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Sabe promoção fajuta de Black Friday, em que se coloca uma porcentagem alta de desconto sobre um determinado valor, mas antes se aumenta o próprio valor da coisa e o comprador, ao final, não tem muita vantagem? Foi algo mais ou menos assim que o governo de Jair Bolsonaro fez em relação aos compromissos brasileiros de redução de emissões de gases de efeito estufa – aqueles que causam o aquecimento global.
Em 2021, em meio às críticas e pressões internacionais por causa do aumento do desmatamento, o então ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite afirmou na Conferência do Clima da ONU, em Glasgow, que aumentaria para 50% a meta de corte das emissões até 2030. A promessa que o Brasil tinha feito em 2015, junto ao Acordo de Paris, era reduzir em 37% as emissões até 2025 e em 43% até 2030. Isso tudo em comparação ao que era emitido em 2005.
Não demorou muito, porém, para descobrirmos que era bom demais para ser verdade imaginar que Bolsonaro – um conhecido negacionista climático, que chegou a cogitar tirar o Brasil do Acordo de Paris – estava realmente adotando uma postura mais ambiciosa de combate às mudanças climáticas.
Ocorre que, nesse meio-tempo, a base de cálculo tinha mudado. Quando o país, então governado por Dilma Rousseff, adotou o primeiro compromisso, as contas feitas pelo Ministério da Ciência e Tecnologia indicavam que as emissões de 2005 eram da ordem de 2,1 gigatoneladas de gás carbônico. Com a redução prometida no Acordo de Paris, chegariam a cerca de 1,2 gigatonelada até 2030.
Mas nos anos seguintes a metodologia usada para medir as emissões evoluiu, e se observou que, em 2005, o país emitia bem mais do que o imaginado anteriormente. Quando o governo Bolsonaro mudou a promessa, foi usada essa nova contabilidade de emissões. Na prática, porém, mesmo com a porcentagem mais alta, o resultado final implicava emissões maiores em 2030 do que as prometidas anteriormente.
A sociedade civil fez um carnaval em cima do dado. O Brasil se tornava menos ambicioso – e não mais, como é o desejado para todos os países. Era uma “pedalada climática”.
Desde que reassumiu a Presidência, Lula se comprometeu a corrigir a pedalada, o que ocorreu agora. Nesta quarta-feira (20), um dia depois da Assembleia Geral da ONU, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou, durante a Cúpula da Ambição Climática, que o Brasil se compromete a reduzir em 48% as emissões até 2025 e em 53% até 2030.
Diante do retrocesso do governo passado, é um avanço, sem dúvida. Só que em números absolutos voltamos apenas aos níveis apresentados em 2015.
A equipe do Política por Inteiro, iniciativa do Instituto Talanoa, fez uma tabelinha marota mostrando o vai e vem da NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada – a meta junto ao Acordo de Paris) desde 2015 e como agora voltamos ao cenário pré-pedalada.
“O retorno da NDC brasileira ao nível de ambição de 2015 é bem-vinda e representa concretamente a mudança de rumos da política climática do país, implementada pelo governo a partir de janeiro de 2023”, escreve a equipe, liderada por Natalie Unterstell, especialista em políticas públicas climáticas.
“Após a correção, o governo brasileiro deve atualizar as metas de uma futura NDC com um real incremento de ambição climática, que se refletirá diretamente em um aumento de credibilidade do país em relação ao princípio da progressão do Acordo de Paris.
Isso envolve adotar novas metas que representem emissões abaixo de 1,3 GtCO2e em 2025 e 1,2 GtCO2e em 2030, independentemente da abordagem metodológica definida. Então, sucessivas atualizações devem estabelecer reduções absolutas, considerando números e dados mais recentes”, aponta a análise.
“À custa de muita pressão da sociedade civil e de uma ação na Justiça, o Brasil finalmente anunciou à comunidade internacional que corrigirá a infame pedalada climática. É muito pouco do ponto de vista da emergência climática e fica muito aquém do que o Brasil poderia entregar em cortes de emissões em 2030. Porém, dada a tragédia dos últimos quatro anos e do tempo de ação climática que o país perdeu ao eleger um governo negacionista em 2018, essa volta ao passado é um passo adiante, especialmente considerando a vergonhosa falta de ambição de outros grandes poluidores”, comentou Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima.
E por que é muito pouco? Não é uma ponderação somente ao que o Brasil tem condições de fazer ou sobre as responsabilidades do país em ajudar a resolver o problema. Trata-se de um dilema universal. No dia 8 de setembro, a Convenção do Clima da ONU (a UNFCCC, braço da organização que coordena as negociações climáticas) publicou o primeiro balanço global sobre como estão as ações globais no combate às mudanças climáticas. É o chamado Global Stocktake – uma análise científica do andamento dos compromissos assumidos no Acordo de Paris.
E a realidade é que, apesar de medidas estarem sendo adotadas em todo o mundo a fim de reduzir as emissões, ainda é pouco para conter o aquecimento global em níveis relativamente seguros para a nossa própria existência. As promessas feitas, mesmo se cumpridas integralmente, ainda colocam o planeta no rumo de um aquecimento de algo entre 2,4 ºC e 2,6 ºC – o ideal acordado em Paris era que não passasse de 1,5 ºC.
Segundo o balanço, é urgente que se zere o subsídio a combustíveis fósseis. “O investimento na produção de combustíveis fósseis precisa ser redirecionado para a transição energética para que o planeta consiga limitar o aquecimento a 1,5 °C ou 2 °C em relação aos níveis pré-industriais, como estabelece o Acordo de Paris. O balanço ressalta que, atualmente, apenas US$ 803 bilhões anuais são direcionados para a ação climática – o que corresponde a 32% do investimento anual necessário para implementar ações de mitigação consistentes com o aumento de até 2 °C na temperatura global”, resumiu o pessoal do Observatório do Clima.
Marina, ao se dirigir, em nome de Lula, à Cúpula da Ambição Climática – convocatória feita pela ONU para que os países apresentassem suas novas contribuições ao combate às mudanças climáticas –, fez questão de frisar que o país voltou a combater sua principal fonte de emissões: o desmatamento da Amazônia. “Mas não basta zerar o desmatamento para resolver a questão da mudança do clima”, reconheceu. “O mundo requer uma transição energética mais ampla.”
É uma mensagem que aponta o dedo para a maior fatia do problema. É a queima de combustíveis fósseis – tão necessária na história da humanidade para promover desenvolvimento, principalmente dos países ricos – a principal fonte de gases de efeito estufa.
E aponta o dedo também para quem inicialmente gerou o problema. São as nações ricas da Europa, os Estados Unidos, a Rússia, o Japão que historicamente mais contribuíram para lotar a atmosfera de gás carbônico e por hoje estarmos vivendo horrores como os incêndios do Havaí, o furacão mediterrâneo que atingiu a Líbia ou mesmo as intensas chuvas que atingem o Sul do Brasil.
Mas já há muitas décadas que o problema se tornou bem mais democrático. O maior emissor hoje é a China, mas o Brasil está ali entre os cinco maiores emissores também.
Marina, lendo o discurso escrito para Lula, cobrou a transição energética do mundo, mas sabe bem que, apesar de o Brasil ter planos de aumentar sua geração de energia com fontes renováveis, tem suas contradições, ao manter o forte desejo de abrir uma nova fronteira de exploração de petróleo na Margem Equatorial. “Precisamos ter a honestidade de dizer que existe uma contradição. Mas é uma contradição que não é só do Brasil, é do mundo”, disse para mim e para Anna Beatriz Anjos em entrevista à Pública.
A questão, de novo, é o tempo para responder à emergência. Não adianta cortar de um lado, mas emitir do outro. Não adianta correr para ficar no mesmo lugar. Avançar a passos curtos, com o risco de perder tudo novamente se um novo governo vier com ideias negacionistas. Retomar só em 2023 o que tinha sido acordado em 2015. É preciso avançar muito. E rápido. O calor, todo mundo está sentindo nesta semana, está implacável.