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O verão acaba de começar e, apesar das ondas de calor sufocantes da primavera, ansiamos por suas cores. O Natal chega mais uma vez com essa mistura perturbadora de consumo, luzes, religião e família. Festa e tristeza, excesso e carência.
Momento de retrospectiva que nos assusta – “mas isto foi neste ano?” – nesse tempo que passa cada vez mais rápido enquanto a gente se apressa.
Tudo parece pouco diante de tantas expectativas e necessidades, e logo a gente esquece o pesadelo que quase enterrou para sempre os sonhos de Guarani e Yanomami, de meninas e meninos pobres que viram a chance de estudar se estreitar ainda mais na pandemia, dos mais de 200 mil brasileiros que foram parar nas ruas, dos familiares dos 700 mil que morreram de Covid – boa parte deles por decisão de um governo autoritário e cruel.
Desvalorizamos rapidamente nossas conquistas, até mesmo a volta de nossa imperfeita e necessária democracia, ameaçada durante quatro anos e achincalhada no 8 de janeiro.
Falta novidade na “normalidade” em um país que precisa de mais. Muito mais.
Logo parece insuficiente o alívio de não mais ouvir frases machistas, racistas, homofóbicas ou simplesmente mentirosas da boca de quem preside a República. De não mais ter um ministro do Meio Ambiente acusado de contrabandear madeira da Amazônia, uma ministra da Mulher que odiava mulheres, um ministro da Educação que abandonou as escolas para fazer negociatas, um ministro da Saúde que preferiu cloroquina à vacina, a morte à perda de lucro.
Reverter todo esse estrago não é fácil.
E aí não falo só do governo Lula/Alckmin, obrigado a reconstruir estruturas e instituições devastadas pelo furacão da extrema direita. Com erros e acertos, concessões e opacidades, este é um governo democrático.
Mas nem nesse ambiente, afinal, respirável conseguimos conversar.
A grande maioria dos cidadãos brasileiros declara preferir a democracia como forma de governo. E o diálogo é essencial na democracia. Mas de bate pronto partimos para insultos, julgamentos maniqueístas, cancelamentos e linchamentos. A sensação é que as tais bolhas estão cada vez menores, o espaço de troca de ideias se retraiu.
E esse não é apenas um fenômeno nacional. Como querem as big techs, que dominam a arena pública, sufocamos o debate democrático quando mais precisamos dele.
Não custa repetir: se continuarmos na mesma trajetória, o mundo vai aquecer quase 3 graus ainda no tempo de vida da grande maioria de nós. Isso significa adoecer, sofrer e perder vidas por temperaturas e eventos extremos, afundar lares, paisagens, história, esperanças. Tornar miserável quem é pobre, pobre quem é remediado. Apagar lugares, comunidades e legados do mapa.
Precisamos de ideias originais, de debates com muitas vozes e muitos ouvidos, de lufadas de solidariedade e criatividade em um mundo saturado de carbono e dinheiro. Ser capazes, como sociedade democrática, de tomar as rédeas das tecnologias que podem tornar a vida melhor e mais justa – e também muito pior. Investir na educação, na ciência, na difusão de informação de qualidade, na arte e na cultura. Prezar aquilo que nos faz humanos, únicos e fundamentalmente iguais.
Tenho 64 anos, sou mulher, mãe, avó, jornalista, feminista, de esquerda, fumante, paulistana e branca. Gosto de banana, peixe, sol, chuva, cerveja, café, música e gente. Admiro o povo de luta, a força ancestral dos indígenas e quilombolas; a coragem dos sem terra e sem teto; a garra dos defensores dos direitos humanos, das feministas, dos ambientalistas; a vanguarda feita de jovens negros e negras, trans, gays; a inspiração de cientistas e artistas que revelam nossa brutalidade e inauguram caminhos imaginários. Tenho fé no poder coletivo de transformar.
Meus votos para 2024 são de que cada um de nós possa trazer para a roda a sua identidade, história, sabedoria, esperanças, dúvidas e contradições – sem medo nem apego. Que a gente possa conversar entre diferentes, reconhecer privilégios e repudiar injustiças. Entender e se desentender sem gritar, tripudiar, nem tapar os ouvidos. Amar mais do que odiar. Imaginar e ter coragem para mudar.
Um feliz ano-novo para todos vocês que me dão a honra de ler essas mal traçadas e, principalmente, de acompanhar o trabalho da Agência Pública, resultado de muita união, cuidado e paciência para colocar uma peça do quebra-cabeça por vez, mas no lugar certo.
Um 2024 sem pressa – e sem preguiça – para todos nós!
*Essa news é inspirada em Quebra-cabeça, composição do meu irmão Fernando França, advogado, músico e agora, aos 59 anos, bacharel em flauta.