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Faz mais de 20 anos que eu entrei, certa manhã, na secretaria de graduação da PUC-SP para pegar meu diploma. Não esperava, mas ali, no momento da entrega, foi-me apresentado um textinho impresso, cujas palavras exatas se perderam, mas o sentido nunca: era o meu juramento.
Tentei reencontrá-lo nas caixas e gavetas por onde os vestígios da minha história estão espalhados, sem sucesso. Mas encontrei na internet algo parecido, o modelo usado por alunos de jornalismo da PUC de Minas Gerais:
“Prometo, no exercício da profissão de jornalista, orientar minha conduta de acordo com os princípios da Ética e da dignidade humana, procurando levar ao leitor, ouvinte ou espectador o relato fiel dos acontecimentos”.
Aquele juramento me emocionou, em meio ao cenário burocrático e monótono – uma mesa de fórmica, alguma cadeira modesta já amarelada pelo tempo.
Senti que tinha escolhido um ofício realmente importante.
Quando entregas, edições, revisões e detalhes infinitamente irritantes da publicação online – UX, SEO – ditam o trabalho ao qual nós, jornalistas, nos dedicamos no dia a dia, sobra pouco tempo para relembrar o juramento que fizemos, ainda crus, ainda focas, e porque o fizemos, e se estamos sendo fiéis a ele. Mas eu me lembrei desse juramento quando li o artigo da professora Ligia Maura Costa, da FGV, na Folha de S.Paulo do último sábado, que servia como contraponto ao meu artigo refutando a extradição de Julian Assange.
O jornal propôs a nós duas expormos os dois lados da questão: o australiano deve ser extraditado para os EUA?
Não vou gastar a minha coluna fazendo uma tréplica à professora, até porque seria injusto: eu tenho uma coluna semanal, ela não. Mas um aspecto da sua defesa me fez refletir sobre o que, afinal, eu faço nesta terra. E merece maior ponderação.
Ela argumentou que um dos “crimes” do WikiLeaks seria “não ter dado tratamento jornalístico” aos documentos secretos do governo americano.
Que tratamento jornalístico seria esse, eu não sei dizer. Sei dizer, porque estava lá, que houve muito trabalho editorial idêntico ao que fazemos em redações pelo mundo. Primeiro, um exaustivo trabalho de verificação sobre a autenticidade dos documentos; depois, uma análise cuidadosa sobre sua relevância; depois, priorização; formação e coordenação de parcerias com veículos jornalísticos; discussão sobre temas a serem abordados e documentos a serem usados; discussão editorial sobre como abordar cada tema; escrita, revisão e publicação.
No caso do Cablegate, o projeto que tratava dos cabos diplomáticos, uma dezena de jornalistas independentes como eu publicava reportagens no próprio site do WikiLeaks, propondo e discutindo-os antes com Assange ou sua equipe editorial, Sarah Harrison e Joseph Farell. Aqui no Brasil, quando O Globo e a Folha publicavam uma reportagem, exatamente ao mesmo tempo o site do WikiLeaks publicava um texto meu sobre os mesmos documentos; discutíamos tudo conjuntamente.
Que diabos será esse tratamento jornalístico que faltaria ao WikiLeaks ou a Assange, como se ele tivesse um defeito moral, um pecado original, que o afastaria de todos nós que pertencemos à casta dos jornalistas?
E aí eu volto ao meu juramento: “procurando levar ao leitor, ouvinte ou espectador o relato fiel dos acontecimentos”.
Publicar a verdade.
Em toda essa poluída e enviesada discussão sobre o WikiLeaks, perdeu-se talvez o valor mais fundamental do que é o trabalho jornalístico: buscar publicar a verdade.
Não há nenhum, absolutamente nenhum registro de que o WikiLeaks tenha publicado algum documento falso, adulterado, mentiroso – o que sabemos que muitos veículos de imprensa já fizeram, erroneamente (não preciso aqui lembrar da ficha criminal falsa de Dilma publicada pela Folha de S.Paulo).
Publicar documentos verdadeiros e fiéis aos acontecimentos dá trabalho. Muito trabalho. Trabalho jornalístico.
O que talvez falte a Assange não é uma lealdade absoluta aos fatos, portanto. Talvez, pelo contrário, seja a ausência de lealdade aos cânones do jornalismo tal como ele chega, decadente, ao século 21.
O jornalismo é uma profissão eivada de questionamentos éticos profundos, muitos deles não resolvidos, sobre os quais se passa horas e horas em congressos mundo afora a discutir.
Mas, diferentemente de muitos jornalistas que eu conheci, Assange nunca se satisfez com respostas simples. Questionava tudo. Sempre me provocou a refletir sobre o que estávamos fazendo. Me tirou do eixo. Me fez ser uma jornalista melhor.
Julian nunca duvidou da relevância dos documentos do governo americano, que revelaram abuso de poder, assassinatos de civis não contabilizados no Iraque, erros militares no Afeganistão e conchavos com governos corruptos no mundo todo. Mas ele sempre foi uma pessoa difícil de trabalhar, absolutamente alheio a considerações do tipo: “isso vai dar problema”, “não é essa a prática”, ou “o Guardian e o New York Times vão ficar putos”, conselhos que eu ouvi dezenas de vezes de sua equipe.
Aferrado à sua visão lógica do mundo – Julian foi diagnosticado com a síndrome de Asperger, segundo sua defesa – debater questões éticas, “senãos” e “poréns” com ele era um inferno.
Lembro-me da tarde em que discutimos sobre os trechos dos telegramas que haviam sido censurados pela equipe do Guardian.
(Para o leitor entender a mecânica de publicação: todos os jornais parceiros tinham acesso ao site de publicação do WikiLeaks, e era responsabilidade deles ler cada um dos documentos e tarjar apenas os nomes cuja publicação pudesse expô-los a riscos de segurança. O Guardian acabou censurando mais do que isso: em muitos documentos, pessoas poderosas ou nomes de organizações foram tarjados. Assange estava furioso.)
Eu tentava explicar que ser excessivamente cauteloso era também uma ponderação necessária ao jornalismo, pois não gostamos de prejudicar ninguém. Ele argumentava que isso era proteger interesses de poderosos. Dizia ainda que o objetivo de postar os documentos era que o público pudesse fazer sua checagem coletivamente, desvendando ainda mais histórias; censurá-los ia contra o espírito do WikiLeaks.
Eu disse algo sobre a publicação desenfreada de documentos, que talvez isso fosse desleixado e não cauteloso. Ele me olhou fixamente nos olhos:
– Então o bom jornalismo se define não pelo que publica, mas pelo que deixa de publicar?
Em outro momento, foi Assange quem me ajudou a resolver um dilema ético que só poderia se apresentar no século 21.
Em março de 2012, o WikiLeaks convidou a Pública a fazer uma parceria, analisando um conjunto de documentos da empresa de inteligência Startfor, que vende boletins para forças militares globalmente. Eram e-mails internos da empresa, e haviam sido hackeados.
Aquilo me deu enorme angústia. Tínhamos o direito de ler documentos privados, ainda mais frutos de hackeamento?
Foram dias de hesitação e um gosto amargo na boca, até que nossa equipe de repórteres encontrou a chave. Os documentos revelavam que havia uma analista bonitinha que era enviada como “isca” para vender os serviços da empresa junto a militares babões de diferentes países. Como os do Brasil. A femme fatale Reva Bhalla e suas visitas ao GSI durante o comecinho do governo de Dilma Rousseff foram o objeto da nossa reportagem.
Um retrato fiel aos fatos.
Anos depois, me lembrei muito de Assange quando entramos na parceria com o Intercept para analisar os diálogos dos procuradores da Operação Lava Jato. Ali havia diálogos sensíveis, pessoais, marcantes, mas também um quebra-cabeça que precisava de (muitos) jornalistas para ser montado. Daquela vez não hesitei: se há um fato de interesse público a ser revelado, é isso que devemos fazer.
Está no nosso juramento.
Aqui na Pública, com a inestimável repórter Alice Maciel, publicamos mais de dez reportagens, aliando-nos aos jornalistas de diversas outras redações convidados pelo Intercept para analisar os documentos. Não é exagero dizer que, se não fosse esse vazamento, o Brasil hoje seria outro.
Publicar informação de interesse público, me ensinou Assange, nunca foi uma opção; é nossa obrigação.