João Monlevade era o nome do dono de uma fazenda na cidade de Rio Piracicaba, Minas Gerais, localizada a 115 km da nova capital, Belo Horizonte. A área foi adquirida pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira na década de 1930, para que ali fosse construída a usina de Barbanson, inaugurada em 1937. Como não havia nada lá, a companhia teve que erguer uma cidade para seus funcionários, que recebeu o nome do antigo dono das terras e passou a explorar ali uma mina de extração de minério de ferro, abundante na região.
A família Seeburger foi uma entre muitas outras famílias luxemburguesas que imigrou para a cidade industrial construída pela Belgo-Mineira com ajuda do governo Vargas, pois a empresa só começou as obras depois que o governo federal construiu uma linha férrea entre Belo Horizonte e os domínios da Belgo. Nicolas e Marguerite e o filho Jean-Paul Nicolas Seeburger, então com 6 anos, chegaram por lá em 1947. A cidade foi o destino também de milhares de operários de todos os cantos de Minas Gerais.
Jean-Paul tornou-se médico da Belgo e foi lotado na trefilaria (fábrica de arames e outros fios), em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Um de seus pacientes era o então metalúrgico Sálvio Penna, hoje com 80 anos, filho de um pedreiro da companhia e militante político da Ação Popular (AP).
“Eu reconheci ele da Belgo, pois sou asmático e era muito afetado pela poluição de uma fábrica de cimento perto de minha casa. Tive uma crise que se prolongou por 6 meses e fiquei íntimo do departamento médico, pois todo dia eu tomava uma injeção de aminofilina para diminuir a falta de ar e conseguir trabalhar”, conta Penna, uma das pessoas que esteve com Seeburger na Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), da Polícia Civil, e acusa o médico de ser também um agente da repressão que, além do Dops, dava expediente no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna, do Exército Brasileiro).
Sálvio e cinco presos que estiveram no Dops/DOI em 1971, entre elas a ex-mulher de Penna, Ana Lúcia Penna, falecida em 2016, afirmam que o médico luxemburguês acompanhava as torturas e dizia aos torturadores se o suplício poderia continuar ou não. “Eles me deram muitos choques nas pernas e eu estava começando a ter dificuldades para ficar em pé e daí chamaram o Jean-Paul, que recomendou a eles que não me dessem mais choques na perna direita e foi embora”, contou a ambientalista Maria Dalce Ricas no documentário A colônia luxemburguesa, da cineasta e historiadora Dominique Santana.
Em maio de 1979, em meio ao movimento da anistia, Maria Dalce foi uma das primeiras a denunciá-lo na imprensa. Apesar de a queixa com o testemunho dela, de Sálvio e mais quatro ex-presos políticos, contar com a assinatura de mais de 50 médicos em Belo Horizonte, o indiciamento no Conselho Regional de Medicina (CRM) de Minas Gerais foi arquivado por falta de provas e Seeburger continuou a clinicar até sua morte, em 23 de novembro de 2011, aos 70 anos.
“Foi um processo muito rápido no CRM, surpreendentemente rápido. E o absolveram”, relembra Sálvio. Apesar de inocentado por seus pares, o processo contra Seeburger pesou na vida acadêmica do acusado e ele perdeu o cargo de professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Fomos presos em 7 de dezembro de 1971. Nosso primeiro filho tinha cinco dias de nascido. Ana Lúcia estava com 35 pontos do parto natural com fórceps. Ela foi para o hospital do Exército e nosso filho ficou preso com ela. Já eu fui para o Dops. Quatro dias depois da nossa prisão, um capitão chamado Pedro Ivo me mostrou um atestado de óbito dela e eu acreditei. O objetivo da tortura não era só levantar informação, mas destruir os militantes fisicamente, psicologicamente e ideologicamente. Só quando a vi no DOI, para onde ela era levada para ser torturada, é que soube que ela estava viva”, contou Penna à Agência Pública.
“O medo dominou Monlevade”, diz pesquisadora
Destruir a dignidade das pessoas fez parte da rotina de ameaças, prisões e torturas que se estabeleceu em João Monlevade em abril de 1964, depois que foi enviada para a cidade uma tropa de policiais militares de Governador Valadares, para reprimir de imediato qualquer resistência dos operários da Belgo que haviam feito greves bem-sucedidas em 1962 e 1963.
A tropa que chegou em Monlevade em 1964 havia sido requisitada pelo tenente-coronel reformado da PM mineira Amaro Zacarias Corgosinho, chefe da segurança da Belgo-Mineira e interventor no Sindicato dos Metalúrgicos de João Monlevade, nomeado pela ditadura. Para a ditadura e para a empresa, o sindicato deveria ser um caso de polícia.
Segundo a pesquisa liderada pela doutora em história Marina Camisasca, e pós-doutoranda na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), 103 trabalhadores da Belgo em João Monlevade sofreram algum tipo de perseguição somente em 1964. Entre as 103 vítimas, estão 74 operários que foram forçados a pedir demissão, mesmo tendo estabilidade no emprego, conforme a legislação trabalhista da época, número que consta do relatório da Comissão da Verdade de Minas Gerais (Covemg), publicado em 2017.
A Pública teve acesso a um resumo do relatório de pesquisa, chamado de “Informe Público”. A pesquisa foi encomendada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e realizada com recursos obtidos pelo Ministério Público Federal (MPF) em um Termo de Ajustamento de Conduta com a Companhia Energética de São Paulo. Antes, o MPF já havia financiado outras dez pesquisas com recursos do TAC da Volkswagen, material que se transformou na série jornalística “Empresas cúmplices da ditadura“. No mesmo bloco da pesquisa da Belgo-Mineira também estão sendo investigadas a Mannesmann, também em Minas Gerais, e a Embraer, em São José dos Campos (SP).
“Eu fui pessoalmente a Monlevade conversar com as pessoas que viveram essa época e seus filhos. Apesar de nenhum dos 103 operários dos casos de violações que descobrimos estar mais vivo, parentes, familiares, filhos, vizinhos carregam consigo o trauma coletivo da cidade em relação a essa invasão. O medo dominou Monlevade”, afirmou a pesquisadora à Pública.
A pedido do MPF, os depoimentos das vítimas, bem como alguns nomes de autores de abusos, não são citados no “Informe Público”, para não atrapalhar as investigações do inquérito civil público, mas a Pública cruzou os relatos com outras fontes disponíveis, como o relatório da Covemg e outros acervos, como o documentário já citado.
A pesquisa acadêmica será juntada ao inquérito civil a respeito das violações de direitos humanos envolvendo a Belgo-Mineira, conduzido pelo MPF em Minas Gerais. O trabalho dos pesquisadores chefiados por Marina Camisasca localizou também quatro casos de abuso sexual contra quatro mulheres, três filhas de operários e a esposa de um deles. Um dos operários presos sofreu abuso sexual na cadeia e teve o pênis machucado sob tortura, aponta o relatório da Covemg.
De abuso sexual a demissões arbitrárias
Em 2002, uma das vítimas contou, aos 51 anos, que foi abusada em casa, em 1964, aos 13 anos, por um sargento da PM enquanto seu pai estava preso e que o fato marcou toda a sua vida, até ela conseguir contar a história perante comissão de indenizações para vítimas de tortura, criada pelo estado de Minas Gerais, em 1999.
“Um tal de sargento Alaor, esse era o pior, eu tinha 13 anos e ele me levava pro quarto, trancava a porta, fazia ameaças horríveis caso eu não fizesse o que ele mandasse. Ele fazia eu passar a mão nele, ficava pegando, em resumo, me molestava. Era nojento, mas ele fazia isso comigo, quando lembro, eu era uma criança, e não entendia nada, nem recordação boa do primeiro beijo de um namorado de quem eu gostasse eu podia ter. Aquele nojento estragou minha adolescência. E ele falava que, se eu não obedecesse ao maior absurdo, o meu pai sofreria. Até matar eles o fariam. Com a minha mãe ele fazia o mesmo, só que eu não entendia nada e depois eu ouvia ela falar que ele obrigava ela a fazer coisas horríveis também e ceder aos caprichos nojentos dele, e a gente era obrigada a assinar as coisas absurdas que ele escrevia”, contou a vítima em seu depoimento.
Segundo a pesquisa, as prisões de abril de 1964 contra grevistas e simpatizantes do movimento sindical ocorreram na fábrica e nas casas dos trabalhadores, que eram levados para a cadeia local ou para o Dops, em Belo Horizonte. Diante das coações, a maioria dos operários presos foi forçada a pedir demissão. Assinado o documento, a Belgo levava os trabalhadores diante do juiz para a homologação, que fazia a burocracia sem questionamentos.
Pedir demissão significava abrir mão não apenas do emprego estável, mas de tudo. Significava mudar de cidade ou morar de aluguel de uma hora para outra, pois ser empregado da Belgo em João Monlevade garantia não apenas casa, uma vez que a “empresa se responsabilizava pela infraestrutura necessária à manutenção de seus trabalhadores e familiares em termos de habitação, saúde, educação e abastecimento. Perder o emprego significava, portanto, perder a casa, a escola dos filhos, o atendimento ambulatorial e a compra de alimentos e remédios nos armazéns da empresa”, afirma o relatório da Covemg. De acordo com o “Informe Público”, até o acesso ao lazer dos moradores era garantido pela companhia, que construiu um cinema e dois clubes em Monlevade.
E as demissões e a repressão da ditadura militar associada com a Belgo não ficaram apenas em 1964. Após a greve dos metalúrgicos de abril 1968, que acabou garantindo um aumento de 10% aos trabalhadores de todo o país, seguida da greve de ocupação de outubro de 1968, mais de 200 trabalhadores da trefilaria da Belgo-Mineira em Contagem foram demitidos. A polícia se fazia presente nas fábricas. Nas greves de 1979, a repressão seguiu grande, com demissões sempre às dezenas ou centenas de trabalhadores, o que perdurou pelo menos até 1984.
No “Informe Público”, a equipe liderada pela professora Marina Camisasca sugere que a Belgo-Mineira – caso seja obrigada judicialmente ou aceite um acordo para indenizar a sociedade – ajude a financiar um Centro de Memória dos Trabalhadores no prédio onde funcionava o sindicato de João Monlevade, atualmente desocupado, e que a empresa contribua também para que saia finalmente do papel o Memorial dos Direitos Humanos de Minas Gerais, antiga reivindicação das vítimas, no local onde era o antigo Dops e que funcionava como sede do DOI-Codi em Minas, em Belo Horizonte.
A Pública tentou ouvir o procurador da República Ângelo Giardini de Oliveira, responsável pelo inquérito civil da Belgo-Mineira, mas ele disse que não havia recebido o “relatório final da pesquisa” e, por isso, não poderia comentar.
A Belgo-Mineira foi criada em 1917 por empresários brasileiros, como Companhia Siderúrgica Mineira, em Sabará. Em 1920, logo após a inauguração, a empresa enfrentava dificuldades e o presidente [nome que era dado ao cargo de governador de estado] de Minas Gerais, Arthur Bernardes, em 1920, aproveitou uma visita oficial do rei Alberto I, da Bélgica, para pedir a ele que investisse na empresa brasileira. Já em 1921 chegou a resposta: o grupo privado Arbed, de capital belgo-luxemburguês, investiu na Siderúrgica Mineira, criando a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira.
Em janeiro de 1964, diretores de alto-escalão da Belgo-Mineira participaram da reunião no edifício Acaiaca na qual foram discutidas não apenas como as empresas e ruralistas apoiariam o golpe, mas como se daria a repressão aos trabalhadores e movimentos sociais do estado. Na reunião, o representante do Exército, general Carlos Luís Guedes, pediu aos empresários que gastassem do próprio bolso e “tomassem as ruas de Jango”.
Em 2005, após fundir-se com mais duas empresas, a Belgo foi adquirida pelo grupo Arcelor, que se fundiu com a Mittal Steel Company. No Brasil, a empresa passou a se chamar ArcelorMittal Brasil a partir de 2006.
Em nota, a ArcelorMittal Brasil afirmou “que acompanha o processo de investigação dos eventos ocorridos […] na antiga Belgo-Mineira, época anterior à aquisição da empresa pelo Grupo ArcelorMittal. A empresa prestou todas as informações necessárias à apuração, porém desconhece o teor do relatório elaborado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), da Unifesp”.
A ArcelorMittal afirma manter “uma rigorosa Política de Direitos Humanos que estabelece os princípios norteadores para a tomada de decisões, ações e comportamentos da empresa” e que a companhia possui “canal de denúncia, acessível a qualquer pessoa, para comunicação de quaisquer violações ou transgressões aos direitos humanos”.