Buscar
Coluna

Carne e sol

Uma startup brasileira promete uma solução mágica para a pesca predatória: carne de peixe feita em laboratório

Coluna
1 de outubro de 2023
06:00

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.

Peço licença ao leitor para entrar em um assunto que não é exatamente relacionado à tecnologia e democracia, mas perpassa alguns dos temas que temos discutido nas últimas semanas.

É domingo à noite, estou de biquíni na sala da minha casa, que, graças a Deus, tem piso de cimento queimado, o que mantém o ar fresco nessa semana de um calor enlouquecedor na selva de pedra que é São Paulo. Os termômetros chegaram a 41 graus hoje no centro da cidade e devem seguir altos. Tanto que a prefeitura teve que fazer pela primeira vez na história a Operação Altas Temperaturas para atender os moradores de rua – até então essas operações de atendimento aconteciam apenas no inverno. Como mostramos na Agência Pública, esses moradores têm enorme dificuldade em conseguir água. “A gente fica agoniado, a cabeça dói, no frio é ruim, mas o calor tá demais. Dá tontura, dor de barriga… é sofrimento. A verdade é essa”, disse Fabiano José.  

É a onda de calor que lá no norte global causou o verão mais quente de todos os tempos. As altas temperaturas fizeram milhares de mortes na Europa e centenas de incêndios florestais. Nos Estados Unidos, pessoas tiveram queimaduras de terceiro grau ao tocar em objetos expostos ao sol, e o asfalto chegou a 80 ºC, derretendo rodas de carro, por exemplo, em Phoenix, no Arizona. A ilha de Maui, no Havaí, foi devastada por causa de um incêndio. 

O Brasil é, neste momento, o lugar mais quente do mundo. O Instituto Nacional de Meteorologia emitiu alerta vermelho para 11 estados e o Distrito Federal, avisando que as temperaturas ficariam 5 graus acima da média por mais de cinco dias. 

E olha que mal começou a primavera.   

A onda de calor deste ano tem influência do El Nino, sim, mas ela vem para nos mostrar que a crise climática não é um assunto do futuro.  

Pesquisadores do grupo World Weather Attribution afirmaram que as ondas de calor que afetaram a América do Norte e a Europa em julho teriam sido praticamente impossíveis sem a mudança climática causada pelo homem. Eles dizem também que eventos climáticos extremos devem se tornar mais frequentes.

A organização prevê que eventos como essa onda de calor atual ocorrerão aproximadamente a cada cinco anos se o aquecimento global atingir 2 °C acima dos níveis pré-industriais. 

Como sabemos, o Acordo de Paris busca limitar o aquecimento a 1,5 °C. Mas nós já nos aproximamos, segundo esses pesquisadores, de 1,1°C de aquecimento. 

Agora, por que eu estou falando de emergência climática nesta newsletter que discute tecnologia (em vez de deixar o tema para a especialista Giovana Girardi, em sua newsletter enviada às quintas-feiras)? 

Porque eis que eu recebo a notícia de que a empresa brasileira Sustineri Piscis está fazendo testes para produzir carne de peixe em laboratório.

Essa solução esdrúxula tem pipocado em revistas e jornais do mundo todo, naquela mistura de marketing e aplausos acríticos, como uma grande solução “sustentável” que pode ajudar a combater os estragos da criação de frangos e bovinos, a pesca predatória, a degradação ambiental e, claro, combater a emergência climática. Existem vários laboratórios no mundo testando a tal “carne de laboratório”. 

A Anvisa ainda não aprovou, mas a agência de administração de alimentos e drogas americana (FDA) aprovou duas empresas que fazem carne de frango em laboratório. 

No caso da empresa brasileira, o processo funciona assim (até onde entendi): células são retiradas de robalos vivos e depois se reproduzem ao longo de duas semanas em um biorreator, mergulhadas numa solução líquida que inclui soro fetal bovino. No final, o que se tem é uma espécie de carne de robalo moída.

O fundador, o biólogo marinho Marcelo Szpilman, conseguiu fazer 500 gramas da massa proteica de robalo, parte da qual ele transformou em 46 bolinhos que foram servidos a um grupo VIP no badalado restaurante Xian, no centro do Rio. 

É pouco; ele procura R$ 17 milhões em investimento para poder produzir mais e encontrar uma maneira de comercializar a solução. 

“Como você produz mais proteína para sustentar 10 bilhões de pessoas em 2050? Como dobra o número de peixes capturados? Impossível, até porque o esforço de pesca é cada vez maior e cada vez [se obtêm] menos peixes”, perguntou o inventor ao site Reset. “Temos que criar o mercado, sair na mídia e mostrar que [a carne cultivada] já é uma realidade.” 

O que me traz de volta àquela questão que tanto discutimos por aqui, seja em relação às redes sociais, seja em relação à inteligência artificial: por que seguimos aceitando todo e qualquer tipo de solução tecnológica como se fosse necessariamente boa? 

Queremos realmente alimentar um mundo faminto (e sem água) com uma gororoba de peixe criada em laboratório que nem chegou a ser peixe, nem des-chegou a ser peixe? 

Não seria o caso de a gente estar pensando em comer menos peixe, menos carne, consumir menos, cuidar do que ainda resta do nosso planeta? Repensar o hipercapitalismo que, depois de questionado nas ruas valentemente no início dos anos 2010, só aumentou o ganho dos ricos e a miséria dos pobres? 

Infelizmente, caro leitor, não acho que será assim. Como no caso dos alimentos transgênicos, que causaram, entre outras coisas, uma enorme concentração do mercado e uma piora na qualidade dos alimentos, as carnes de laboratório se tornarão mais um caso de fato consumado. Assim como a inteligência artificial. E só servirão, mais uma vez, para entregar em poucas mãos privadas algo de que, se deixarmos, todos iremos depender. 

O que nos faz voltar ao tema central desta e de todas as nossas colunas: o que está errado é a ideologia de que as soluções para os problemas mais prementes da humanidade serão sempre resolvidas com mais tecnologia. É essa mentalidade que temos que combater incansavelmente. 

Tech won’t save us, já diziam os estudiosos da internet.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Aviso

Este é um conteúdo exclusivo da Agência Pública e não pode ser republicado.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes