instituições, que facilitaram os vazamentos massivos, e a uma tecnologia que apagava a identificação do vazador. Imprimiu sua marca ao jornalismo do século 21 ao obrigar grandes redações do mundo todo a colaborar para o tratamento dos documentos, dando ao novo jornalismo a marca da colaboração, que é a essência do trabalho de qualquer desenvolvedor ou tecnólogo. Criou um modelo que continua a ser replicado por organizações jornalísticas de ponta, como o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), que publicou depois os Panama Papers, fruto de um enorme vazamento de contas offshore, e o The Intercept Brasil, que publicou a Vaza Jato. 

Aos fatos: Assange está para ser extraditado para os EUA por 18 acusações, sendo 17 por ter publicado documentos secretos do governo americano vazados pela ex-soldada Chelsea Manning. A decisão pelo seu indiciamento, por si só, me causa arrepios. Começa dizendo que o WikiLeaks é culpável por “requerer” vazamentos de documentos, coisa que muitos sites, jornais e podcasts fizeram desde então (a Folha, por exemplo, teve um projeto chamado “Folhaleaks”, com um Dropbox seguro, como o do WikiLeaks). 

Depois, alega que Assange é acusado de ter tentado apoiar Chelsea Manning a obter um código que ajudaria a mascarar a identidade dela durante a obtenção de documentos dentro do sistema americano – coisa que não deu certo. (Essa acusação sempre me lembra a história de um apartamento que nunca chegou a ser comprado no Guarujá). 

Em seguida, criminaliza um diálogo entre Assange e Manning sobre os documentos, no qual Assange não instrui, não solicita, não paga, não demanda nada da então soldada. Diz apenas: “curious eyes never run dry” (“olhos curiosos nunca se satisfazem”). Se algum jornalista já falou com uma fonte interna de um governo e fez menos do que isso, que atire a primeira pedra. 

A acusação segue dizendo que os documentos foram publicados “com intenção de prejudicar os EUA”. Oi? Como se expor e denunciar os abusos de uma superpotência não fosse o dever mínimo de qualquer jornalista que se preze. 

Vale lembrar que a extradição iminente de Assange para os EUA foi cercada de artimanhas que fariam o ex-juiz Sergio Moro corar. Primeiro, o australiano foi acusado de crimes sexuais na Suécia, para onde queriam extraditá-lo. Seus advogados sempre disseram que isso era uma desculpa para extraditá-lo para os EUA e sempre ofereceram que ele fosse questionado em solo inglês. O caso ruiu dois anos atrás sem maior alarde – depois de o governo americano ter admitido oficialmente que queria extraditá-lo. 

Para fugir do imbróglio, Assange refugiou-se na embaixada do Equador, que o manteve por lá até que uma troca de governo possibilitou uma aproximação com os EUA e o asilo foi revogado. Então Julian foi arrastado para a prisão de segurança máxima de Belmarsh para cumprir a ridícula pena de 50 semanas por ter violado sua condicional pela Justiça britânica, ao ter buscado asilo no Equador. A pena terminou de ser cumprida em 2020. 

Ou seja, há três anos Assange está preso em segurança máxima sem que tenha nenhum caso criminal contra ele no país onde está detido. Sua prisão foi chamada pelo relator de tortura da ONU de “um caso similar a tortura”. 

Se extraditado e condenado, ele pode receber uma pena de 175 anos de prisão. 

É um abuso de poder inacreditável e transnacional, envolvendo pelo menos quatro países para destruir um ser humano. 

“Na prática, Julian Assange está preso há 12 anos. Então, ele já pagou uma pena privativa de liberdade de 12 anos, sem ter uma condenação”, disse o jornalista Eugênio Bucci em um evento recente promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) para discutir o caso. Para o professor da USP, trata-se de uma questão humanitária grave. 

“Existem profissões que não são para ser fáceis”, disse o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, durante o evento. “É lógico que, para aqueles que desejam um poder assentado em mentiras, o jornalismo e a ciência são alvos. E, no caso de Assange, é bom lembrar que se trata da revelação de informações sobre falsidades, crimes cometidos por instâncias de poder.” 

Janine Ribeiro lembrou ainda que, mais do que “decidir” publicar os documentos, Assange cumpriu com o dever fundamental de qualquer jornalista – cuja profissão exige um juramento ético. Isso porque, segundo o professor, a liberdade de imprensa não pertence aos jornalistas, mas aos cidadãos. “Em linguagem jurídica, dizemos que o titular da liberdade de imprensa é o cidadão, o leitor, enquanto o jornalista é seu fiel depositário. Isso quer dizer que a base do jornalismo, a liberdade de que ele desfruta para investigar, para questionar as autoridades e os poderes existentes, está no seu dever de procurar e publicar a verdade”.

Na última semana, Janine Ribeiro liderou uma iniciativa louvável da SBPC de pedir que o presidente Lula ofereça asilo a Assange, com uma carta que recebeu mais de 2,5 mil assinaturas e foi entregue em mãos ao mandatário. 

Valentes, os cientistas da SBPC fizeram o que nós, jornalistas, deveríamos estar fazendo.

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