Antes mesmo de dar a largada, a 28ª edição da Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas, mais conhecida como COP28, já foi atravessada por inúmeras polêmicas e controvérsias. A começar pela escolha da presidência do evento: os Emirados Árabes Unidos, um dos 10 países com a maior produção de petróleo do mundo.
Em meio ao ano mais quente da história, o evento tem sido palco de conflitos entre chefes de Estado sobre metas de combate às mudanças climáticas. Além disso, a COP deste ano bateu recorde no número de lobistas da indústria do petróleo, as chamadas Big Oil. Segundo um estudo, foram ao menos 2.456 lobistas credenciados e circulando pela conferência — suspeita-se que foram lá para expandir suas agendas num evento que deveria rechaçar o uso desses combustíveis.
Histórias como essas têm sido vivenciadas dia a dia pelas jornalistas da Pública Giovana Girardi, editora de clima, e a repórter Anna Beatriz Anjos. Diretamente de Dubai, elas comentam no Pauta Pública desta semana a participação do Brasil, visto com postura contraditória ao tentar se colocar na liderança global do debate sobre clima, apesar de ser um recém-aliado dos países exploradores de petróleo.
Confira os principais pontos da entrevista e ouça o podcast na íntegra abaixo.
EP 101 O que está em jogo na COP28 – com Giovana Girardi e Anna Beatriz Anjos
[Clarissa Levy] Para começar essa conversa, eu queria que contassem um pouco como foram os primeiros dias desta 28ª edição da COP, num ano que registrou recorde de temperaturas?
[Anna Beatriz Anjos] O clima está bem quente aqui em Dubai, em todos os sentidos. A COP começou oficialmente no dia 30. Já nos dias 1 e 2 de dezembro aconteceu a cúpula dos líderes, onde que chefes de Estado de vários países fizeram seus discursos, reuniões e anunciaram acordos.
Essa é a primeira COP do terceiro mandato do presidente Lula. No ano passado, na 27ª edição da COP, realizada no Egito, ele ainda não havia tomado posse como presidente eleito. E deu para sentir uma diferença no clima da passagem dele este ano.
Ano passado ele foi recebido nos braços do povo, como se fosse um popstar, porque tinha acabado de ganhar a eleição, ainda estava um certo clima de campanha. Ele foi recebido com muita esperança, tanto pelos movimentos sociais, sociedade civil, comunidade científica brasileira e internacional, mas também pelos próprios países, pelos outros líderes. Isso tudo após quatro anos de governo Bolsonaro, marcado pelo desmonte dos órgãos ambientais, aumento do desmatamento e do negacionismo em relação às mudanças climáticas
Esse ano, foi um pouco diferente. Por estar na posição de chefe de Estado, circulou por espaços um pouco mais restritos, aos quais, muitas vezes, nem mesmo a imprensa tinha acesso. Então, por exemplo, os discursos dele, nós, jornalistas, acompanhamos do centro de imprensa.
Na bagagem, Lula trouxe um resultado muito importante que foi a queda de 22,3% no desmatamento da Amazônia, entre agosto do ano passado e julho deste ano. Mas, por que isso é importante? Porque, no Brasil, o desmatamento é a principal causa de emissões de gases de efeito estufa — o principal fator causador do aquecimento global.
Entre 2021 e 2022, houve uma pequena diminuição, mas de 2017 até 2021, o desmatamento cresceu e o Brasil estava sendo muito cobrado por isso, porque estava contribuindo para o agravamento do aquecimento global e, consequentemente, da crise do clima.
Então, além desse resultado muito importante — anunciado no começo de novembro, pouco antes da COP começar —, Lula também trouxe algumas propostas nessa pauta de florestas, como a criação de um fundo chamado Fundo Floresta Tropical para Sempre, para ajudar cerca de 80 nações detentoras de florestas tropicais a financiar a conservação delas.
Isso é considerado um mecanismo inovador, que ainda está sendo desenvolvido pelo Brasil, que é líder na questão de florestas, detendo a maior parte da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. O propósito é que essa ideia, vista como uma proposta positiva, esteja madura até a COP30, que deve ser realizada em Belém, no Brasil.
O problema é que essa agenda positiva do governo acabou sendo ofuscada pela questão dos combustíveis fósseis. No dia 30 de novembro, dia em que a comitiva presidencial chegou a Dubai, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) fez uma reunião e soltou um comunicado anunciando que o Brasil se juntaria ao OPEP+, grupo dos países aliados dessa organização, que é um cartel dos países exploradores de petróleo.
Nesse dia, Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia, gravou um vídeo anunciando também a novidade. E aí começou um burburinho entre a delegação brasileira, a imprensa, os movimentos sociais e a sociedade civil sobre o anúncio, até dia 2, quando o presidente Lula confirmou a entrada do Brasil no grupo.
Isso pegou muito mal, afinal de contas, por mais que o Brasil faça a sua lição de casa combatendo o desmatamento, a principal causa do aquecimento global, em termos mundiais, é a queima de combustíveis fósseis, e o petróleo é um desses combustíveis fósseis. Então, pegou bem mal.
Já no dia 4, o Brasil ganhou o anti-prêmio Fóssil do Dia, concedido nas COP desde 1999, diariamente, pela Climate Action Network (CAN), que é uma rede de organizações que lutam contra as mudanças climáticas em todo o mundo. Ocorre toda uma cerimônia simbólica para “homenagear” os países que, naquele dia ou nos dias anteriores, mais atrapalharam o progresso das negociações.
O motivo do Brasil ter recebido o anti prêmio foi justamente por ter anunciado, em plena Conferência do Clima, que se juntaria ao OPEP+.
O interessante foi que a comissão organizadora da anti-premiação, durante a cerimônia de entrega do troféu para o Brasil, mencionou uma reportagem da Agência Pública que revelou que, caso seja explorado todo o petróleo que se estima existir na chamada margem equatorial — a faixa entre os litorais do Amapá e do Rio Grande do Norte — as emissões de gases de efeito estufa decorrentes da queima desse petróleo anulariam, em níveis mundiais, os ganhos alcançados com a redução do desmatamento na Amazônia.
[Clarissa Levy] Por aqui a gente tem visto que essa edição tem sido tratada como a COP do petróleo. Qual o motivo dessa nomeação?
[Giovana Girardi] Primeiro, porque ela está acontecendo num país que é um Petroestado, ou seja, um dos maiores países produtores de petróleo do mundo, que são os Emirados Árabes. Inclusive, a presidência da conferência detém um importante papel diplomático para destravar as negociações. Porém, quem assume esse papel é o Sultan Al-Jaber, CEO da ADNOC, principal indústria petrolífera do país onde a COP está sediada.
Então, obviamente, desde que foi anunciada onde e quem ia presidir a Conferência Mundial, o sentimento de desconfiança foi quase imediato, principalmente na sociedade civil dos países que são os mais afetados e mais vulneráveis às mudanças climáticas. Sentiram que seria difícil esperar alguma coisa muito promissora, ousada e ambiciosa em termos de metas para redução de poluentes.
Por outro lado, quando a gente fala em mudanças climáticas, é sempre bom frisar que elas são causadas principalmente pela emissão gigantesca de gases de efeito estufa, provenientes, no mundo, da queima de combustível fóssil e do desmatamento, no caso do Brasil.
Então, quando você fala: ‘ah, precisamos tentar fazer esforços para conter o aquecimento do planeta a um grau e meio’, a gente basicamente está falando em reduzir drasticamente as emissões de gases. Por isso, o IPCC (Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas) estima que o mundo reduza em cerca de 43% as emissões de gases de efeito estufa até 2030.
Para isso acontecer, é preciso começarmos a desenvolver uma estratégia para eliminar o uso dos combustíveis fósseis e substituí-los por energias renováveis ou outras formas de gerar energia. Porque se não diminuirmos o uso de petróleo, carvão mineral e gás natural, vai ser impossível chegar na meta de um grau e meio.
[Anna Beatriz Anjos] Eu queria fazer só um adendo sobre a questão da COP do petróleo, que a Giovanna explicou. Existe aqui uma pressão da sociedade civil e dos países que são os mais atingidos pelos efeitos das mudanças climáticas, como, por exemplo, as pequenas ilhas, que são extremamente ameaçadas pelo aumento do nível do mar, de que haja uma decisão sobre o abandono dos combustíveis fósseis para o cumprimento dessa meta.
Essa pressão está muito grande justamente por conta de um estudo que saiu no dia 5 de dezembro, analisando que esta edição bateu recorde no número de lobistas da indústria do petróleo, as chamadas Big Oil. Nunca houve, em outra COP, um grupo tão grande, avaliado em pelo menos 2.456 lobistas credenciados e circulando pela conferência. A grande suspeita é de que, em vez de defender o abandono dos combustíveis fósseis, eles estão aqui, inclusive, utilizando a conferência para expandir essa agenda.
[Clarissa Levy] Se de um lado tem esses mais de dois mil lobistas só da indústria do petróleo, como é que está a cena dos movimentos sociais por aí?
[Anna Beatriz Anjos] Essa é a maior COP da história, são 97 mil pessoas credenciadas, ou seja, com crachás que podem adentrar na chamada Blue Zone, que é o espaço onde a conferência se dá, onde as negociações acontecem.
A gente costuma dizer que a COP se divide em algumas frentes. Tem a frente das negociações, as salas ali onde os delegados dos países se reúnem para fazer as tratativas em relação a vários temas da agenda oficial. Tem também os pavilhões dos países, onde normalmente cada país monta ali o seu pavilhão com a sua própria programação para vender uma imagem, mostrar o que o país tem feito em relação ao combate à crise climática. Por fim, há toda a agenda dos side events, que são os eventos paralelos que também acontecem na Blue Zone.
Então, é muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Acho que a sociedade civil e os movimentos sociais estão cada vez mais presentes nesse espaço da Blue Zone. Por exemplo, a delegação indígena brasileira é a maior da história em COP’s — e a cada ano vem quebrando esse recorde. Também temos, por exemplo, uma delegação grande de quilombolas e movimentos periféricos que veio para cá.
Essa presença da sociedade civil vem se intensificando ao longo dos anos em muitos eventos sobre racismo ambiental, justiça climática e desigualdade de gênero. O problema é que, muitas vezes, esses grupos, que são os mais afetados pelos efeitos da crise climática, não estão nos espaços de tomada de decisão, onde as negociações acontecem e os acordos são firmados, em última instância.
Normalmente, na COP, há grandes protestos de rua. Porém, desde a última edição isso mudou. No ano passado, na 27ª edição realizada no Egito, o governo não permitiu que fosse feita uma manifestação na rua. Então, as manifestações acabaram acontecendo dentro da Blue Zone. Esse ano vai ser a mesma coisa, não teremos manifestações de rua. A tradicional manifestação dos movimentos sociais, da sociedade civil, dos ativistas, vai acontecer de novo, dentro da Blue Zone.
Mas existe essa crítica de que tudo o que é discutido aqui fora, dessas desigualdades que são apontadas, tanto em termos de gênero, de raça, são refletidas, no fim das contas, nos espaços oficiais de negociação, e, muitas vezes, nas decisões que são tomadas lá dentro, nas decisões finais que são produzidas em cada conferência. Tudo isso para dizer, que você vê circular por aqui, por exemplo, povos indígenas, a juventude e os protestos acontecendo. É um espaço efervescente, onde tem realmente muita coisa ocorrendo.
[Clarissa Levy] Negociações e controvérsias estão pairando em Dubai. Mas a gente teve avanços ou alguma boa notícia nessas primeiras semanas de COP?
[Giovana Girardi] Essa edição da COP até surpreendeu um pouco. Havia todo esse pessimismo em relação ao presidente da conferência estar à frente de uma grande empresa petrolífera, mas, logo no primeiro dia, 30, os países decidiram pela criação de um Fundo de Perdas e Danos do Clima. Nesse universo de mudanças climáticas, isso representa três possíveis ações, digamos assim.
Uma é você reduzir as emissões de gases de efeito estufa para tentar evitar o problema.
A segunda etapa é a adaptação. Já há tanto CO2 na atmosfera e os efeitos disso são possíveis de serem percebidos nos eventos extremos que estão acontecendo. E o que a gente faz? Tenta se adaptar. Então, uma segunda vertente dessas negociações climáticas é criar meios para que os países possam fazer a sua adaptação.
Agora, tem alguns países que já estão sendo afetados de uma maneira tão brutal, sofrendo perdas e danos que vão além de qualquer capacidade de adaptação. Então, para esses países que já estão sendo muito prejudicados, seria necessário ter um outro tipo de financiamento. Não dá mais para se adaptar. O que faz com eles? Às vezes vão precisar emigrar ou serem compensados de alguma maneira porque já perderam produção agrícola, casas, vidas. É preciso compensá-los de alguma forma.
Essa discussão de perdas e danos é uma discussão que vem já há muito tempo nas COP’s. Começou a avançar no ano passado, mas esse ano ficou ainda mais presente nas discussões menores que antecedem a conferência mundial. Já houve muita discussão sobre como vai funcionar. Mas, os países já estão chegando a um consenso em torno de um valor aportado em 500 milhões de dólares. É muito pouco perto do problema que a gente está falando, mas é um começo.