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Como os vilões do cinema, ele veio em uma noite de chuva fina usando um casaco e com o rosto encoberto por um grande chapéu, que uma testemunha chamou até de sombrero. Fez algumas perguntas estranhas e de repente sacou o revólver e atirou à queima-roupa três vezes no indígena Guarani-nhandeva de camisa azul e calça jeans que estava parado à sua frente, de óculos, magro, baixinho. Atingido no peito, perto da clavícula e no antebraço esquerdo, Marçal de Souza, o Tupã-I, uma das maiores lideranças indígenas da história do país, tombou de lado e morreu aos 63 anos.
O atirador estava acompanhado de outro homem, de calça branca e cigarro na mão, que assistiu a tudo impassível. Cumprido o ataque, a dupla correu para o mato. A poucos metros dali, um carpinteiro acordou com os tiros e correu para a varanda de sua casa a tempo de ver os dois vultos atravessando o pasto até chegarem a um veículo que os aguardava, com as luzes acesas, na beira da estrada. O carro deu um giro e arrancou, levando o grupo para a escuridão e para o anonimato. O sistema judicial nunca condenou quem mandou e quem apertou o gatilho que silenciou Marçal na aldeia indígena de Campestre, no município de Antônio João (MS).
Quatro décadas depois daquela sexta-feira, 25 de novembro de 1983, o Ministério Público Federal (MPF), na figura do procurador da República em Dourados (MS) Marco Antônio Delfino de Almeida, trabalha para pedir à Justiça que o Estado brasileiro seja instado a reconhecer que também houve, ao tempo do assassinato, ocorrido no contexto da luta de Marçal pela demarcação da terra indígena Pirakuá, em Bela Vista (MS), uma perseguição política feita por agentes da ditadura militar (1964-1985) contra Marçal.
Paralelamente à abertura da ação, um grupo formado a partir da iniciativa do MPF com uma das filhas de Marçal, a professora Edna de Souza, lideranças indígenas, a reitoria e professores da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), o cineasta Joel Pizzini, entre outras pessoas, articulam a ideia de um projeto que possa homenagear Marçal e criar um espaço de convivência, memória e estudo em Dourados (MS). O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também não deixará a data passar em branco.
Documentos que vieram à tona a partir de meados dos anos 2000 com a abertura dos arquivos do braço do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) na Funai (atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas), hoje sob a guarda da coordenação regional do Arquivo Nacional em Brasília, mostram como Marçal se tornou um alvo dos agentes do governo militar no sul do então Mato Grosso. Em 1975, Marçal foi identificado pela Funai, na época presidida pelo general do Exército Ismarth Araújo de Oliveira, como alguém “que procurou aliciar os índios contra os seus capitães”, função informal atribuída a determinados indígenas em várias partes do país como autorização governamental a fim de “representar” os anseios das aldeias.
Em um relatório confidencial de 1975, o então chefe do posto da Funai em Dourados informou aos seus superiores que não queria a presença de Marçal na região. Tudo porque o indígena havia feito um discurso “sobre o problema do índio, colocou-se no papel de defensor dos mesmos, sentindo-se inclusive superior aos capitães e ao chefe do posto, mostrando-se mesmo insubordinado a esta chefia”.
O preposto da Funai chamou Marçal de “insubordinado”, que fazia “uma atuação política contra o chefe do posto, capitães e, consequentemente, Funai, junto aos indígenas aldeados neste posto, além de interferência em outras áreas vizinhas”. Em razão da sua atuação política, certa vez Marçal foi violentamente espancado a mando de um dos principais “capitães” da região. Foi também algumas vezes transferido de aldeia por ordem da Funai. Sua participação em eventos públicos era acompanhada e citada em relatórios do SNI.
A perseguição não impediu que Marçal se projetasse como uma das principais lideranças indígenas do país, tendo participado da criação da União das Nações Indígenas (Unind), em 1980, sigla depois alterada, em 1981, para UNI. Em 1981, Marçal aparece nos documentos da Unind como seu vice-presidente. A entidade sem fins lucrativos “nem caráter político-partidário ou religioso” tinha como objetivos no seu estatuto a promoção da “inviolabilidade e demarcação das terras” indígenas, o uso “exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes” e a assessoria a indígenas e suas comunidades “no reconhecimento de seus direitos”.
Naquele momento da ditadura militar, montar uma organização como a UNI implicava muitos riscos. No mesmo Dia do Índio de 1981 em que a UNI ganhava força, por exemplo, agentes do Dops de São Paulo prenderam 17 pessoas ligadas ao movimento grevista dos metalúrgicos da região do ABC paulista, entre os quais um sindicalista chamado Luiz Inácio Lula da Silva.
A ditadura voltou-se contra a UNI, procuraram controlar e esvaziar a entidade indígena. A Funai era presidida pelo coronel da reserva do Exército João Carlos Nobre da Veiga, um ex-assistente de segurança da Docegeo, subsidiária da estatal Companhia Vale do Rio Doce. Quando foi escolhido para o cargo, Veiga disse que “só conhece a história do índio gaúcho Sepé Tiaraju”, um Guarani do século 18. Ele levou inúmeros militares para dentro da Funai, tanto que sua gestão ficou conhecida como “o tempo dos coronéis”.
No início dos anos 1980, a Procuradoria Jurídica da Funai disse que aceitaria a UNI, desde que ela funcionasse “com a assistência e sanção do órgão tutelar”, ou seja, sob completo controle da Funai. A Agência Central do SNI apontou “inconveniência e pela inviabilidade legal da criação” da entidade.
Em 1980, o ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência, o general Golbery do Couto e Silva, um dos conspiradores do golpe de 1964, repassou ao então ministro do Interior Mário Andreazza, “de ordem do senhor presidente da República [o ditador João Figueiredo], orientação no sentido de que a Funai se abstenha de qualquer providência ou ajuda tendente a estimular a constituição da entidade”. Com o tempo, sabotada, e também por dificuldades internas de organização, a UNI se esvaziou e acabou extinta.
Marçal de fato assustava a ditadura. Três anos antes do seu assassinato, ele havia discursado em tom profético na frente do papa João Paulo II na sacada do palácio episcopal de Manaus, no Amazonas, durante a primeira visita do líder da Igreja Católica ao Brasil. “Pesamos à Sua Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte de nossos líderes, assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão, que para nós representa a nossa própria vida e a nossa sobrevivência nesse grande Brasil, chamado um país cristão”. Marçal fora escolhido pela UNI para falar em nome de seus parentes.
“Represento aqui o Centro-Sul desse grande país, a nação kaingang que perdeu recentemente seu líder. Foi assassinado também o Pankararé, no Nordeste. Perdeu o seu líder porque quis lutar pela nossa nação. Queriam salvar a nossa nação, trazer a redenção para o nosso povo. Mas não encontrou redenção, mas encontrou a morte.”
Marçal era um grande orador, referido poeticamente como “o banguela dos lábios de mel”. Em 1955, ao visitar a missão presbiteriana na aldeia indígena de Dourados, o escritor Orígenes Lessa (1903-1986) ouviu o guarani fazer uma “prece admirável, toda construída em estilo bíblico. Uma voz doce, respirando fervor”. Na cidade de Patrocínio (MG), Marçal estudou por três anos no Instituto Bíblico Eduardo Lane, fundado nos anos 1920 por reverendos norte-americanos a fim de dar capacitação teológica e pessoal a futuros missionários em lugares afastados dos centros urbanos do Brasil. Ali aprendeu “homilética [ofício de pregar sermões religiosos], exegese e oratória”.
Darcy Ribeiro (1922-1997), o conhecido antropólogo e ex-ministro de João Goulart, disse que Marçal era “o índio mais eloquente” que já conhecera. Um pouco da capacidade retórica de Marçal pode ser visto no filme “Terra de índios” (1979), de Zelito Viana (por exemplo, aqui a partir dos 3min26s).
O ex-deputado estadual Laerte Tetila, autor de um livro sobre Marçal, uma vez disse que nunca tinha visto “um orador tão vibrante. Ele não perdia o fio da meada. Ele prendia a atenção de todo mundo. Tinha começo, meio e fim. Seu discurso era assim impressionante”.
Quase dez anos depois da morte de Marçal, em março de 1993, eu cobri, como repórter de um jornal hoje extinto no Mato Grosso do Sul, o primeiro julgamento do acusado de ser o mandante do crime, o fazendeiro Líbero Monteiro de Lima, cuja propriedade incidia sobre boa parte da terra indígena. Em uma semana de muito calor, com dezenas de pessoas aglomeradas em frente à Câmara de Vereadores da cidade de Ponta Porã (MS), na fronteira com o Paraguai, os indígenas dançaram e cantaram pedindo justiça. Mas foi tudo em vão, Líbero acabou absolvido por seis votos a um.
Num dos momentos mais dramáticos do julgamento, o promotor de justiça encarregado da acusação jogou uma porção de papéis para o alto, dizendo que “eles não valiam nada”. Era uma ironia à linha da defesa apresentada pelo fazendeiro, que apontou diversos buracos na investigação. O principal defensor, um talentoso e requisitado criminalista chamado Renê Siufi, explorou habilmente as inconsistências do inquérito.
A investigação da Polícia Federal foi sabotada desde o começo, como mostram os documentos hoje abertos à consulta e a memória do ex-delegado do caso. Não havia pessoal nem estrutura suficientes para o trabalho. O delegado ficou apenas 25 dias na presidência do inquérito. Foi trocado abruptamente por ordens superiores. Em casos de homicídio, os primeiros passos de uma apuração são os mais críticos.
No caso de Marçal, ela ficou parada nada menos que 48 dias, de dezembro de 1983 a fevereiro de 1984. O governo do estado distribuiu uma versão sobre o homicídio que se mostrou falsa, o que colaborou para mais confusão. O juiz do caso, Luiz Carlos Saldanha Rodrigues, certa vez escreveu, em despacho no processo, que a polícia agiu “sem proceder ao isolamento da área [do crime], sem proceder ao exame do local e sem apreender os objetos que tivessem ligação com o crime ou que viessem a facilitar a descoberta da autoria”.
Um ex-funcionário de Líbero, Rômulo Gamarra, chegou a ser preso, mas acabou solto. Diferentes testemunhas informaram que Gamarra, pouco antes do assassinato de Marçal, tinha pressionado indígenas a deixarem o Pirakuá, exatamente a terra indígena pela qual Marçal lutava em desacordo com o fazendeiro. A viúva de Marçal também declarou que Gamarra pressionou seu marido, até suborno em dinheiro foi oferecido e rechaçado por Marçal. Mas o tribunal do júri considerou que não houve prova de mando de Líbero e também da autoria do crime por Gamarra. Ambos foram absolvidos. Depois de libertado, Gamarra nunca mais foi encontrado e até agora é considerado um desaparecido. Teria hoje 98 anos de idade. Líbero foi submetido a um segundo julgamento, do qual também saiu absolvido. Ele morreu em 2009.
Marçal foi assassinado após inúmeras advertências encaminhadas ao governo a respeito de sua segurança física terem sido desconsideradas ou relativizadas. Era um crime anunciado. Cinco anos depois, o país e o mundo se escandalizariam com uma situação semelhante que antecedeu o assassinato do ambientalista e seringalista Chico Mendes, no Acre.
O Estado brasileiro, em especial o Estado militar brasileiro, falhou totalmente na hora de dar proteção a Marçal – e também por isso deveria ser penalizado, no mínimo como exemplo histórico. Passadas quatro décadas do crime, o Brasil tem hoje, pela primeira vez em 523 anos, um ministério específico e um órgão indigenista comandados por duas indígenas, Sônia Guajajara e Joênia Wapichana, legítimas representantes dos movimentos indígenas que têm suas raízes lá na UNI, formada depois da experiência das assembleias indígenas iniciada corajosamente ainda nos anos 1970, em plena repressão militar.
O próximo dia 25 seria uma oportunidade de fazer certa justiça, ao menos anunciar tal disposição, para Marçal de Souza, seus familiares e os indígenas Guarani, que agora podem buscar, via MPF, algum tipo de reparação. Parafraseando o que ele disse ao papa João Paulo II, Marçal não encontrou a redenção, mas sim a morte impune.