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Kiss e as mulheres de Tejucupapo

Apesar do avanço da IA, ainda estamos em um mundo simultaneamente analógico

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30 de abril de 2024
06:00

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Eu ia escrever sobre a venda de direitos de propriedade intelectual pela banda Kiss, a legendária banda de rock dos anos 1970, cujos membros agora não são mais donos nem das músicas que escreveram, nem da maquiagem que marcou época, nem da própria imagem quando tocavam em shows lotados, nem de qualquer coisa que se venha a produzir em seu nome. Eu ia escrever esta coluna sobre a distopia de um grupo de seres humanos perderem (seja qual valor foi pago) o direito às suas próprias imagens e criações para uma empresa – nesse caso, a suíça Pophouse Entertainment, que gerencia projetos culturais e criou, por exemplo, a versão em holograma da banda Abba. 

Ia escrever sobre as implicações desta venda, que inclui a propriedade intelectual e os direitos de imagens e de “semelhança”, invenções que na era da inteligência artificial (IA) adquirem contornos sinistros e impensáveis. E ia escrever, de maneira estruturada e bem argumentada, sobre como uma empresa como a Pophouse Entertainment pode simplesmente recriar, através de IA, as músicas do Kiss indefinidamente – pode treinar uma ferramenta de IA apenas para reescrever novas músicas do Kiss, que serão representadas por uma versão digital do Kiss em videoclipe, que tanto o vídeo como a canção serão de uma qualidade indistinguível das canções do Kiss (que não eram lá grandes coisas) e que o resultado disso será que o Kiss, a banda, jamais vai envelhecer ou morrer, jamais vai deixar de realizar espetáculos para girar a roda do capitalismo, ad infinitum, ad nauseam

Eu ia escrever sobre isso. 

Mas eu me sentiria uma farsante, escrevendo sobre cenários calculados no futuro, estando eu em Tejucupapo, no município de Goiana, nordeste de Pernambuco, diante de trincheiras históricas que marcam o local onde mulheres ajudaram, em 1646, a impedir a passagem de um grupo de 600 holandeses que tentavam manter seu controle sobre Recife.

Estava lá com a equipe da Marco Zero, premiado site independente do Nordeste, presenciando um evento que me impressionou.  

Era uma tarde chuvosa e enlameada de domingo, num morro verdejante com pouquíssimo acesso à internet. As barraquinhas que vendiam salgadinhos e cachos de pitomba, um fruto silvestre e azedinho da região, não conseguiam aceitar Pix pela internet recalcitrante, nem havia livestreaming de influenciadores possível e nem seriam muitas as imagens do evento compartilhadas em redes sociais. E a vida acontecia mesmo assim.     

Há 30 anos, uma obstinada senhora, Luzia Maria, escreveu e dirigiu um espetáculo a céu aberto recriando a batalha em tons épicos, e desde então a peça é representada todos os anos por mais de 200 moradores de Tejucupapo, diante de uma plateia de 1.500 pessoas vindas de cidades vizinhas – famílias, roupas coloridas, sorrisos, gritaria. Luzia preside a Associação Cultural Heroínas de Tejucupapo, responsável pela encenação a céu aberto.  

Com um atraso de duas horas, causado porque Luzia queria esperar a chegada do prefeito, a batalha foi encenada como uma grande dança. As mulheres apareceram com vestidos longos e monocromáticos, vermelhos, verdes, azuis, rosas, carregando cestas de frutas e farinha, enquanto nas furiosas caixas sonoras uma narração épica (feita pela própria autora) ia contando como era a tediosa (mas pintada de maneira engrandecedora) vida das mulheres de Tejucupapo, que apenas faziam seus deveres, até que, no dia da invasão, foram incitadas a ferver água e temperar com pimenta para jogar nos olhos dos invasores. E venceram.

A performance em si durou só meia hora. A plateia estava em êxtase, gritava a cada “holandês”, de calças negras, casaco laranja e uns capacetes de bicicleta revestidos com purpurina dourada que era empurrado no fosso da trincheira pelas mulheres pernambucanas. 

“Se esses holandeses voltarem, eu atiro neles” – dizia um dos atores, vestido com um gibão marrom

“Vivaaaa” – gritava o público.          

A história contada na peça, é claro, era exagerada. Seu significado é dizer que nascia ali o Brasil independente, o que é um papo furado: o Nordeste se livrou dos holandeses apenas para voltar a ser católico, obscurantista e português (escravocratas todos eram). Mas isso é o que menos importa.

Para mim, importa que numa cidadezinha de 80 mil habitantes essa senhora tenha conseguido criar uma tradição que atrai milhares todos os meses de abril, e que tenha feito toda essa gente esperar nas desconfortáveis arquibancadas até a chegada do prefeito, a quem, em vez de pedir uma salva de palmas, chamou ao microfone para entregar-lhe uma placa de homenagem e depois pressionar: 

– Temos três demandas – disse.

Então seu vice-presidente, um rapaz jovem, listou-as ali, bem detalhadas, e depois Luzia ainda cobrou: 

– Queremos ouvir sua resposta. 

Palmas da plateia.  

Por que estou compartilhando isso aqui, nesta coluna sobre o bravo mundo novo da tecnologia? Porque, embora as novas fronteiras virtuais do ultracapitalismo digital sejam um fato, ainda estamos em um mundo simultaneamente analógico, onde um grupo de moradores de uma cidadezinha no interior de Pernambuco encenam uma peça num domingo chuvoso, com parca internet, sem luz quase, com pouco sinal de telefonia; e a vida segue acontecendo, também, fora da rede, ainda tocada por pessoas com seus medos, seus vícios e suas belezas.  

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