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Lei proíbe patrocínio de atividades culturais por produtos de tabaco, mas propaganda institucional é liberada

Reportagem
30 de maio de 2024
15:10

Num auditório espaçoso, um vídeo institucional da Philip Morris – gigante da indústria do tabaco mundial – abre uma roda de conversa sobre empregabilidade para pessoas LGBTQIA+. A peça trata do descarte de bitucas e de diversidade. Além disso, entre os palestrantes está uma representante da Philip Morris, que fala sobre seleção e ampliação da diversidade no mercado de trabalho.

O evento, no caso, é uma palestra da Feira da Diversidade –— parte da programação oficial da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, realizada na quinta-feira, 30 de maio. A Philip Morris é patrocinadora da feira.

A ação, contudo, acontece no limite da legalidade, segundo especialistas ouvidos pela Agência Pública. Isso porque uma lei federal proíbe há décadas o patrocínio de atividade cultural ou esportiva por “uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público”.

“É proibida a promoção dos produtos, mas aí as empresas encontraram a brecha na lei, que é realizar a publicidade institucional. Se a ação acontecer em nome da Philip Morris, isso não seria ilegal”, explica a diretora da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) Mônica Andreis.

“O problema é que são empresas cujo produto é o tabaco, ou seja, esse é o carro-chefe delas: cigarros e produtos fumígenos. Não são como uma grande empresa que tem uma gama de produtos e poderia fazer uma ação institucional mais genérica”, avalia Andreis.

Além de patrocinar a feira, a Philip Morris Brasil é apoiadora da própria Parada, como consta em comunicado divulgado para a imprensa. Este é o sétimo ano que a empresa apoia o evento. A logo da Philip Morris aparece no site da Parada do Orgulho como um dos parceiros.

Banner com os logos dos parceiros da parada LGBTQIA+ de SP
Parceiros da parada LGBT de São Paulo

No evento, contudo, a marca da Philip Morris só aparece nos painéis próximos ao auditório onde são realizadas as rodas de conversa. Nos demais, aparecem apenas os outros patrocinadores e apoiadores.

Na visão de Andreis, empresas como a Philip Morris utilizam esse tipo de ação institucional para melhorar sua imagem, que é prejudicada pelos males à saúde causados pelo fumo. A associação a eventos que promovem a diversidade, no mês do Orgulho, é uma prática comum no mundo do marketing, que foi apelidada de “rainbow washing”, em alusão ao uso do arco-íris, símbolo da comunidade LGBTQIA+. 

“Eles [Philip Morris] têm feito esse investimento porque querem aprovar a entrada de novos produtos no mercado, como os vapes, como se estivessem preocupados com a saúde do consumidor. Devemos ver um aumento nesse tipo de iniciativa, para que pareçam uma empresa socialmente responsável”, critica.

A associação a eventos que promovem a diversidade, no mês do Orgulho, é uma prática comum

Os dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como vapes, são proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A proibição envolve desde a fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento e transporte até a propaganda de todos os dispositivos eletrônicos do tipo.

Na série de investigações Redes de Nicotina, a Pública, com cinco outros veículos do continente, mostrou como empresas de tabaco têm usado táticas para promover novos produtos. Essa estratégia envolve desde pressões sobre a Anvisa, informes publicitários pagos em veículos jornalísticos até atuação da bancada do fumo no Congresso – um projeto da senadora do Mato Grosso do Sul Soraya Thronicke (Podemos) quer liberar e regulamentar o comércio dos vapes. A política chegou a levar os produtos para o Senado durante uma audiência no final de maio.

“Embora ela [Philip Morris] não esteja fazendo propaganda de produto, ela é institucional, tem uma intencionalidade de se aproximar de grupos, neste caso [a comunidade] LGBTQIA+ […] e obviamente essa aproximação não é gratuita. É criar uma imagem positiva de uma empresa que mata dois em cada três consumidores”, diz Tânia Cavalcante, médica e ex-secretária da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco e de seus Protocolos (Conicq).

Cavalcante avalia que a proximidade da indústria do tabaco com a comunidade LGBTQIA+ pode ser revertida em apoios à aprovação social de seus produtos. “O meu receio é que, em algum momento, esse grupo pode ser acionado, e espero que não aceitem, para defender os interesses dessa empresa […] O nome dessa empresa está vinculado aos seus produtos e os seus produtos matam”, diz.

A reportagem questionou a Philip Morris sobre o patrocínio e o apoio, mas não recebeu retorno até a publicação.

A Pública também procurou a organização da Parada do Orgulho LGBTQIA+ em São Paulo, que informou que “o patrocínio da Philip Morris Brasil é institucional. Sendo assim, não há menção, em nenhum material de comunicação, a alguma marca de cigarro específica”. Por nota, o presidente da ParadaSP, Nelson Matias Pereira, informou que “o patrocínio se refere às rodas de conversa sobre Direito e Inclusão que acontecem na 23ª Feira Cultural da Diversidade LGBT+”.

Banner do evento com participação da Philip Morris na Feira Cultural da Diversidade LGBT+

Limite da lei abre caminho para publicidade institucional de empresas de tabaco

No Brasil, a propaganda de cigarros em veículos de massa, como jornais, TVs e rádios, é proibida desde os anos 2000. Contudo, apesar de a legislação brasileira ser rigorosa quanto a esse tipo de divulgação, empresas que vendem cigarros e outros produtos de tabaco têm conseguido fazer a divulgação das suas marcas através de ações institucionais, como a Philip Morris faz na parada LGBT+ de São Paulo.

O advogado especializado em direito na publicidade Renato Valença é categórico: “Em termos de produto, as marcas de cigarro não podem ser divulgadas, seja na Parada, seja lá na Feira, seja em qualquer momento. Marcas de cigarro não podem ter divulgação na mídia”, alerta. 

Para Rafael Mafei, professor de direito da Universidade de São Paulo (USP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), é necessário analisar se a distinção entre a propaganda institucional e a propaganda comercial faz sentido quando “produto é indissociável à marca”. “A marca Philip Morris não comunica nada, a não ser cigarro. Não existe outra comunicação possível da marca Philip Morris num evento de comunicação de massa, como é o patrocínio institucional do evento, que não seja cigarro”, acrescenta o professor. 

Mafei cita a Convenção-Quadro de Controle do Tabaco, que foi assinada pelo Brasil e outros 182 países com o intuito de conter o avanço desenfreado do consumo de tabaco pelo mundo. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promulgou o acordo em janeiro de 2006. O artigo 13 do documento prevê que as partes reconhecem a “proibição total da publicidade, da promoção e do patrocínio do consumo de produtos do tabaco”. 

“Pelo texto, o Brasil se comprometeu a proibir toda publicidade do tabaco, em toda extensão que seja possível”, afirmou o professor.

A legislação brasileira prevê penalidades como advertência, suspensão no veículo de divulgação, obrigatoriedade de publicação de esclarecimentos e multa, por meio de fiscalização do órgão de fiscalização sanitária municipal.

A reportagem questionou a vigilância sanitária da prefeitura. Procuramos também a Anvisa, mas não recebemos respostas até a publicação da reportagem.

Consumo de cigarros e tabagismo é problema de saúde para pessoas LGBTQIA+, apontam pesquisas

Uma pesquisa publicada ano passado na revista de saúde coletiva Physis, vinculada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), avaliou como a Philip Morris tem se associado à Parada LGBTQIA+ para promover seus produtos enquanto apoia a causa e promove uma imagem corporativa positiva. O artigo cita dados de saúde no Brasil e em outros países que apontam maior consumo de cigarros na população LGBTQIA+, que aumentaria a vulnerabilidade dessas pessoas.

“O assunto ainda é muito pouco discutido no Brasil, pouco problematizado. Apesar de existirem pesquisas que apontam que a prevalência do tabagismo na população LGBT é maior, há a aproximação da indústria dessa população, que a usa como uma forma de responsabilidade social corporativa”, critica Aline Mesquita, uma das autoras do artigo e tecnologista da Divisão de Controle do Tabagismo da Coordenação de Prevenção e Vigilância do Instituto Nacional de Câncer (Inca).

Segundo a pesquisadora, a estratégia de se aproximar do movimento LGBTQIA+ não é exclusiva da indústria do tabaco: ela cita empresas que produzem bebidas alcóolicas e alimentos ultraprocessados como exemplos. “Elas lançam produtos especiais, como o salgadinho com cores do arco-íris, mesmo que os produtos causem problemas de saúde a essa população. O que elas buscam com isso? Primeiro, melhorar a imagem, que é prejudicada pelo próprio produto que ela vende. Ela ganha aliados para suas próprias pautas, pois são movimentos organizados. Mas também há a hipótese que isso ajude a aumentar o consumo nesses grupos”, comenta.

Na pesquisa, Mesquita também aponta como a Philip Morris utiliza valores associados à liberdade e linguagem ligada à população LGBTQIA+ para divulgar sua marca, mas que isso também tem relação com a pressão dessas empresas para liberar os novos produtos no mercado. 

“Quem é que não preza pela liberdade? Contudo, é uma contradição esse discurso em um produto que causa uma dependência gravíssima. O importante seria dar visibilidade ao problema do tabagismo na população LGBTQIA+: é uma indústria que tem um produto que mata uma população que já é vulnerabilizada e já faz uso maior desses produtos. E isso não é percebido pelo próprio grupo”, pondera.

Edição: | Colaboração:
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Bruno Fonseca/Agência Pública

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