Buscar
Coluna

A vida interrompida sob o inútil fogo cruzado nas favelas do rio

Ineficazes contra o crime, operações policiais seguem tirando a paz, a renda e os sonhos das famílias da Maré

Coluna
21 de outubro de 2023
06:00

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a Newsletter da Pública, enviada sempre às sextas-feiras, 8h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui

Andrezza pede para eu ligar mais tarde; está colocando o filho para dormir a soneca da tarde. Há dez dias, Raí, 4 anos, está sem aulas, assim como outras 17 mil crianças e adolescentes que estudam na Maré, Rio de Janeiro. Desde que começou a mais recente operação policial, em 9 de outubro de 2023, 44 escolas fecharam na região, onde vivem 140 mil famílias. Só neste ano, já são 20 dias sem aulas. 

A situação é pior para Lua, 7 anos, que está em fase de alfabetização: sua escola fica em Ramos, fora da Maré, e por isso não para por causa de mais uma operação policial, mas não há como levá-la ao colégio. “Ela me diz todos os dias: ‘Mãe, eu não aguento mais ficar sem ir na escola’”, conta Andrezza, igualmente angustiada. “As provas dela estão chegando, ela sente que está ficando defasada porque foi uma semana intensa de leitura e ela está perdendo.” 

Pergunto se ela não vai à escola porque os acessos da Maré estão fechados, mas a resposta de Andrezza me pega como um soco. “A gente não tem como sair porque é muito perigoso. Mesmo nessa operação, que não está tendo um número tão grande de vítimas, tem confronto. Agora, por exemplo, está tendo um tiroteio.” 

“Agora, enquanto você está falando comigo?”, insisto. Ela confirma: “Sim. Agora. Estamos fechados em casa. Eu, as duas crianças e o meu marido, nós dois sem poder trabalhar. É isso, a gente fica com a renda completamente comprometida e com as crianças muito estressadas, porque eles ouvem, né? É muito pesado para eles enfrentar essa realidade assim tão pequenos”.

De acordo com dados do Fogo Cruzado, 268 crianças e adolescentes foram mortos em operações policiais no Rio nos últimos sete anos. 

Andrezza Paulo, 28 anos, mora na Maré desde os 7 anos de idade. Para se graduar em comunicação social na Universidade Federal Fluminense (UFF) teve que superar muitos obstáculos, inclusive operações policiais que várias vezes a impediram de ir às aulas, como vê se repetir com seus filhos. Em 2014, quando a Maré foi ocupada pelo Exército, sua família assistia a um jogo do Brasil na Copa do Mundo em um restaurante, quando a avó, então com 67 anos, levou um tiro de borracha de um soldado. “Foi no dia do 7 a 1 para a Alemanha. Um dos soldados cismou que um dos rapazes que estava assistindo o jogo estava olhando pra ele, ficou aquela briga e ele simplesmente começou a atirar para todos os lados e pegou na minha avó. Ela tem a marca do tiro na barriga até hoje. Isso em um restaurante cheio de gente, com meus sobrinhos de 6 anos na mesa”, diz com indignação na voz. 

Hoje ela trabalha no Maré de Notícias, jornal comunitário que também ficou impedido de circular durante a operação policial. A publicação faz parte da Redes da Maré, organização fundada em 1997 por moradores e ex-moradores com diversos projetos educacionais e de cidadania, incluindo o monitoramento da violência nas operações policiais e assistência jurídica para os moradores. A entidade também está entre aquelas que se mobilizaram pela ADPF 635, a ADPF das Favelas, ação no STF que em 2020 suspendeu as operações policiais nas favelas durante a pandemia e conseguiu decisões favoráveis da corte para garantir o direito dos moradores nas ações policiais.

De sua vivência na comunidade ao estudo dos dados dessas operações, Andrezza tem uma certeza: as operações policiais trazem apenas sofrimento para os moradores da Maré. “Com a ADPF 635, algumas violações diminuíram bastante. As operações que eram sanguinárias, vamos colocar assim, diminuíram absurdamente, são pontuais. Antes da ADPF pelo menos uma vez ao mês tinha uma operação que levava no mínimo três, quatro, cinco mortes. Agora tivemos uma pessoa morta na operação. Mas o Bope continua a entrar sem câmera nos uniformes, apesar da decisão do STF”, aponta, ecoando as denúncias registradas pelo jornal em que trabalha. “E a constância dessas operações – hoje é o sexto dia de operação em dez dias no mês – atrapalha muito também. Porque efetivamente não é uma operação de sucesso. Eles nem chegam perto dos chefões do crime organizado, enquanto os chefes de família ficam sem trabalhar. Meu marido tem uma barbearia que ele não pode abrir, assim como os muitos empreendedores, e estamos falando de empreendedores de necessidade. Qual é o foco dessas operações?”, questiona.

Sem controle externo da polícia, iniciativas como a Redes de Maré, que acompanham as operações in loco, coletam dados e documentam denúncias que acabam funcionando como “um sinal para as autoridades de que tem gente olhando”, como diz o professor da UFF, Daniel Hirata, doutor em sociologia e pesquisador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Há 8 anos, Hirata também criou o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense.

“Já faz 40 anos que, de forma mais ou menos ininterrupta, as operações policiais são o principal instrumento de ação pública na área de segurança do Rio de Janeiro. Nós já mostramos em diversos relatórios que a maior parte dessas operações são absolutamente ineficientes tanto para o controle da criminalidade comum como da criminalidade organizada”, explica o pesquisador, acrescentando que os relatórios também demonstram “que há um direcionamento muito maior das operações policiais para o tráfico de drogas do que para as milícias”. 

Para Hirata, as operações continuam “porque são ações de alta visibilidade, espetaculares, que transmitem a ideia de que se está combatendo o crime”. “Elas têm um apelo comunicacional e portanto um retorno do ponto de vista político-eleitoral que é bastante importante. Isso me parece a grande eficácia das operações policiais”, aponta.

O mais triste é que o país já tem estudos e pesquisadores para propor um modelo mais humano e eficaz de segurança pública. “Eu estava conversando com um epidemiologista outro dia, e ele estava falando como se conseguiu erradicar rapidamente tantas doenças no Brasil com decisões acertadas e políticas públicas eficientes. Na área de segurança é a mesma coisa. Não adianta insistir em operações policiais que não atingem os dois pilares de sustentação dos grupos armados: sua base econômica, os negócios, e o amparo político que sustenta a existência desses grupos. Tem maneiras muito mais eficientes de combater a criminalidade, sem impactar tanto a vida, a saúde, a educação e a renda das comunidades”, afirma. 

Enquanto isso, no sétimo dia de operações na Maré, Andrezza e seus filhos continuam trancados em casa, entre tiros e sonhos partidos. “A gente tem que manter a cabeça fria mesmo muito preocupados porque não tem nenhuma previsão de quando isso vai acabar”, ela me disse. “Já vai ser muito difícil de recuperar esse tempo que nós estamos sem trabalhar, as crianças sem estudar em época de provas na escola. Eu fico pensando também em quem tem filhos no ensino médio, com o Enem batendo na porta. É o futuro que se perde, não tem como recuperar.”. 

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Aviso

Este é um conteúdo exclusivo da Agência Pública e não pode ser republicado.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes