O governo federal colocou a postos mais de 300 servidores de 14 órgãos públicos para dar início a uma grande operação de desintrusão da Apyterewa, no Pará, considerada a terra indígena na Amazônia mais desmatada durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro. A ação estava prevista para começar nesta quinta-feira (28), mas desde a quarta-feira (27) há pressões políticas atuando para adiar a operação.
Na terça-feira (26), chegou a ser feita uma reunião de orientação sobre os passos e objetivos da operação (um “briefing”) no 52º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército em Marabá (PA) com 150 servidores dos vários órgãos mobilizados para a ação. No encontro, foi apresentado um “comunicado” que seria distribuído às famílias invasoras. O panfleto diz que os invasores deveriam deixar “imediatamente” o território e “levar consigo todos os seus pertences, inclusive as criações de animais”. Os comboios começariam a rumar para o território indígena nesta quinta-feira, mas tudo foi congelado por ordem de Brasília.
Uma entrevista coletiva prevista para a tarde desta quinta-feira na capital federal, com a presença de ministros de Estado, não deverá mais ocorrer. A operação deveria se estender à vizinha Terra Indígena Trincheira-Bacajá e seria a maior do gênero desde a desencadeada em fevereiro passado contra os garimpeiros na Terra Indígena Yanomami.
Em decisão tomada no último dia 21, o juiz federal substituto de Marabá (PA), Halisson Costa Glória, mencionou que o segredo de Justiça do processo deveria ser levantado “após o início do plano de desintrusão (previsto para o dia 28/09/2023)”, o que confirma a previsão de início da operação.
A principal organização indígena do país, a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), alertou ao STF (Supremo Tribunal Federal), nesta quarta-feira, que políticos do Pará têm agido nos bastidores em Brasília para tentar adiar ou impedir a desintrusão. “Servidores do Ministério e das forças de segurança estão nesse momento em Marabá [PA] só aguardando um comando político para iniciar a desintrusão, e a informação que circula é que o governo do Estado do Pará está fazendo lobby para que a desintrusão não ocorra”, disse à Agência Pública o coordenador jurídico da APIB, Maurício Terena.
A Pública confirmou, com três fontes distintas, que o governo do Pará tem feito contatos com o governo federal para tratar da operação. A Pública pediu explicações ao governo paraense no início desta tarde, mas não recebeu resposta até o momento.
No último dia 14, o Ministério da Justiça havia autorizado o uso da Força Nacional na Apyterewa. A Pública apurou que 150 policiais da FN foram mobilizados, mas agora foram orientados a aguardar as novas orientações do comando do órgão, em Brasília.
A desintrusão em Apyterewa é considerada uma operação sensível, pois a invasão ganhou impulso ao longo de todo o governo Jair Bolsonaro. Nos últimos quatro anos, políticos do Pará fizeram discursos e ações buscando a consolidação da invasão. A Prefeitura de São Félix do Xingu (PA) chegou a recorrer ao STF a fim de tentar reduzir à metade o território indígena. Há poucos dias, a prefeitura também tentou impedir a operação de desintrusão, mas o pedido foi rejeitado pela Justiça Federal de Redenção (PA).
Invasores já cercaram base da Funai no território
O governo federal estima que hoje 2 mil pessoas ocupem ilegalmente Apyterewa. Nos últimos anos, os invasores ergueram uma vila com mais de 200 casas e espalharam de 60 mil a 100 mil cabeças de gado na terra dos indígenas Parakanã. Todo o gado já foi embargado pelo Ibama e deverá ser apreendido se encontrado no território quando a operação começar. Um documento produzido pelo governo Bolsonaro em 2021 descreveu que na terra indígena já existiam dois postos de gasolina, dois mercados, quatro igrejas, oficinas mecânicas, salão de beleza e até uma fábrica de beneficiamento de arroz.
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e o MPF (Ministério Público Federal) informaram à Justiça Federal que a prefeitura de São Félix “está promovendo apoio aos invasores da TI Apyterewa com a instalação de escola na invasão denominada Vila Renascer”.
O juiz federal substituto de Redenção (PA), Halisson Costa Glória, decidiu que o comportamento da prefeitura “se revela em afronta direta às decisões judiciais proferidas, assim como ao ordenamento jurídico” e determinou que o município “se abstenha de adotar medidas administrativas objetivando consolidar a ocupação de não indígenas no interior da terra indígena”.
Em 2020, a pasta da então ministra dos direitos humanos de Bolsonaro, a hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF), enviou uma equipe ao território para dialogar com as famílias que ocupavam ilegalmente o território demarcado e homologado pela Presidência da República desde 2007. O ministério produziu um documento que atacou, sem provas, o processo de demarcação realizado pela Funai.
Empoderados pelo governo bolsonarista e acreditando na falsa noção de que o tamanho da demarcação seria revisto, os invasores promoveram pelo menos um grande conflito no território, em novembro de 2020. Na ocasião, um grupo de invasores cercou e ameaçou servidores da Funai e do Ibama que atuavam na base de fiscalização do órgão indigenista, lançou fogos de artifício e colocou pregos nas pontes para esvaziar os carros da fiscalização. O cerco evoluiu de “obstrução de fiscalização a cárcere privado”, segundo um fiscal do Ibama relatou na época. As hostilidades se estenderam até dezembro. Meses depois, cinco pessoas foram denunciadas à Justiça Federal em Redenção (PA) por obstrução das ações fiscalizadoras, formação de quadrilha e usurpação de bens da União.
Deputado ataca demarcação e diz que “situação deve piorar”
O clima de confronto vem crescendo desde 2016, quando o governo de Michel Temer (2016-2018) abandonou o plano de retirada dos invasores, embora a desintrusão fosse uma condicionante judicial para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira (PA).
A região é um reduto de eleitores bolsonaristas. O município de São Félix do Xingu (PA) registrou 66% de votos para Bolsonaro no segundo turno das eleições do ano passado, contra 33% de votos para Lula. No Pará como um todo, o resultado foi bem diferente: Lula com 54% e Bolsonaro com 45%.
Políticos do sul do Pará têm feito discursos contrários à ação de desintrusão e defendido a redução da terra indígena. O deputado estadual e ruralista Torrinho Torres (Pode) foi à tribuna da Assembleia Legislativa para atacar a demarcação, acusar a Funai de “insistir em inventar terra indígena onde, há décadas, moram apenas produtores rurais” e “propor” que a terra “seja reduzida em 260 mil hectares”.
“Tomei conhecimento que a situação deve piorar nos próximos dias e poderá haver uma desintrusão naquela área, ou seja, uma medida injusta para retirar os produtores rurais daquela região da Apyterewa”, disse o deputado. Ele alegou que há dois tipos de ocupantes de Apyterewa, “uma minoria que continua praticando desmatamento” e os “produtores rurais”.
De acordo com publicação oficial da Assembleia Legislativa do Pará, Torres é presidente do Sindicato Rural de São Félix do Araguaia (PA), “pecuarista, migrando para a agricultura, para o plantio de milho e de soja e proclama-se representante do agronegócio”.
‘Invasores não agem de boa-fé’, diz juiz em decisão
Até a última quarta-feira (20), as manifestações políticas não tinham conseguido alterar a disposição do governo federal de promover a desintrusão da área. Centralizada na Secretaria Geral da Presidência da República, a operação contra os invasores, que hoje se espalham pela parte leste da terra indígena de 773 mil hectares, deveria mobilizar servidores da Força Nacional (150 pessoas), Polícia Federal (35), Polícia Rodoviária Federal (24), Incra (24) e de mais dez órgãos públicos, incluindo servidores da Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
A desintrusão já foi objeto de uma decisão da Justiça Federal de Redenção (PA) nos anos 2000 e até agora está pendente de cumprimento. Ainda no governo Bolsonaro, como parte da ADPF 709 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), o ministro do STF Luís Barroso determinou que a União apresentasse um cronograma para a retirada de invasores de sete terras indígenas no país, incluindo a Apyterewa.
No último dia 21, o juiz Halisson Costa Glória deu respaldo judicial à operação do governo federal, reiterando que “existe sentença judicial prolatada há anos por esta Subseção Judiciária determinando a desintrusão de toda a TI Apyterewa”. Por esse motivo, a saída deverá ser imediata. O governo foi autorizado a fazer transmissões por rádio na região para novamente advertir sobre a necessidade da saída pacífica dos invasores.
“Não é possível concluir que os ocupantes não indígenas da Terra Indígena Apyterewa estejam agindo de boa-fé”, escreveu o juiz. Ele autorizou “a desocupação forçada, em caso de não desocupação voluntária, de acordo com o planejamento do grupo gestor da desintrusão”. Acolhendo pedido do Ibama, o juiz federal decidiu que “revela-se adequado, necessário e proporcional em sentido estrito o acolhimento do pleito de decretação de perdimento dos bens que se encontrem no interior da Terra Indígena, caso não sejam retirados voluntariamente, assim como o de desfazimento de bens”.
Na decisão, o juiz disse que “as invasões e ocupações irregulares da TI Apyterewa promovem, em larga escala, graves danos ambientais, com desmatamento ilegal para implantação de pastagens para semoventes, e, eventualmente, a derrubada para realização de plantios, fatos estes que atentam contra o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, gerando responsabilidade civil de ordem objetiva, baseada na teoria do risco integral, conforme entendimento pacificado do STJ e previsão contida” na Constituição Federal.
De acordo com o Imazon, organização não governamental, a Apyterewa “é a terra indígena mais desmatada na Amazônia pelo quarto ano consecutivo”. Nos quatro anos do governo Bolsonaro (2019-2022), ela perdeu 324 km² de floresta, o que supera a área total de Fortaleza (CE). Em apenas um mês, junho de 2021, de acordo com o Imazon, a Apyterewa “concentrou 52% de todo o desmatamento ocorrido nas terras indígenas da Amazônia. Foram 14 km², o que corresponde a 1.400 campos de futebol”.
Desde janeiro deste ano, com a posse do novo governo, o Ibama tem feito operações dentro da terra Apyterewa a fim de coibir desmatamentos e outros crimes ambientais. Em maio, o órgão divulgou ter “desativado mais de 20 acampamentos de invasores” dentro do território. Os fiscais apreenderam motores, veículos e dez armas de fogo.