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Sacos usados na pandemia atrapalham decomposição, exigindo reenterro após exumação

Reportagem
19 de março de 2024
14:00
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19 de março de 2024 · Sacos usados na pandemia atrapalham decomposição, exigindo reenterro após exumação

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A mãe da jornalista Ludmila Pizarro foi uma das quase 47 mil vítimas fatais da covid-19 em São Paulo no primeiro ano da pandemia. No dia de seu falecimento, 20 de dezembro de 2020, o serviço funerário da cidade fez 16 sepultamentos por hora. Ela foi enterrada no cemitério Vila Formosa, na Zona Leste, o maior do Brasil, que ficou famoso internacionalmente com fotos de centenas de covas improvisadas lado a lado. Com o grande aumento do fluxo, o local se especializou em enterros rápidos, que duravam poucos minutos – e um gerador chegou a ser instalado para permitir o trabalho noturno. 

Três anos depois, em dezembro do ano passado, Pizarro teve que voltar ao Vila Formosa. Pela lei, os corpos sepultados em covas públicas precisam ser exumados após esse período para dar lugar a outros. Nesse momento, a família decide se os restos mortais irão para um jazigo particular, se serão cremados ou encaminhados para o ossário geral, onde não têm identificação.

No entanto, a jornalista foi informada de que o corpo de sua mãe ainda não estava em condições de ser retirado da terra. Ela, assim como todas as outras vítimas da covid naquele momento, foi enterrada dentro de um saco especial lacrado para isolar o vírus e evitar a contaminação do ambiente. 

O saco, porém, impediu a decomposição total do corpo, uma condição necessária para a exumação ser feita. Quando os funcionários do cemitério abriram o saco, constataram que o corpo ainda estava inteiro. Eles fecharam o saco de novo, e o corpo voltou a ser enterrado. 

“É como se fosse o segundo enterro da minha mãe. É um processo emocional pesado”, disse a jornalista. “Só vou ter os restos mortais dela em 2027. E ninguém sabe se ele vai estar finalmente decomposto até lá, ou se vai precisar ficar mais outros três anos.”

Por que isso importa?

  • O ano de 2024 marca três anos após o período de maior quantidade de mortos por covid no Brasil – 2021. Por isso, este deve ser também um período de recordes de exumação de mortos por covid
  • Além do impacto psicológico para os familiares, a exumação leva a custos materiais que ficaram ainda mais altos nos cemitérios passados a empresas privadas na maior cidade do país

Pizarro reclama que teve que pagar R$ 845 apenas para o corpo de sua mãe ser “tirado e colocado de novo na terra”. O valor corresponde a R$ 523 de “inumação de corpo intacto” (que significa enterrar o corpo não decomposto) e R$ 322,32 de taxa de exumação. “Eles sabiam que provavelmente não seria possível fazer a exumação. Assim como o meu caso, vi outras famílias passando pela mesma situação”, ela diz.

Luciana Pizarro, filha de vítima da covid
Ludmila Pizarro precisou pagar R$ 845 para desenterrar e exumar a mãe, que voltou a ser enterrada em seguida

Segundo o Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias de São Paulo (Sindsep), um caso nas mesmas condições antes da privatização dos cemitérios teria custado aos usuários cerca de R$ 181,97.O valor é referente apenas à reinumação, já que a exumação não seria feita se o corpo não estivesse em condições. Hoje, após a concessão, o custo cobrado em algumas unidades pode chegar a quase R$ 2 mil. 

Isso quer dizer que o preço ficou dez vezes mais caro do que antes da privatização. “Com a concessão dos serviços, houve um aumento absurdo dos preços. E quem paga é o cidadão, que não tem escolha”, diz João Batista Gomes, secretário de assuntos jurídicos, econômicos e pesquisa do Sindsep.

O serviço funerário da cidade foi privatizado em março de 2023 pela gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB). A concessão, de 25 anos de duração, foi entregue a quatro empresas: Consolare, Velar, Cortel e Grupo Maya. Elas deveriam reformar e melhorar os serviços das unidades, mas, um ano depois, há relatos de problemas de infraestrutura e segurança e preços muito mais altos.

Mortos por covid são colocados de volta em sacos sem protocolo

A Agência Pública esteve no Vila Formosa durante uma manhã de sábado, em fevereiro deste ano, e presenciou pelo menos três famílias que precisaram desembolsar valores altos na tentativa de exumar um ente querido falecido por covid, mas tendo que voltar a enterrá-lo. 

A movimentação tem aumentado nas últimas semanas à medida que se completam os três anos do período mais mortal da pandemia no país, entre março e abril de 2021, antes da aplicação massiva das vacinas. A grande maioria das pessoas não tem dinheiro para bancar enterros caros e depende do serviço funerário que era oferecido pela prefeitura.

Uma senhora, acompanhada de sua filha e uma neta, tentava entender as taxas cobradas para exumar o corpo do marido. O valor, R$ 845, é mais da metade do seu salário mensal. A prefeitura oferece o serviço de forma gratuita para pessoas de baixa renda ou doadores de órgãos, mas a idosa, que não quis se identificar, não se enquadra em nenhuma das categorias para gratuidade. A sua renda mensal per capita é de R$ 750, mas para obter o benefício teria que ser de no máximo R$ 706. E, na época, era proibida a doação de órgãos de pessoas mortas por covid. “Sinto como se ele tivesse morrido hoje de novo”, disse.

Entrada do cemitério da Vila Formosa, na zona leste da capital paulista
No cemitério Vila Formosa, uma senhora precisou pagar R$ 845 para exumar o corpo do esposo

A reportagem da Pública pediu informações à empresa por WhatsApp, como se fosse uma cliente precisando do serviço. Uma funcionária do Vila Formosa disse que, de um ano para cá, “não está saindo ninguém de covid” – ou seja, nenhum dos corpos de vítimas da doença está suficientemente decomposto para exumação. “Eles só perderam a pele. Ficando dentro do saco ainda vai demorar muitos anos”, comentou.

Essa mesma funcionária explicou que os corpos precisam voltar a ser enterrados em sacos “por causa do vírus”, que ainda estaria ativo. Mas a Sociedade Brasileira de Infectologistas afirma que é praticamente impossível que isso aconteça e que não há nenhuma recomendação de autoridades em saúde nesse sentido.

Questionada, a Consolare, empresa que administra o Vila Formosa, disse que “é sugerido realizar o sepultamento novamente mantendo sua composição original, em saco ou urna”, sem citar o vírus. “A equipe não mexe se não há decomposição necessária. Do jeito que o corpo está, com saco ou não, é sepultado novamente”, informou por meio de nota.

“A Consolare esclarece que a exumação é um procedimento obrigatório após três anos de sepultamento em quadras gerais, como ocorre no cemitério da Vila Formosa. O processo de decomposição é natural, sendo assim não é possível prever se estará completo após o prazo estipulado”, disse a empresa em nota.

Outras duas empresas que ganharam a concessão de cemitérios municipais também cobram taxas mais caras do que os cidadãos pagariam quando o serviço era do município. No cemitério São Pedro (Vila Alpina), administrado pela Velar SP, caso o corpo esteja intacto e o familiar optar por reinumá-lo, pagará R$ 693 pela reinumação e mais três anos de cessão do espaço. Isso significa R$ 1,9 mil no caso de o corpo estar no columbário, criado na pandemia para receber vítimas de covid, ou R$ 959 se estiver nas quadras gerais. 

Já a Cortel diz que faz apenas a cobrança da taxa de cessão do espaço físico, no valor de R$ 266. Segundo a empresa, o valor da exumação não é cobrado porque o corpo não pode ser removido do saco, tampouco a reinumação, porque volta a ser enterrado no mesmo lugar. “O corpo semi-intacto fica numa condição gelatinosa e degradante, que pode trazer riscos até de saúde ao coveiro. Logo, a solução é manter o corpo enterrado por mais um período até que o mesmo alcance a decomposição total e assim seja possível fazer a exumação e dar o destino que a família decidir”, disse a empresa por meio da assessoria de imprensa. 

A cobrança de taxas extras às famílias enlutadas foi estipulada pela própria Prefeitura de São Paulo no edital de concessão, que já previa que os corpos de vítimas da covid provavelmente não poderiam ser exumados após três anos. 

O documento diz que “não são riscos da concessionária, dando ensejo ao procedimento de reequilíbrio econômico-financeiro […] os custos e despesas decorrentes da eventual e comprovada impossibilidade de exumação dos corpos falecidos em função da contaminação pelo novo coronavírus (COVID-19/SARS-CoV-2), após decorrido o prazo de 3 (três) anos contados da data de seu respectivo sepultamento”.

“Comprovada a impossibilidade da exumação, os custos e despesas decorrentes desses serviços não são riscos da concessionária”, disse em nota o Grupo Maya. “Entretanto, existem famílias que têm o desejo de dar outra destinação – como cremação ou remoção para outro cemitério. A cobrança das devidas taxas de serviços prestados está prevista no contrato de Concessão e os familiares são informados sobre os preços antes da realização dos serviços.”

Covas abertas no cemitério Vila Formosa, um dos que mais receberam mortos da covid durante período crítico da pandemia
Covas abertas no cemitério Vila Formosa, um dos que mais receberam mortos da covid durante período crítico da pandemia

Não é possível estimar quantos dos mortos por covid estão nessa situação até o momento. Mas a Velar deu uma pista: 142 das 144 exumações de mortos em razão de covid foram reinumados no cemitério Vila Alpina. No São Luiz, foram 7 de 35. As outras três empresas que ganharam a concessão de cemitérios paulistanos, Consolare, Grupo Maya e Cortel, não responderam.

“Super promoção” – cemitérios privados fazem campanha e bombardeiam familiares 

Para não ter que ficar “pagando, pagando e pagando” as taxas de reinumação pelos próximos anos, enquanto o corpo não está preparado para a exumação, os funcionários dos cemitérios foram treinados para oferecer duas opções para as famílias: comprar um jazigo ou mandar cremar. Ambas, porém, têm custos expressivos.

No Vila Formosa, com R$ 1,2 mil de entrada dividido em seis vezes no cartão de crédito e mais 48 meses de R$ 390 em boletos (totalizando R$ 19,9 mil), é possível adquirir um jazigo familiar que comporta até três sepultamentos. O preço é apresentado como uma “super promoção”, segundo a divulgação enviada para a reportagem pelo WhatsApp, apesar de o valor ter sido tabelado no edital de concessão. Já a cremação sai por R$ 2,2 mil.

 Flyer da Consolare apresenta condições de parcelamento em 48 vezes de jazigo familiar
Flyer da Consolare apresenta condições de parcelamento em 48 vezes de jazigo familiar

O Vila Formosa passou a ser administrado pela Consolare há um ano, quando a Prefeitura de São Paulo transferiu a gestão dos cemitérios públicos para a iniciativa privada. Os preços dos procedimentos praticados nos cemitérios constavam nos editais e variam conforme a empresa e a unidade. No entanto, quase todos são maiores que os cobrados pelo município anteriormente. 

Segundo o Sindsep, serviços básicos dos cemitérios tiveram um “aumento exorbitante de preços” para a população que não tem acesso às gratuidades. “Cremações e sepultamentos que antes tinham valores acessíveis, foram reajustados para atender a necessidade do lucro das concessionárias que exploram o Serviço Funerário Municipal e agora podem custar até 300% a mais”, diz uma nota divulgada no início do mês, quando a concessão dos serviços completou um ano. Enterrar um ente querido custa, hoje, no mínimo entre R$ 3,2 mil e R$ 4,6 mil, dependendo da concessionária. Até o ano passado, o valor cobrado pelo serviço municipal de São Paulo era muito menor: R$ 289,35.

Uma reportagem recente do Brasil de Fato mostra que funcionários das funerárias estão oferecendo serviços opcionais como se fossem obrigatórios para famílias enlutadas como uma forma de aumentar o lucro das empresas. 

Ao tentar sepultar seu ex-marido, no início do ano, em um dos cemitérios administrados pela Consolare, a assistente social Mara Cohen conta que passou por uma situação que ela classifica como “surreal”. Ao buscar informações sobre o traslado do corpo, ela foi bombardeada por ligações telefônicas de funcionários da empresa oferecendo uma série de serviços que custariam R$ 8 mil. 

“Um valor muito além das nossas condições, e nossa família já tem um jazigo. Por mais que eu insistisse que queria resolver tudo no dia seguinte, eles diziam que tinha que ser rápido. Disseram que o corpo ia vazar, que se fizesse autópsia ele viria retalhado”, conta. “Desisti do telefone, passei tudo para meu filho e sobrinho, que acabaram pagando R$ 2,5 mil. Eu só consigo pensar em pessoas menos esclarecidas ou ainda mais vulneráveis que têm que passar por isso”, lamenta.

Apenas a Consolare admitiu que tem um sistema de metas e comissão para seus funcionários. A Cortel e a Velar disseram que não trabalham nesse sistema. O Grupo Maya não respondeu. 

O jazigo, que custa quase o preço de um carro popular usado, é vendido como a opção mais vantajosa. “A solução ideal para a tranquilidade de sua família em um espaço dedicado a eternizar a memória de quem você ama. Um planejamento adequado ao orçamento familiar”, diz a mensagem-padrão enviada por uma funcionária do Consolare às famílias enlutadas. Em seguida reforça, em caps lock: “CABE NO ORÇAMENTO Com valor mais acessível você tem uma solução definitiva com entrada de 10% e o restante parcelado em 48x no carnê que chega diretamente na sua casa”.

A idosa que iria gastar metade da renda mensal para pagar pela reinumação do corpo do marido disse que a vendedora que a atendeu foi incisiva sobre a necessidade do jazigo. Segundo ela, se cremasse, o corpo iria junto com outras pessoas e ela não saberia de quem seriam as cinzas. Se reinumasse, poderia ter que pagar a taxa várias vezes. Mas, com o jazigo, tudo estaria resolvido. “O ideal seria comprar o jazigo, que é para a vida toda. Mas a gente não tem condição mesmo”, disse.

Em setembro do ano passado, o Tribunal de Contas do Município de São Paulo enviou um alerta para a prefeitura sobre os problemas das empresas que administram os cemitérios. De acordo com o órgão, a situação dos 22 cemitérios da cidade e do crematório metropolitano “é prioridade do Plano Anual de Fiscalização”, e em 2024 haverá acompanhamento das execuções contratuais, “inclusive com a realização de visitas in loco”.

Um dos conselheiros, João Antônio, fez um pronunciamento incisivo à época. “O que impera hoje é confundir para ganhar mais”, ele disse. “Não esclarecem a população de seus direitos para poder lucrar mais nos momentos mais tristes do ser humano.”

Edição:
Arquivo pessoal
Amanda Audi/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública
Amanda Audi/Agência Pública
Bruno Fonseca/Agência Pública

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