A história mostra que a parceria entre militares e Centrão triunfa na política. Há quem não saiba que em plena Constituinte, iniciada em 1985, o Ministério do Exército viu com bons olhos o nascer do Centrão no Congresso. Equivalente ao atual Ministério da Defesa, a pasta à época comandada pelo general do Exército Leônidas Pires Gonçalves avaliava a formação do bloco como “uma reação contra a ditadura de minoria da esquerda”, um fruto do “despertar da consciência democrática” da ala mais conservadora da política daquele momento.
Ainda na Constituinte, por exemplo, um relatório do Centro de Informações do Exército (CIE) apontava que “todas as propostas de relevância das Forças Armadas” acabaram “acolhidas e aprovadas” na Constituição – graças ao Centrão e ao lobby de assessorias parlamentares militares.
Até hoje presentes no Congresso, as assessorias militares ocupam praticamente o 27o andar inteiro do Anexo I do Senado Federal em Brasília (DF), com mais de 40 servidores credenciados pela Aeronáutica, Exército e Marinha, além do Ministério da Defesa e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), conforme apurado pela Pública.
“Documentos oficiais mostram que ‘conciliação’ e ‘esquecimento’ eram ideias presentes o tempo todo na redemocratização, inclusive nos discursos de dirigentes civis e militares. Para militares, era preciso garantir a impunidade criminal e evitar a responsabilização das Forças Armadas perante a opinião pública – apresentando-os como ‘fiadores’ da democracia, algo que está se repetindo da mesma forma atualmente”, diz o historiador e sociólogo Lucas Pedretti.
Em entrevista à Pública, o pesquisador ressalta que o lobby dos militares é um entre muitos elementos de uma “transição inacabada”, que explicaria a militarização da sociedade brasileira atualmente.
Para Pedretti, outro eixo fundamental consiste em analisar a ideia de “violência política” formulada na redemocratização, excludente em relação aos povos do campo, a populações LGBTQIA+ e a juventude pobre e periférica dos centros urbanos – alvos constantes da violência estatal no Brasil até hoje.
“Se a ditadura violou os direitos humanos de tantos grupos e indivíduos, por que apenas uma parcela restrita desses sujeitos conseguiu se apresentar no debate público como vítimas do regime militar? Isso ocorre porque a Constituição reconhece certa violência política, mas a sociedade acaba sendo conivente com outros tipos, como a violência urbana, que enxerga jovens negros indistintamente como bandidos”, diz o pesquisador.
Pedretti colhe e analisa, há anos, uma série de documentos históricos do período da ditadura e da redemocratização, constituindo assim a base de seu novo livro, A transição inacabada – violência de Estado e direitos humanos na redemocratização” (Companhia das Letras, 2024), que é parte da coleção Arquivos da Repressão no Brasil.
Abaixo, os principais trechos da entrevista com o autor:
Seu livro questiona certa noção de violência política adotada no período da redemocratização e suas consequências no presente. O que isso tem a ver com a atual militarização do Brasil?
Desde a Comissão Nacional da Verdade (CNV), resta demonstrado que os impactos da ditadura foram muito amplos e profundos para um conjunto muito diverso de grupos sociais, como camponeses, trabalhadores urbanos, população LGBTQIA+, população negra, moradores de favelas e periferias, povos indígenas. Do ponto de vista acadêmico, hoje é impossível pensarmos na ditadura sem considerar seus múltiplos impactos. Mas, se a ditadura violou os direitos humanos de tantos grupos e indivíduos, por que apenas uma parcela restrita desses sujeitos conseguiu se apresentar no debate público como vítimas do regime militar?
Isso ocorre porque a Constituição reconhece certa violência política, mas a sociedade acaba sendo conivente com outros tipos, como a violência urbana, que enxerga jovens negros indistintamente como bandidos. E veja: precisamos ter em mente que, mesmo para as pessoas que foram de algum modo contempladas por políticas de reparação do Estado brasileiro, os avanços foram muito limitados diante do que deveria ter sido feito, do ponto de vista do reconhecimento e da reparação pelos crimes cometidos durante a ditadura.
Durante a redemocratização surge essa ideia sobre a violência política, que permite um reconhecimento lento e limitado de alguns sujeitos que foram vítimas, com a sua reincorporação na arena política. Mas isso não acontece com uma vasta gama de alvos da violência de Estado naquele período. Isso ocorre porque temos uma Constituição que repudia torturas e desaparecimentos forçados, mas mantivemos uma ideia de violência urbana que segue apartada nos debates de segurança pública, produzindo uma resposta social e estatal muito distinta, porque estamos falando de jovens negros, moradores de favelas e periferias, vistos como bandidos. A violência do Estado contra eles não é repudiada; pelo contrário, durante a democracia pós-1988, ela é cada vez mais insuflada e comemorada.
Para mim, é um fruto do duplo discurso sobre a violência estatal, constituído durante a redemocratização, que abre caminho para que um certo conjunto de pessoas se torne “protegido”, enquanto outro seja visto como alvo legítimo.
Algo muda com a ascensão do ex-capitão do Exército e histórico membro do Centrão, Jair Bolsonaro (PL), à Presidência da República?
O Bolsonaro rompe com essa lógica de violências estatais proibidas e permitidas. Ele não opera nessa lógica, segundo a qual a violência política deve ser repudiada, mas a violência contra jovens negros e periféricos é legítima. Ele rompe pela via da extrema direita, dizendo que ambas as formas de violência são legítimas, podendo matar e torturar, apoiando grupos de extermínio, esquadrões da morte, e também apoiando a tortura da ditadura, que “devia ter matado uns 30 mil”, como ele já disse. Ou seja, esse duplo de registro da violência – a proibida e a permitida – é rompido pela extrema direita. Quando, na verdade, essa mesma lógica poderia ter sido quebrada por outra via, por meio da ampliação dos direitos humanos, com repúdio à violência política e à violência estatal contra os negros periféricos, camponeses, povos indígenas, mas infelizmente não foi isso que aconteceu.
O que sua pesquisa mostra sobre a atuação das Forças Armadas no debate sobre violência política e os interesses das Forças Armadas na Constituição?
É importante lembrar que a doutrina de segurança nacional foi uma herança da ditadura que se fez presente na transição. Ou seja, militares participam do processo da Constituinte mantendo um pensamento autoritário, por vezes paranoico, fortemente anticomunista e conservador, que não se vê subordinado ao poder civil, se enxerga como um “poder moderador” da República. Não surpreende que um dos temas de interesse deles à época era a sua manutenção no tema da “ordem interna”, cristalizado no artigo 142 da Constituição.
Com essa mentalidade, as Forças Armadas também notavam a legitimidade da Assembleia Nacional Constituinte como a arena de debate daquele momento. A solução foi intensificar o lobby político via assessorias parlamentares, influenciando as discussões e defendendo os interesses militares.
Em tese, deveríamos esperar que, num momento de redemocratização, os militares se ausentassem do debate político, se submetendo ao poder civil, se profissionalizando de fato.
Mas não é o que ocorre na prática. As Forças Armadas remodelam toda a sua forma de atuação, para continuar influenciando a arena política da Constituinte por meio de uma assessoria parlamentar poderosa – que até hoje se mantém assim, como mostram pesquisas recentes. Ou seja, quando deveriam ter voltado aos quartéis, eles insistem e se mantêm como atores políticos do processo, enxergando a esquerda como inimiga e se aproximando do Centrão, visto à época pelas Forças Armadas como um aliado prioritário.
Ao mesmo tempo, os militares mostravam que, quando necessário, atuariam na base do “bom e velho” autoritarismo, com falas de intimidação, por exemplo, de ministros militares contra a responsabilização criminal por fatos graves, como as torturas cometidas na ditadura. Na Constituinte, militares lutaram pela participação das Forças Armadas em questões de ordem interna, no caso do artigo 142. Ou seja, considerando tudo isso, fica nítido que o pluralismo político, na ótica militar, vai até certo ponto – se interferisse nos interesses deles, não havia problema algum em remover o “verniz democrático” e insistir na escolha autoritária.
O problema é que a mesma lógica segue operando, com todas as ameaças e discursos militares contra a responsabilização criminal relacionada à ditadura. Infelizmente, os fatos recentes da história brasileira mostram que essa tática das Forças Armadas segue efetivamente funcionando.
O que mais chamou atenção, no material de arquivo que deu base para seu livro?
Fica muito latente uma certa lógica que atravessa toda a redemocratização: as ideias de “conciliação” e “esquecimento” diante dos crimes e erros cometidos pelos militares enquanto estiveram no poder.
Documentos oficiais mostram que “conciliação” e “esquecimento” eram ideias presentes o tempo todo na redemocratização, inclusive nos discursos de dirigentes civis e militares. Para militares, era preciso garantir a impunidade criminal e evitar a responsabilização das Forças Armadas perante a opinião pública – apresentando-os como “fiadores” da democracia, algo que está se repetindo da mesma forma atualmente.
Impressiona muito quando você vê isso nos documentos, nos discursos públicos, no modo como isso era noticiado na imprensa e até como foi abordado por certas correntes acadêmicas. Impressiona porque, de certo modo, essa é a perspectiva vitoriosa até hoje – é quase como se devêssemos agradecer aos militares pela existência da nossa democracia. Também impressiona quando você percebe que este discurso está se repetindo no presente exatamente da mesma forma, mas desta vez em relação ao 8 de Janeiro e o modo como, supostamente, militares foram mais uma vez “fiadores” da democracia. Esquece-se que as Forças Armadas permitiram os acampamentos golpistas, que parte delas conspirou, além de terem projetado e participado do governo Bolsonaro. Agora, militares ressurgem como salvadores da pátria novamente.
Para isso, vale esquecer do golpe de 1964, como fez o governo neste ano, vale não recriar a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, vale protelar a chamada “PEC dos militares na política” e até ampliar o orçamento da Defesa. Me parece, infelizmente, que estamos reproduzindo o que aconteceu na redemocratização nos anos 1980.