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Hoje vou dar uma pausa em falar sobre os problemas da vida digital e da tecnopolítica para comentar um recadinho dos militares, um evento pontual mas eloquente sobre a situação da nossa frágil democracia.
Na semana passada, a jornalista Monica Gugliano publicou no jornal O Estado de S. Paulo uma coluna intitulada “Militares veem Justiça esticando a corda e gerando instabilidade e insegurança nas Forças Armadas”. Tive que ler duas vezes para certificar-me de que não era algo dos idos anos 2021 ou 2022; não era.
No texto, militares “graduados” diziam que a prisão de membros da cúpula da PM do Distrito Federal, incluindo o comandante Klepter Rosa Gonçalves, estaria “criando instabilidade e insegurança nas Forças Armadas” e que, se a Justiça ultrapassar um certo “limite”, não explicado, “não seria fácil acalmar nem o oficialato e nem tampouco os militares abaixo da linha de comando”.
O contexto disso tudo é que a delação de Walter Delgatti, o hacker do fim do mundo, implicou os militares diretamente com seu depoimento à CPI. Primeiro, disse que foi cinco vezes ao Ministério da Defesa, tendo inclusive se reunido com o ex-ministro, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; depois, que tem suas digitais no infame relatório sobre as urnas eletrônicas feito pelas Forças Armadas, que diz que não encontrou nenhuma prova de fraude, mas que isso não importa.
A prisão do comandante da PM-DF parece ter assustado o Alto-Comando, que vê a Polícia Federal chegar cada vez mais à porta dos seus altos oficiais que se envolveram em mutretas, como o general Lourena Cid, pai de Mauro Cid – que “só chora”, segundo a mesma coluna –, e o comandante militar do Planalto, que fez de tudo para proteger os acampados e impedir a desmobilização dos acampamentos, mesmo sabendo que de lá partiram atentados terroristas e a marcha que rumou para invadir os prédios dos três Poderes no dia 8 de janeiro.
O recado, anônimo, em off, intempestivo, parece ter sido uma antessala da reunião que Lula manteve com militares no sábado, em um encontro fora da agenda com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica no Palácio da Alvorada. Lula ouviu do ministro da Defesa, José Múcio, e dos comandantes o compromisso de que as três forças estão identificando nomes que tenham cometido eventuais irregularidades durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Mas, como demonstra a tacanha ameaça enviada através do Estadão, o buraco é mais embaixo. Os militares se acostumaram a fazer ameaças aos poderes civis – como a Justiça – durante o período Bolsonaro. Era assim que pressionavam por atenção, verbas, mudança de rumos, reuniões com membros do governo. O uso da expressão “esticando a corda”, criada por Bolsonaro, só demonstra que, na sua cabeça, nada mudou.
E nos lembra de que, ao longo dos inúmeros abusos de poder cometidos pelos militares nos últimos anos – esses, sim, “esticaram a corda” até não poder mais – estavam, ali ao lado dos antigos comandantes, esses mesmos generais que hoje lideram a força.
Eles estavam ali quando o Exército foi usado, institucionalmente, para publicar um relatório propositadamente ambíguo sobre segurança das urnas, fomentando ainda mais os ânimos golpistas. Estavam lá durante os meses em que os acampamentos funcionaram, na frente de quartéis de todos os quatro comandos. Estavam lá quando os comandantes da Marinha e do Exército decidiram retirar-se antes do fim do ano para evitar prestar continência para Lula.
Por estarem lá, acostumaram-se a um modo das coisas disfuncional, em que o Exército se mete em tudo o que não lhe diz respeito e vive de dar “sustos” nos outros poderes para avançar seus interesses e, especialmente, para proteger os seus.
A raiz dessa disfunção, como expliquei no meu livro Dano colateral, foi a decisão consciente do ex-comandante Eduardo Villas Bôas de mudar a postura de “grande mudo” que o Exército vinha adotando desde o fim da ditadura. “Estabeleci como meta que o Exército voltasse a ser ouvido com naturalidade. Teríamos que romper um patrulhamento que agia toda vez que um militar se pronunciava, rotulando de imediato como quebra de disciplina ou ameaça de golpe”, disse. Mas o esgarçamento dessa ideia é produto dos dois últimos altos-comandos.
O “recado” gerou alguma onda na opinião pública, com críticas à jornalista e uma indignação generalizada. Mas a verdade é que é anacrônico, sem dentes. E daí que os oficiais vão “perder a calma”? O que eles vão fazer?
Como dizem em inglês, “that ship has sailed”. Está mais que claro que um golpe no Brasil não tem apoio interno nem externo, e com isso essas bravatas prejudicam, apenas, a reputação do próprio Exército. Mas demonstram, também, que as distorções que Bolsonaro e seus grandes aliados no Alto-Comando impuseram às Forças Armadas deixaram marcas mais duradouras, e terão que ser encaradas e extirpadas se quisermos de fato passar à normalidade política.
Sendo mais clara: milico tem que entender de uma vez por todas que não têm direito de reclamar da Justiça ou do Executivo.
Como chegaremos a isso? Uma boa amostra aconteceu no debate que ocorreu na na Câmara dos Deputados no dia 16 de outubro, que reuniu especialistas em defesa, o ex-ministro Raul Jungmann e o general Sérgio Etchegoyen para debater mudanças no artigo 142, a lei que estabelece a GLO, operação de Garantia da Lei e da Ordem. Um debate às abertas, público, ouvindo lados divergentes, como uma boa democracia deve ver. Teve puxão de orelha no Congresso, que, na visão de Jungmann, “nunca assumiu as responsabilidades de examinar, de debater, tanto a Política Nacional de Defesa como a Estratégia Nacional de Defesa”. Teve o general Etchegoyen defendendo a participação política do Exército, respaldando as decisões tomadas pelo seu amigo Villas Bôas. E teve muitas críticas à degeneração do Exército nos últimos anos.
Mas teve, também, propostas de como avançar: o autor do PL que muda o artigo quer, por exemplo, limitar as GLOs a casos específicos, como greve de PMs, e proibir que militares da ativa exerçam cargos públicos ou disputem eleições.
É nesse tipo de discussão que o Alto-Comando deveria estar engajado, e não em bravatarias que visam à autopreservação e à proteção corporativa dos seus membros estimados que se envolveram em golpismo. Além de uma grande purga no Exército, será inevitável uma reforma mais profunda e largamente acompanhada pela sociedade – o historiador Manuel Domingos Neto, por exemplo, afirmou que não faz sentido ter um Exército tão grande e que a Aeronáutica e a Marinha seriam mais importantes para um país como o nosso. Enquanto isso, os fardados vão ter que ver seus amigos e os filhos de seus amigos indo para a cadeia, expostos na primeira página de jornais, intimados a dar depoimentos à Justiça e ao Parlamento.
E isso é assunto de civis, da imprensa, da Justiça, do Legislativo e do Executivo, sim. É hora de esticar a corda até arrebentar.
Bem-vindos à democracia, generais.