Grande parte do ar que respiramos é produzido nos oceanos por criaturas que nem enxergamos. Um trabalho feito de forma consistente ao longo de milhões de anos por seres microscópicos chamados de plâncton, que bombeiam quantidades gigantescas de oxigênio para a atmosfera. Porém, esse esforço pode estar comprometido por um cenário que tem se agravado nos anos recentes: o aquecimento anormal dos oceanos combinado com o forte El Niño de 2023 e 2024.
Espalhados pelos mares, que ocupam mais de 70% da superfície da Terra, esses organismos invisíveis ao olho nu realizam a fotossíntese e capturam o gás carbônico (CO2) emitido pela queima de combustíveis fósseis, ajudando a reduzir o cobertor de gases de efeito estufa que superaquece o planeta. Além de serem indicadores da saúde dos oceanos, são verdadeiros aliados na luta contra as mudanças climáticas.
Porém, as alterações climáticas podem reduzir a capacidade de absorção de CO2 pelo plâncton, favorecendo a elevação da temperatura global. “Os oceanos absorvem 25% das nossas emissões anuais de gás carbônico, mas a tendência é que esse índice diminua com o aumento da concentração do gás na atmosfera. A capacidade [de filtragem] é limitada”, avalia Hugo Sarmento, professor do Laboratório de Biodiversidades e Processos Microbianos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). O sequestro e armazenamento de gás carbônico pelos ecossistemas marinhos é o chamado carbono azul.
Com longa experiência em expedições científicas pelos oceanos, Sarmento participou da elaboração de uma nova pesquisa publicada na revista Science Advances e acessada com exclusividade pela Agência Pública. Liderado pelo pesquisador Pedro Junger, o trabalho buscou encontrar explicações para as diferenças na distribuição das espécies do picoplâncton, como são denominados os organismos do plâncton que levam a palavra “minúsculo” ao extremo: são cem vezes menores que a espessura de um fio de cabelo. O estudo se baseou em amostras de água do mar coletadas de 2010 a 2023 ao redor do mundo em três faixas de profundidade: 200 metros, 1.000 metros e 4.000 metros.
“Quem olha para o mar pode achar que é tudo igual, do mesmo tom de azul, mas com a análise dos microrganismos nós vemos que existem as províncias oceanográficas, paisagens marinhas que se diferenciam”, afirma o pesquisador. “A savana africana e o cerrado brasileiro são biomas parecidos, mas não são iguais. Acontece a mesma coisa com o oceano. Nosso objetivo era estudar as razões para a diferença observada entre o picoplâncton da superfície e o do oceano profundo. Compreender esse processo nos ajudaria a prever os efeitos das mudanças climáticas na comunidade marinha”.
As descobertas foram importantes para entender como o picoplâncton é afetado por alterações em seu ambiente. Os cientistas concluíram que os organismos que habitam a superfície do oceano, em até 200 metros de profundidade, são mais suscetíveis a mudanças de temperatura, salinidade e acidez da água. Por outro lado, as espécies que vivem nas profundezas, entre 1.000 e 4.000 metros, são mais afetadas por variações nas correntes marinhas.
Sarmento explica que todos esses fatores são perturbados pela intensificação do efeito estufa: a temperatura do Atlântico nunca esteve tão alta, a acidificação dos mares bateu recorde em 2023 e a circulação dos oceanos também se modifica com as mudanças climáticas. “Essas correntes podem ficar mais fortes ou mais fracas, e ao ficarem mais fortes ou mais fracas, alteram toda a circulação oceânica. Estamos observando uma diminuição na força da Corrente do Golfo [que aquece a Europa ocidental] com o aumento da temperatura do Atlântico Norte”.
De acordo com o pesquisador, essas modificações afetam o clima da Terra como um todo. No balanço global, é muito provável que esteja ocorrendo uma diminuição da eficiência de absorção de CO2 pelos oceanos: com mais trechos dos oceanos com água quente, há uma redução significativa da eficiência da fotossíntese realizada pelo plâncton, já que as regiões frias são mais ricas em nutrientes e favorecem a fixação de gás carbônico pelos microrganismos. Em outras palavras: esses microrganismos têm mais dificuldade de fazer seu trabalho nas águas aquecidas pela alteração climática.
“Se não fosse pelo plâncton, o planeta estaria até 17ºC mais quente do que é hoje”, afirma o cientista. Segundo a paleoclimatologia — área do conhecimento que estuda as variações climáticas ao longo da história da Terra —, uma das últimas vezes que o planeta registrou temperaturas tão elevadas foi há 50 milhões de anos, na época geológica chamada Eoceno, quando não havia gelo nos polos e crocodilos viviam no Ártico.
“O picoplâncton participa ativamente na formação do que chamamos de neve marinha, que são agregados de partículas orgânicas ricas em carbono que se acumulam no fundo do mar. E uma coisa é certa, o oceano mudou de cor nos últimos 20 anos por conta das mudanças climáticas”. Sarmento se refere não à cor visível ao olho humano, e sim à tonalidade emitida pela clorofila, a molécula da fotossíntese que possui propriedades fluorescentes quando irradiada pela luz azul. Imagens de satélite permitem analisar se a intensidade da fluorescência da clorofila está aumentando ou diminuindo em regiões específicas dos mares.
A atmosfera e os oceanos estão em constante interação. O pesquisador explica que os recordes de aquecimento do planeta e das águas marinhas registrados em 2023 atuam em conjunto para intensificar diversos eventos extremos, como os ciclones extratropicais que atingiram o Sul do Brasil, a seca na Amazônia e as tempestades sem precedentes na Líbia. Os oceanos mais quentes atuam como uma sopa quente que só agrava os efeitos da crise climática sentidos em terra firme.
Iniciativas de fertilização artificial dos oceanos podem gerar conflitos internacionais
De tão pequenos que são, os organismos que formam o picoplâncton só foram descobertos pela ciência em 1987, já que nem apareciam em microscópios convencionais. De lá para cá, passaram a ser mais estudados e foi estabelecido o consenso de que são fundamentais para a filtragem da atmosfera e a saúde da vida no planeta.
Esse entendimento também vem motivando iniciativas de fertilização artificial dos oceanos, com o despejo de nutrientes e minerais como o ferro para intensificar a produtividade do plâncton e aumentar a retirada de CO2 da atmosfera – uma forma de tentar compensar os recordes de emissões registrados ano após ano. Por enquanto, essas ações ocorrem apenas a nível experimental e em ambientes controlados, mas Sarmento avalia que devemos nos deparar com implementações em larga escala num futuro próximo.
“Vários países já estão direcionando recursos financeiros em soluções desse tipo, porque perceberam que só parar as emissões não será suficiente. Agora, as nações ricas não vão querer jogar perto do litoral delas, vão jogar longe, no mar aberto, e praticamente não existe legislação para essas áreas – o oceano aberto não é de ninguém. Qualquer um pode chegar lá e jogar toneladas de coisas para estimular o plâncton e fazer o que quiser, não existem tratados sobre isso”, alerta o pesquisador.
Ele dá um exemplo do impacto negativo que pode ocorrer com esse tipo de ação: “Imagina se a área da foz do rio Amazonas for um bom hotspot para fertilizar o oceano e países ricos decidem fazer isso lá. Se [a fertilização] for além das 300 milhas náuticas, o Brasil não tem domínio, então não pode fazer nada, mas vai que isso causa algum efeito na pesca ou na vida das pessoas? Faltam muitos estudos para entender as consequências que a fertilização pode trazer”.