Com base em mais de 500 páginas de alertas e relatórios de inteligência, a Agência Pública revelou que os governos federal sob Jair Bolsonaro (PL) e do Distrito Federal sob Ibaneis Rocha (MDB) e as Forças Armadas ignoraram alertas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sobre o risco de violência entre o fim das eleições de 2022 e a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente da República. Porém, o mesmo material coloca dúvidas sobre a eficácia do trabalho da Abin no fim da gestão Bolsonaro.
Na maior parte dos documentos consultados – que estão em posse da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos de 8 de Janeiro no Congresso desde o último dia 15 de agosto –, a Abin apenas descreve fatos notórios e raramente sugere ações para evitar o vandalismo e os riscos à democracia no país.
Em um desses raros momentos, após identificar o potencial extremista dos acampados, a Abin argumentou que um possível desmonte do acampamento em frente ao Quartel-General (QG) do Exército em Brasília tenderia a gerar mais violência.
“Eventual ação de forças de segurança para retirada de acampados no QGE e no Palácio da Alvorada ou novas operações policiais contra grupos e organizadores de protestos contrários ao resultado eleitoral tendem a servir como estímulo ou catalisador para a realização de atos violentos”, conforme relatório da Abin produzido em 16 de dezembro passado, logo após a tentativa de invasão do prédio da Polícia Federal em Brasília, ocorrida no dia 12 daquele mês.
Os documentos acessados pela Pública revelam também que a Abin mal produziu relatórios de inteligência sobre a evolução da crise na capital federal durante quase todo o mês de novembro, período-chave da escalada golpista. Nos primeiros dias daquele mês, foram montados acampamentos em frente a organizações militares em contestação ao resultado eleitoral não apenas em Brasília como em todo o Brasil.
No dia 10 de novembro, por exemplo, o Ministério da Defesa do general da reserva do Exército Paulo Sérgio Nogueira divulgou uma nota ambígua sobre a segurança das urnas eletrônicas. No dia seguinte, 11, os comandantes da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Marinha, almirante de esquadra Almir Garnier Júnior, chancelaram os atos golpistas em frente às organizações militares em todo o país, classificando-os como “demandas legais e legítimas da população”. Ambos os acontecimentos, decisivos para a postura dos acampados golpistas à época, nem sequer aparecem nos relatórios da Abin.
A atitude da inteligência do governo mudou somente nos últimos dias de novembro, após quase um mês praticamente restrita à emissão de alertas – informes menos trabalhados, usados para atualizar os agentes sobre a situação em determinado local. Não é possível identificar, aliás, para quais órgãos públicos cada alerta foi enviado no período.
Deficiências no monitoramento da crise em Brasília
Sobre a crise na capital federal, os documentos consultados pela Pública revelam que a Abin se limitava a informar o que qualquer pessoa na cidade – ou qualquer um que acompanhava o noticiário à época – já percebia: havia a “presença de barracas, toldos e veículos motorhome” em frente ao QG do Exército; “doações de alimentos estão sendo aceitas, bem como doações em dinheiro via PIX”; a “estrutura de suporte à manifestação foi ampliada” com poucos dias de acampamento na capital.
Além disso, os alertas da Abin geralmente repetiam: “não há previsão de desmobilização do protesto”, “não foi identificada iniciativa organizada de desmobilização do acampamento”.
Só do dia 27 de novembro em diante, foram produzidos, regularmente, relatórios de inteligência sobre a situação em Brasília, com análises como, por exemplo, o mapeamento dos comboios que aportavam no acampamento golpista na capital.
No total, a reportagem identificou nove relatórios de inteligência que abordam diretamente o acampamento montado em frente ao QG do Exército. Mesmo assim, os materiais revelam que a Abin não informava quem eram os principais financiadores dos acampamentos, fosse em Brasília ou em outras capitais estaduais.
Por vezes, a agência se manifestava apenas depois de decisões vindas de outros Poderes, como no caso do bloqueio de bens determinado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes contra empresários do agronegócio supostamente envolvidos em bloqueios de rodovias pelo país, em 12 de novembro. Somente após essa decisão a Abin forneceu informações sobre setores do agro suspeitos de apoiar e financiar os acampamentos golpistas.
Os alertas e relatórios de inteligência de 1º de outubro de 2022 a 1º de janeiro de 2023 mostram, ainda, que a Abin não reportava o bate-cabeça entre forças de segurança durante a crise em Brasília. Como relatado em março pela Pública, despachos, informes de operações e ofícios revelaram falhas na atuação conjunta de órgãos de segurança no DF, além de leniência militar com os golpistas em frente ao QG à época.
Inação antes do quebra-quebra na sede da PF em dezembro
Mesmo quando identificava riscos potenciais, a Abin não se aprofundava neles. Dez dias antes de 12 de dezembro, quando bolsonaristas tentaram invadir a sede da Polícia Federal em Brasília, a agência de inteligência alertou para um possível “acréscimo na adesão aos atos” antidemocráticos e mencionou a chegada, na capital federal, de novas caravanas e de um grupo de indígenas ligados ao agronegócio do Mato Grosso.
À época, havia um ato bolsonarista marcado para o dia 10 de dezembro e a Abin suspeitava que, “apesar de não haver convocação, considerando a data para diplomação e a presença de caravanas, pode também ocorrer ato em Brasília contra a diplomação do Presidente eleito em 12 dez. 2022”. Porém, a agência não deu nenhuma sugestão de como evitar possíveis conflitos por conta desse cenário.
Somente no dia seguinte ao ataque, 13 de dezembro, a Abin ligou os confrontos à manutenção do acampamento em frente ao QG militar: “os incidentes violentos observados em Brasília estariam relacionados à dinâmica própria da organização da manifestação em frente ao QGE [QG do Exército], com grupos heterogêneos divergindo sobre a orientação do movimento, e foram deflagrados após prisão de liderança do acampamento”.
Nesse documento, a Abin alertava que “ações simultâneas e difusas na área central da Capital Federal” dificultavam “a capacidade de resposta estatal”. Esse ponto fraco na segurança pública de Brasília poderia “inspirar manifestantes mais exaltados a adotar novamente táticas semelhantes de confronto”, segundo a Abin, que não havia identificado a organização de novos atos violentos naquele momento.
O mesmo relatório de inteligência, do dia 13, descreve os grupos organizadores e mantenedores do movimento golpista à época, sendo “possível identificar quatro segmentos responsáveis pela organização e continuidade dos atos”.
O primeiro era composto pelos “atores econômicos [que] fornecem apoio material e recursos financeiros”, seguido por “lideranças locais [que] atuam presencialmente na organização”. Além dos grupos de financiamento e de organização, existiam ainda os “articuladores digitais”, descritos como os que “divulgam as pautas, orientações e convocações, assim como organizam grupos e distribuem mídia”. Por fim, havia os “voluntários e simpatizantes [que] trabalham nas estruturas e participam nas manifestações, aderindo em maior número aos finais de semana e feriados”.
Contradições no monitoramento de bolsonaristas no QG do Exército
Consultado pela Pública, o relatório acima, produzido em 13 de dezembro, é um dos primeiros a chegar a conclusões sobre as informações monitoradas, em vez de apenas descrever o que via.
O tom descritivo e pouco aprofundado se mantém no monitoramento da Abin sobre os acampamentos nos quartéis militares, considerados pela agência como parte importante da “mobilização contra o resultado eleitoral”. O principal deles era o QG do Exército em Brasília, origem de parte dos bolsonaristas responsáveis pelo quebra-quebra de 12 de dezembro e pela invasão às sedes dos Três Poderes no 8 de janeiro, segundo análises posteriores da própria Abin.
Houve a tentativa de fazer um acompanhamento diário na situação dos acampamentos em todo o Brasil e, para tal, a Abin criou um mapa com pontos coloridos – verde para o status “normal”, amarelo para “atenção”, laranja para “incidente” e vermelho para “crise”. No entanto, em todos os dias e em todas as cidades analisadas, a situação sempre esteve normal – mesmo nos dias 12 e 13 de dezembro em Brasília.
As informações contradizem a própria Abin, que narrava incidentes nos quartéis nos relatórios e dizia que os acampados criavam um “clima de mobilização permanente”, mirando “impactos econômicos e transtornos à população por meio dos bloqueios rodoviários” para “exercer pressão popular por meio das mobilizações de rua”.
Em 27 de dezembro, a Abin chegou a afirmar que os “integrantes do movimento em frente ao Quartel General do Exército em Brasília” estavam em “elevado grau de radicalização e potencial para mobilização para violência”.
Em relatório produzido naquele dia, a agência descreveu, como possível consequência, o cenário que se veria na futura invasão do 8 de janeiro: “atos de vandalismo e dano à propriedade pública e privada”, “invasões ou bloqueios de prédios, espaços públicos e infraestruturas críticas” e “confronto contra forças de segurança”. Mas a avaliação continuava verde, representando status “normal”, sem incidentes ou riscos a serem acompanhados.