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Levantamentos e estudos divulgados nos últimos dias começaram a dar uma ideia mais clara dos impactos que o calorão do ano passado causou sobre o clima do Brasil em 2023. Acho que todo mundo sentiu, em maior ou menor grau, que foi um ano diferente, difícil. Falar que foi muito quente não dá a dimensão do problema.
No ano em que o planeta bateu recorde de temperatura, desastres relacionados às chuvas no Brasil deixaram pelo menos 196 mortos, desalojaram mais de meio milhão de pessoas e provocaram prejuízos públicos e privados da ordem de R$ 25 bilhões – o maior valor desde 2013.
É um quadro que vem se agravando. Ao longo da década, as tragédias no país foram ocorrendo em maior quantidade, se tornando mais letais e mais custosas, especialmente a partir de 2019. É o que mostra um levantamento compilado pelo pesquisador Rafael Luiz, do Cemaden, com base nos dados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), da Secretaria Nacional de Defesa Civil, a pedido da Agência Pública.
A análise foi feita apenas sobre os eventos de chuva reconhecidos pelo governo federal a partir dos pedidos feitos por municípios de decreto de situação de emergência ou estado de calamidade pública. Entram nesse recorte apenas movimentos de massa (como deslizamentos de terra); erosão de margem fluvial; inundações; enxurradas; alagamentos e chuvas intensas.
Luiz considerou também na análise os eventos que resultaram em danos humanos e/ou materiais e/ou prejuízos econômicos. Só no ano passado foram reconhecidos 1.132 desastres desse tipo, o segundo maior número desde 2013. O recorde foi em 2022, quando foram reconhecidos 1.210 eventos. O ano retrasado também foi o campeão de mortes: 339.
Houve um aumento desses eventos nos últimos anos. De acordo com o levantamento, entre 2019 e 2023, 1.026 pessoas morreram nesses desastres – seis vezes o número de vítimas nos cinco anos anteriores (entre 2014 e 2018).
O pico de 2022 se deu com a ocorrência dos desastres de Petrópolis (fevereiro) e da região metropolitana do Recife (abril). Em 2023, a maior parte das mortes ocorreu em São Sebastião (fevereiro) – um terço dos registros foi lá – e nos municípios gaúchos (setembro e novembro).
Mas o indicador que mais chama atenção pela sua relação com as mudanças climáticas talvez tenha sido o aumento, nos últimos anos, dos prejuízos econômicos, tanto públicos quanto privados. No ano passado, os prejuízos públicos foram de R$ 11,3 bilhões e os privados, de 13,7 bilhões – a maior parte em um único setor, a agricultura, que acumulou R$ 10 bilhões em perdas.
“Fica evidente, nesses dados, a necessidade da adaptação às mudanças climáticas, tanto do poder público quanto dos setores econômicos. A agricultura precisa se adaptar. As reconstruções que terão de ser feitas precisam ser adaptadas a esses grandes eventos”, comenta Luiz.
Das chuvas intensas à seca extrema
Na outra ponta dos eventos extremos que afetaram o Brasil no ano passado, um estudo divulgado nesta quarta-feira (24) revelou que a seca severa que atingiu a Amazônia – a pior do registro histórico, com rios chegando aos níveis mais baixos em 120 anos, foi 30 vezes mais provável de ocorrer por causa das mudanças climáticas. O fato de o planeta estar mais quente foi muito mais importante para o que aconteceu na região do que, por exemplo, a ocorrência do El Niño, como cientistas brasileiros já vinham alertando no ano passado.
Identificar a relação entre um evento específico com as mudanças climáticas é uma coisa que até outro dia era meio tabu entre cientistas da área, justamente porque a variabilidade natural climática pode explicar muita coisa. É normal um ano mais chuvoso que outro, uma seca extrema aqui, outra ali. Coisas que acontecem de quando em quando, uma vez por século, uma vez a cada 300 anos.
É difícil de pronto dizer que aquilo foi diferente porque o planeta está diferente. Mais seguro avaliar séries históricas, e elas também revelam muita coisa. Com essas análises, já é possível ver com segurança que eventos antes raros estão não só mais frequentes como também mais intensos. E isso é resultado da mudança do clima.
Só que está acontecendo tanta coisa, em tudo quanto é canto do mundo, que pesquisadores se debruçaram em tentar explicar o que está por trás de tantas tragédias. Tornaram-se mais comuns os chamados estudos de atribuição, que ajudam muito a entender que o clima está mudando basicamente em tempo real.
Este trabalho lançado nesta quarta, feito por pesquisadores ligados à organização World Weather Attribution (WWA), viu exatamente isso na Amazônia. Esse tipo de seca excepcional ocorre a cada 350 anos, mas o clima mais quente fez com que ela se tornasse 30 vezes mais possível de ocorrer.
A ocorrência do fenômeno natural do El Niño, que começou a se manifestar a partir de meados do ano passado, em geral traz seca para a Amazônia, mas o que os pesquisadores observaram é que o cenário só se tornou tão extremo porque a temperatura mais quente em todo o planeta reduziu ainda mais a quantidade de chuvas e aumentou a evaporação do solo. Só o El Niño não é capaz de responder a todo o estrago.
E isso traz um sinal ainda mais preocupante para o futuro da Amazônia, porque a estimativa dos cientistas climáticos é que a temperatura deve subir ainda mais nos próximos anos. De acordo com Regina Rodrigues, que é pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do WWA, boa parte da seca extrema da Amazônia se deu sobre áreas ainda bastante preservadas, o que ajuda a fragilizar mais uma floresta já afetada por outras ameaças, como desmatamento, retirada de madeira e fogo.
Isso tudo junto aumenta o risco de a floresta alcançar o chamado ponto de não retorno – situação-limite que cientistas estimam que pode acontecer se a floresta for desmatada e degradada a ponto de não conseguir mais prestar os serviços ambientais que presta, como a produção de chuva e a absorção de gás carbônico.
Nesse cenário, se o clima continuar aquecendo e secando a floresta, só conter o desmatamento não vai salvá-la. E, se ela deixar de absorver carbono, o aquecimento global só vai piorar, aumentando a seca na Amazônia e as chuvas no Sul do país. Acho que nem precisa desenhar, né?