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A notícia é nova, mas tem sensação de déjà-vu: o Spotify, gigante sueco do setor de streaming, anunciou que vai deixar um país, o Uruguai, após o Congresso aprovar uma nova legislação que o obrigaria a pagar mais pelo conteúdo que utiliza, reduzindo seus lucros.
A mudança veio dentro do projeto de lei orçamentária aprovado em outubro, e que inclui dois novos artigos. Um deles determina que redes sociais e serviços de internet passarão a valer como um “novo formato” pelos quais “se uma música for reproduzida, o intérprete terá direito a uma remuneração financeira”. O outro diz que os autores têm direito a “uma remuneração justa e equitativa” em todos os acordos “celebrados entre autores, compositores, intérpretes, realizadores e roteiristas no que diz respeito à sua faculdade de comunicação pública e à disponibilização ao público de fonogramas e gravações audiovisuais”.
O Spotify não gostou nada e anunciou que vai descontinuar seu serviço no Uruguai a partir de 1º de janeiro do ano entrante, encerrando todas as operações em fevereiro.
A mudança na legislação uruguaia vem depois de pressão da Sociedade Uruguaia de Intérpretes (Sudei), que reclama que não recebe um centavo a mais pelo uso de suas músicas por plataformas de streaming.
A demanda não é nova: em 2021, uma coalizão liderada pela União de Músicos e Trabalhadores Aliados dos Estados Unidos liderou um protesto diante dos escritórios do Spotify em 31 cidades, pedindo royalty de 1% sobre a receita para os criadores, além de mais transparência da empresa de tecnologia.
Para o leitor saber, se você assina um contrato com uma plataforma de streaming – seja você músico, roteirista, diretor ou ator –, é comum que haja uma cláusula estipulando que o fruto suado do seu trabalho poderá ser usado, sem custo adicional, em todos os novos formatos que vierem a ser inventados” e “em todo o Universo”. Ou seja, em alguns anos, sua música vai estar numa rave em Marte e você não vai ganhar nada a mais por isso.
Eu exagero, claro, mas basta ter um pouquinho de imaginação para entender a implicação do modelo atual. O próprio Spotify já anunciou que vai agora usar inteligência artificial para traduzir a voz dos seus principais podcasters para outras línguas. Para a empresa, o custo é zero, o lucro é potencialmente exorbitante, e quem doou seu trabalho e sua voz não vai ganhar nem um centavo a mais.
Por sua vez, o Spotify alega que a nova lei uruguaia não traz “clareza” sobre o novo pagamento e que teme ter que pagar “duas vezes” pelo mesmo conteúdo. Também diz que já paga 70% do valor de cada dólar para quem detém os direitos autorais da música e afirma ser responsável por um aumento de 20% no mercado de músicas do Uruguai. Em uma carta ao ministro de Educação e Cultura, a empresa afirmou que a proposta tornaria “o negócio Spotify inviável, em detrimento da música uruguaia e seus fãs”.
Esse problema poderia ser algo localizado e anedótico, mas não é; estamos vendo o mesmíssimo problema que as plataformas como Google e Facebook têm protagonizado aqui no Brasil ou no Canadá. O problema de fundo, ouso dizer, é que essas empresas de tecnologia continuam usando em seus embates com o poder público a premissa de que representam “o bem comum”, o “compartilhamento amplo de conteúdo humano”, de maneira “altruísta”, quando na verdade se tornaram feudos hiperconcentrados de conteúdo sobre o qual seus algoritmos exercem pesada curadoria e lucram muito.
Esse mito fundador, ridiculamente desatualizado, é o que serve de base para que elas ajam de maneira a acusar governos de serem “censores”, autoritários, abusivos etc. em todas as negociações. E jogam de maneira violenta, ameaçando, chantageando, usando sua popularidade junto ao público amplo para defender seu lucro, como acontece hoje no Uruguai.
Isso pode ajudar sua causa no curto prazo, mas apenas ajuda a deteriorar a confiança em instituições públicas no momento em que mais precisamos delas. Lembrem que o Uruguai faz fronteira ali do lado com a Argentina – basta atravessar Mar del Plata – onde tem um leão ultraliberal à espreita querendo queimar todo navio.
Com a onda regulatória avançando no mundo inteiro, essa é uma postura absolutamente contraproducente. A regulação virá, protelar não ajuda e jogar o público contra um governo que se senta à mesa para dialogar, como parece ser o caso uruguaio, é apenas um tiro no pé.
Para apoiar sua tese, o Spotify lançou mão de uma estratégia pra lá de antiga – o grupo de lobby – e conseguiu algumas manchetes ao receber o apoio do grupo Asociación Latinoamericana de Internet, uma associação patronal composta por todos os gigantes do Vale do Silício e também por TikTok, Airbnb, Rappi e Mercado Livre.
Embora o Spotify já tenha anunciado sua saída e dado até um prazo final, o secretário da Presidência, Álvaro Delgado, tentou transmitir calma e disse que está “em diálogo” para evitar a saída e chegar a um acordo. Apesar de o Uruguai ser um mercado pequeno, o 53º maior da plataforma, como em todos os embates regulatórios, o mundo todo está observando.
Em tempo: aqui no Brasil, o debate sobre regulação dos streamings também avançou, com a aprovação, na última semana, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado do PL 2.331/2022, que obriga plataformas de streaming como Netflix, HBO, Disney, Globoplay a pagar o Condecine e exibir uma cota mínima de produções brasileiras nos seus serviços. A lei tem gerado reclamações do YouTube e TikTok, que também foram listados como serviços de streaming.
Através da Câmara Brasileira da Economia Digital, o grupo de lobby das Big Techs, ambos reclamaram que o PL “pode reduzir o acesso dos brasileiros à cultura, inibir a inovação no setor audiovisual e ameaçar a ordem econômica e a livre iniciativa”, repetindo o argumento do Spotify lá no país vizinho. Mais uma briga para ficar de olho.