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Já comentei aqui que há duas semanas realizamos, durante as comemorações do aniversário de 13 anos da Agência Pública, uma série de discussões que tinham como linha condutora “o jornalismo na linha de frente da democracia”.
Uma delas foi a mesa “O colapso climático e o Antropoceno”, que tive a honra de mediar – e da qual já contei um pouco como foi aqui. Mas acabei não tratando no texto justamente do tema principal do evento. A primeira pergunta que fiz aos nossos convidados foi se eles acreditavam que as mudanças climáticas poderiam acabar contribuindo, também, para erodir as democracias.
As respostas do escritor Ailton Krenak, do climatologista Carlos Nobre e da jornalista de meio ambiente Daniela Chiaretti foram bem variadas, e vou falar delas daqui a pouco (quem tiver curiosidade de ver a discussão, ela está disponível no YouTube. Há também um compacto muito legal no podcast Pauta Pública de 22 de março). Mas o que me fez voltar a esse assunto agora foram alguns relatórios publicados nos últimos dias que trouxeram elementos bem interessantes que, a meu ver, servem como argumentos para uma resposta afirmativa para a minha pergunta.
Na semana passada, dois estudos de órgãos da ONU apontaram como a piora das condições climáticas aumentou a fome, reduziu o desenvolvimento no mundo e pode, inclusive, ameaçar a paz.
O primeiro foi o “Estado do Clima Global em 2023”, da Organização Meteorológica Mundial (WMO), que detalhou por meio de diversos dados aquilo que todo mundo sentiu. O ano passado não só foi, de longe, o mais quente do registro histórico como também quebrou recordes no aquecimento dos oceanos, na elevação do nível do mar, na perda de gelo na Antártida e na redução dos glaciares. A secretária-geral da WMO, Celeste Saulo, não poupou as palavras: “Estamos soando o alerta vermelho para o mundo”.
Esses dados todos foram fartamente noticiados (deixo aqui um bom resumo feito pelo Observatório do Clima). Mas queria destacar menos as questões físicas do problema e mais as consequências humanas dessas alterações. O relatório aponta que o clima extremo está minando o desenvolvimento socioeconômico do mundo ao agravar condições críticas já existentes.
O número de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda em todo o mundo mais do que duplicou, passando de 149 milhões antes da pandemia de covid-19 para 333 milhões de pessoas em 2023 (em 78 países monitorizados pelo Programa Alimentar Mundial).
De acordo com o relatório, os extremos meteorológicos e climáticos podem não ser a raiz do problema, mas são fatores agravantes, minando a resiliência e criando novos riscos de segurança entre as populações mais vulneráveis.
É o caso, por exemplo, de milhares de pessoas que já estão sendo deslocadas por outros motivos, como guerras, conflitos e violência e se deparam com invernos muito severos ou inundações ou secas, o que prolonga os deslocamentos ou gera a necessidade de novas mudanças.
“Os deslocamentos no contexto das mudanças climáticas e da degradação ambiental são frequentemente multicausais. A maioria das pessoas se move devido a uma combinação de fatores sociais, políticos, econômicos, ambientais e demográficos, todos os quais são e serão afetados pela mudança climática e ambiental”, aponta o relatório.
Para ficar em dois exemplos. “Somente na Somália, foram registrados cerca de 531.000 deslocamentos relacionados à seca em curso em 2023, além de 653.000 deslocamentos causados principalmente por conflitos. Inundações subsequentes durante a temporada de chuvas de outubro a dezembro afetaram mais de 2,4 milhões de indivíduos, deslocando mais de um milhão de pessoas. As estimativas de deslocamento em decorrência da tempestade Daniel indicam cerca de 45.000 indivíduos deslocados no nordeste da Líbia”, relata a WMO.
O segundo documento divulgado na semana passada foi o “World Water Development Report”, produzido pela Unesco sobre os riscos das crises de água no mundo, por ocasião do Dia Mundial da Água, comemorado no dia 22. O relatório destaca que tensões em torno do acesso à água estão exacerbando conflitos por todo o planeta e representam uma ameaça à paz.
Atualmente, 2,2 bilhões de pessoas não têm acesso a água potável e 3,5 bilhões não têm acesso a saneamento, de acordo com o relatório. Entre 2002 e 2021, as secas afetaram mais de 1,4 bilhão de pessoas. Em 2022, cerca de metade da população mundial enfrentou escassez grave de água durante pelo menos parte do ano, enquanto um quarto enfrentou níveis extremamente altos de estresse hídrico. Segundo o documento, as mudanças climáticas devem aumentar a frequência e a gravidade desses fenômenos, com riscos agudos para a estabilidade social.
Para Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, a mensagem passada pelo documento é clara. “À medida que o estresse hídrico aumenta, também aumentam os riscos de conflitos locais ou regionais. Se quisermos preservar a paz, devemos agir rapidamente não apenas para proteger os recursos hídricos, mas também para promover a cooperação regional e global nesta área”, disse.
Um terceiro estudo estimou como o calor extremo pode derrubar o PIB global em algo entre US$ 3,75 trilhões a até US$ 24,7 trilhões até 2060, dependendo de quanto gás carbônico continuarmos emitindo até lá. O cálculo, publicado por pesquisadores chineses na revista Nature, considera as perdas desencadeadas pelos impactos disruptivos do aumento da temperatura nas cadeias de suprimentos mundo afora.
Olhados juntos, os três relatórios deixam evidente que tudo o que hoje já torna o nosso mundo injusto, desigual e perigoso é, com o perdão do trocadilho, inflamado por um planeta mais quente. E isso cria a tempestade perfeita, perdão de novo, para a ascensão ou o fortalecimento de governos populistas e não democráticos – que já vêm, aliás, ganhando terreno. Nada como o caos instalado para justificar a adoção de um estado de exceção.
Os participantes do debate da Pública de duas semanas atrás elaboraram essa preocupação. “O Eduardo Galeano [escritor uruguaio morto em em 2015] dizia que as serpentes preferem picar o pé descalço. Elas não picam o pé de quem usa bota, geralmente picam um pezinho descalço, meio débil. E débil é quase 1 bilhão de pessoas no planeta Terra, sem casa, sem abrigo, sem território, sem cidadania, sem nada”, comentou Krenak.
O climatologista Carlos Nobre ponderou que já no contexto atual a própria democracia estaria ameaçando o combate às mudanças climáticas ao permitir a ascensão, por meio do voto, de governos populistas.
“Se o populismo continuar a crescer, de extrema direita e até de extrema esquerda, nós colocamos o planeta numa trajetória de um suicídio ambiental, climático, planetário, que nunca a humanidade enfrentou”, afirmou. “É o populismo político afetando demais a democracia e o combate a essa maior emergência que nós, humanos, já enfrentamos.”
Chiaretti lembrou que este é o que vem sendo chamado “o ano eleitoral mais importante do século”, com cerca de 4 bilhões de pessoas em 40 países indo às urnas para eleger de presidentes a prefeitos, como no caso do Brasil. É um momento crucial para pensar essa relação entre a democracia e o combate às mudanças climáticas. As escolhas que forem feitas são cruciais para definir para onde o mundo vai.
Termino, então, com uma frase que a Celeste Saulo, da WMO, disse ao divulgar o “Estado do Clima Global”. “A crise climática é o desafio definidor que a humanidade tem a enfrentar e ela está intimamente ligada à crise da desigualdade – como testemunhado pela crescente insegurança alimentar e pelo deslocamento populacional, e pela perda de biodiversidade.”
Esta é a 50ª edição desta coluna, então queria aproveitar para deixar, novamente, um convite para que o caro leitor compartilhe suas opiniões, angústias, críticas e sugestões. Também quero saber o que vocês andam pensando!
E, seguindo o que comecei na semana passada, compartilho trechos de um comentário que recebi.
“Embora possa ser inspirador falar em coisas como tocar o coração das pessoas e incentivar mudanças de hábitos individuais, não será isso que vai causar as mudanças estruturais de que precisamos. É preciso um esforço coordenado, um consenso que vem da atuação política da sociedade civil junto aos governos. A maior parte da população mundial está empobrecida e procurando sobreviver, não tem nem tempo nem recursos para fazer essa pressão individualmente. Enquanto ele [o pesquisador Carlos Nobre] propõe que não se coma carne de origem [que não seja] ecologicamente correta – como se tivéssemos individualmente como cobrar isso –, a população mais pobre está consumindo salsicha e calabresa porque custa menos. Como incentivar essa pessoa a pensar em meio ambiente?
Essa posição também faz um papel de tirar o peso da responsabilidade das grandes corporações e dos Estados na busca por soluções, eles sim os que têm poder e recursos para promover as mudanças necessárias.”
Carlos Augusto A. da Cruz