Konrad Scorciapino, um dos executivos mais importantes da produtora de direita Brasil Paralelo, foi um dos criadores do 55chan, fórum de discussões online que ficou conhecido por ser um dos primeiros e um dos maiores do país, de acordo com apuração da Agência Pública.
Scorciapino faz parte da diretoria da produtora desde 2020 e é Chief Technology Officer (CTO), sendo responsável pela área de tecnologia do site e aplicativos da empresa que, segundo a própria, possui mais de 400 mil assinantes.
O chan se tornou conhecido do grande público por abrigar conteúdo enquadrável como criminoso. Em março de 2019, quando cinco alunos e duas funcionárias foram assassinados em uma escola de Suzano, em São Paulo, o fórum publicou louvações aos atiradores, lamentando que não mataram mais, e colocou para tocar automaticamente no site uma música sobre um jovem que atira em colegas – Pumped up kicks, da banda Foster The People.
O 55chan abrigou também por um tempo o Dogolachan, que chegou a ser um dos locais mais inóspitos da internet brasileira. Um de seus criadores foi condenado a mais de 40 anos de prisão por associação criminosa, divulgação de imagens de pedofilia, racismo, coação, incitação ao cometimento de crimes – como estupro e feminicídio – e terrorismo. Após anos de ameaças e perseguição contra a professora Lola Aronovich por integrantes do Dogola, em 2018 foi sancionada a Lei Lola, que permite que a Polícia Federal investigue casos de misoginia na internet.
Membros do 55chan expuseram fotos manipuladas de uma filha da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), dados pessoais e ameaças a políticos como David Miranda, hoje falecido, e ao jornalista americano Glenn Greenwald, além de fazerem ataques coordenados para derrubar sites e difamar qualquer pessoa considerada como “inimiga” dos usuários.
Por que isso importa?
- Embora afirme que respeita a pluralidade, a produtora Brasil Paralelo, fenômeno comercial que produz filmes negacionistas, tem como diretor de tecnologia o criador de um dos “chans” mais violentos, que preconizou outros fóruns semelhantes onde crianças e mulheres sofrem abusos criminosos
Durante meses, a reportagem da Pública conversou com ex-integrantes do 55chan, pesquisadores desse universo e pessoas que conheceram Scorciapino durante e depois do período em que ele foi o principal administrador do chan.
Quem foi próximo a ele diz que o emprego na Brasil Paralelo “serviu como uma luva” aos seus ideais liberais e conservadores, como professa a empresa de extrema direita.
Prova disso é que ele encabeça também a Liberty Tech, uma comunidade criada pela Brasil Paralelo para congregar profissionais da tecnologia com visão ideológica semelhante, e que, segundo a página da comunidade, “podem não se adequar no mercado de trabalho, quando a politização e a presença de ideologias transformam o ambiente profissional em um fardo psicológico”.
A Brasil Paralelo afirma que tem como propósito “resgatar os bons valores, ideias e sentimentos no coração de todos os brasileiros”, que “busca a pluralidade de opiniões” e tem como valores inegociáveis a verdade, a união e a diplomacia, entre outros. Mas o conteúdo produzido por ela é ligado à extrema direita e ao conservadorismo, propagando ideias negacionistas e de desrespeito a minorias.
Scorciapino é descrito por pessoas que já foram próximas a ele como “abertamente conservador” e “olavista” – seguidor do finado ideólogo do bolsonarismo, Olavo de Carvalho. Por outro lado, dizem essas fontes, ele é “profissional brilhante” e “que nunca ficou sem emprego, apesar de suas opiniões”.
Scorciapino e a Brasil Paralelo foram procurados pela reportagem, mas não responderam até a publicação desta reportagem.
“Lugar certo para mostrar nosso monstro interior”
Os primeiros registros do 55chan datam de 2007, quando esse tipo de fórum ainda era pouco comum no país. Naquela época, mesmo o acesso à internet era restrito: a conexão chegava a apenas 17% dos lares brasileiros.
Para algum desavisado que caísse na página, havia uma breve explicação: “O 55chan é uma coleção de fóruns em que é possível e recomendado escrever anonimamente, sem registro algum. Isso traz uma série de vantagens, como criar uma comunidade unida sem que haja pessoas brigando por atenção e popularidade”. E continuava: “Temos diversos fóruns, grande parte discutindo assuntos reais, e o que há de comum neles é a civilidade. Exceto no /b/. Lá vale escrever o que quiser e é o lugar certo para mostrarmos nosso monstro interior”.
O texto, usado desde a criação do chan, em 2007, é assinado por K, o mesmo nome de usuário utilizado por Scorciapino no chan – em alusão ao seu primeiro nome, Konrad.
Anos depois, o tecnólogo admitiu, na antiga rede social Formspring, que administrava o 55chan.
O canal /b/, reservado a assuntos aleatórios, colecionava posts racistas, homofóbicos e antissemitas, entre outros. Embora usuários afirmem que as postagens eram brincadeira (ou “trollagem”), muitos dos conteúdos podem ser enquadrados como discurso de ódio e crimes digitais.
“Tem coisas como difamação, doxxing – exposição de dados das pessoas –, que são claramente crime. Mas essa retórica de que é ‘tudo zuera’ já é usada pela extrema direita estadunidense faz tempo. No Brasil, essa retórica foi sistematizada por Olavo de Carvalho, no que o professor João Cezar de Castro Rocha chama de ‘retórica do ódio’, para descrever uma linguagem que, ao mesmo tempo em que é superagressiva, ainda consegue se disfarçar e se proteger pelo manto da liberdade de expressão. Consideremos que os chans aplicam a retórica bolsonarista/olavista a um ambiente jovem, envernizado pelo tom de ‘piada'”, diz Luís Meira, pesquisador da área de comunicação da PUC de Campinas.
Meira se infiltrou em chans brasileiros para entender, para sua dissertação de mestrado, como se propagam discursos de ódio nessas plataformas. “A malandragem da retórica dos chans é justamente a possibilidade de se negar a filiação de seus agentes aos eventuais episódios de violência. Funciona assim: os usuários falam sobre cometer uma violência, falam, falam, falam. Aí, quando alguém comete essa violência, os outros agentes reprodutores da retórica têm a possibilidade de se afastar e evitar associação”, afirma.
Postagens sobre pornografia infantil ou a sexualização de crianças eram assuntos constantes, como declarou um ex-frequentador do chan à Pública.
Em novembro de 2007, por exemplo, um usuário anônimo avisou que uma reportagem do Fantástico havia mostrado “seios de meninas de 12 anos. Tipo, explicitamente. Globo é o paraíso dos pedófilos”. Ele se referia a uma reportagem sobre crianças indígenas, que foram mostradas na matéria usando vestes tradicionais. “Programas sobre crianças do Fox Family e do Discovery Home & Health também são cheios de meninas menores de idade sem camisa, fica a dica”, respondeu outro frequentador do fórum. Usuários compartilhavam também perfis do Orkut de “lolis” (gíria para Lolita, em referência a meninas com menos de 14 anos).
“Nunca dava pra saber quando era sério ou não, pela natureza da coisa. A ‘regra’ era que tudo devia ser lido como piada e nunca levado a sério”, afirmou um ex-moderador do grupo à Pública, em condição de anonimato.
A reportagem analisou mais de mil registros do chan que foram salvos no Wayback Machine, uma ferramenta que salva páginas de internet. Havia postagens racistas, de apologia à violência e misoginia e antissemitas. Uma das frases mais repetidas era que “apenas um idiota” acreditaria no que estava escrito ali.
“Os moderadores tinham acesso a todos os posts que determinado IP tinha feito, então até dava pra conhecer mais os usuários, mas os usuários em si não tinham como acompanhar uns aos outros. Então um usuário que em um post se declarava fascista poderia em outro post falar algo completamente contraditório. A coisa funcionava porque você podia ser uma pessoa diferente em cada postagem”, disse o ex-administrador do chan.
Segundo ele, que trabalha com desenvolvimento de sites e prefere não se identificar, “com certeza” havia conteúdo que seria enquadrado como crime de ódio.
A própria estrutura do chan dificultava que esse arquivo fosse consistente, pois os posts se autoapagavam após determinado tempo – geralmente, após preencherem dez páginas, os mais antigos eram deletados.
Na análise feita pela reportagem nos registros salvos no Wayback Machine, é possível notar muitos conteúdos potencialmente criminosos.
Um post de fevereiro de 2008 que criticava comentários racistas no site recebeu muitas respostas racistas e até escravocratas. Por exemplo, postagens analisadas pela reportagem defendiam que brancos são superiores – e por isso não teriam sido escravizados – e comparavam negros a animais.
Regra só veio depois de três anos
Em 2010, três anos após a criação do chan, o canal /b/ do 55chan passou a mostrar um aviso pedindo que os usuários, ativamente, concordassem em não postar conteúdo potencialmente criminoso. Para escrever na página, era necessário clicar numa caixinha que dizia: “Compreendo que não é permitido postar nada ilegal, que caso faça algo muito feio, meu tópico será repassado à polícia, e que, portanto, não postarei Pornografia Infantil, Racismo, Negações do Holocausto, Quaisquer outras coisas ilegais”.
Para as pessoas que frequentavam o espaço naquela época, o aviso passou a ser necessário pelo volume de comentários ofensivos que se acumulavam na página e poderiam gerar problemas com as autoridades.
Segundo frequentadores, havia uma “guerra de chans”, em que usuários de outros grupos procuravam posts perniciosos para denunciar ao servidor que hospedava o rival. Se a empresa que fornece o servidor, geralmente localizada fora do país, entendesse que o conteúdo poderia gerar problemas legais, poderia aplicar sanções ou tirar o site do ar. De acordo com ex-usuários consultados pela reportagem, o 55chan chegou a sair do ar duas vezes por esse motivo.
O próprio Scorciapino falou sobre a situação no Formspring, uma antiga rede social que permitia a usuários fazer perguntas a outros de forma anônima. Em 2011, o chan havia saído do ar e ele passou a ser questionado sobre o que havia acontecido.
“Confesso que se ganhasse uns bons milhares de reais com ele, manteria no ar, mas além da perda de dinheiro, é muita dor de cabeça: muita gente postando CP [sigla para child pornography, ou pornografia infantil em português], câncer [usuários novos], servidor apreendido duas vezes, stalkers, DDoS etc etc. É bom dar um tempo pra pensar melhor em como resolver esses problemas”, disse em uma das respostas.
Ele disse também que costumava postar no 55chan. Mas, como os comentários são anonimizados, não é possível saber quais textos eram dele.
Além disso, ele afirmou que tinha interesse em vender o domínio por R$ 15 mil. “Por enquanto não tenho previsão para que volte, mas se no meio termo alguém de boas ideias e índole quiser retomar o projeto, pode comprar o domínio e o software de mim!”, respondeu.
Opiniões “francas”, violentas ou homofóbicas?
Scorciapino deixou a administração do 55chan por volta de 2010, quando o domínio foi repassado a outras pessoas, segundo ele próprio relatou no Formspring. Na época das respostas, ele recebeu várias manifestações de admiração por ex-usuários do chan. Foi chamado de “herói”, “amado por milhares” e “revolucionou a vida de várias pessoas”.
Parte dessa admiração vinha da “franqueza” com que ele se posicionava – tanto no chan como em outras esferas da internet. Era vocalmente contra a esquerda, professava ideias do guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, e tinha argumentos que poderiam ser enquadrados como incitação à violência – por exemplo, ele afirmou que seria positivo “incentivar” linchamentos.
“Como resolver o problema da violência? Primeiramente tirando os aliados do crime organizado, o PT, outros partidos do Foro de São Paulo, do poder. Em segundo lugar, não impedindo a população de se defender e até incentivando a posse de armas e os linchamentos. Na hipótese de nada disso resolver, acho que aí seria válido pensar em pena de morte”, ele disse em uma das respostas do Formspring em 2011.
As postagens públicas de Scorciapino também traziam tons machistas e homofóbicos.
Ainda no Formspring, ao ser perguntado sobre que tipo de mulher gostava, ele respondeu que “não sendo nem muito magra nem muito gorda, toda mulher é gostosa”, mas que “racialmente, prefiro as japonesas e as latinas, mas todas me agradam, exceto as negras”.
Sobre a homossexualidade, disse se tratar de “uma parafilia, que não seria objeto de muito mais pensamento que, sei lá, o sadomasoquismo, se não fosse pelos dementes do movimento gay”.
Outro moderador, que atuou no chan após a saída de Scorciapino, afirmou à Pública que “obviamente a figura dele era idolatrada pelos usuários e de vez em quando aparecia algo sobre ele lá”.
“Como é costumeiro no Brasil, o 55chan teve muitas versões diferentes. A original foi a 55chan.org que o K [Scorciapino] criou em 2007. Não foi o primeiro chan do Brasil, mas foi pelo menos o primeiro com site próprio que ficou grande. Em 2010 o chan caiu e os usuários migraram em massa para o BRchan, que se manteve como o maior do Brasil por mais alguns anos”, disse o ex-administrador. “O K só teve envolvimento direto com o 55 original.”
Entre 2013 e 2018, Scorciapino trabalhou como engenheiro de software do Nubank – atuando na criação do aplicativo do banco digital, o pilar central da empresa. Uma pessoa que foi contemporânea dele no local de trabalho disse que Scorciapino era conhecido como uma pessoa “com opiniões fortes”, que “gerava muita treta, mesmo sendo tecnicamente excelente”.
“Era uma pessoa meio difícil de lidar, com opiniões fortes. Lembro que ele compartilhava uns memes meio liberaloides, mas ninguém dava bola”, continua a ex-colega.
Seus problemas no banco teriam começado quando o passado com o chan era relembrado. “De quando em quando, ele era chamado pra palestrar em algum evento sobre tech. Aí tinha toda a movimentação de pessoas da comunidade tech pedindo para ele ser barrado do evento”, disse. No entanto, a reportagem não encontrou registros desses protestos.
Scorciapino integra a Brasil Paralelo desde 2020. Ele lidera a equipe que cria as ferramentas tecnológicas da plataforma, que atualmente é a que mais gasta com publicidade em redes sociais do Meta (bem mais que o governo federal) e no Google.
Foi no período após a saída de Scorciapino que o chan acabou entrando no radar da imprensa, tanto pelo culto a atiradores como pelo conteúdo preconceituoso contra minorias. Repórteres que investigavam o espaço foram atacados e tiveram seus dados pessoais expostos.
A jornalista Ana Freitas, que frequenta fóruns online desde 1996, sofreu duas campanhas de linchamento por usuários de chans brasileiros, incluindo o 55chan, após ter escrito matérias sobre eles. Em 2015, ela publicou uma matéria no Brazil Post, página brasileira do Huffington Post, falando sobre misoginia em chans. Logo depois sofreu ataques de usuários do 55chan e do BRchan que envolviam doxxing – a exposição de dados pessoais da vítima do ataque.
“Tive que sair da minha casa porque fiquei com medo. Eu morava com a minha mãe na época e eles faziam compras com cartão clonado e mandavam entregar lá para me intimidar. Eram desde coisas de sex shop, vermes para usar em composteira, até esterco”, lembra.
Masculinidade tóxica e massacres
O universo “chanero” já foi descrito em pesquisas e reportagens como um ambiente bastante marcado pela masculinidade e apreço pelo viés de direita radical – não à toa, foi o ambiente que gestou os incels, ou celibatários involuntários, homens que odeiam mulheres porque acreditam que todas são interesseiras.
Um estudo de Eduardo Gabriel Velho e Sandra Portella Montardo analisou 16 mil posts do 55chan entre 2016 e 2017, após a adesão de usuários do fórum ao massacre de Suzano e no chamado #Gamergate, uma campanha online misógina em que mulheres gamers tiveram dados pessoais expostos.
Os pesquisadores identificaram que “a manifestação da masculinidade tóxica no 55chan assume contornos específicos devido ao anonimato, à efemeridade das linhas de discussão e ao uso dos filtros”.
O 4chan, o chan mais popular mundialmente, já foi apontado como “a vanguarda da extrema direita” que ajudou a eleger Donald Trump nos Estados Unidos em 2016. O mesmo caminho teria sido trilhado no Brasil com o ex-presidente Jair Bolsonaro, que por suas posições antissistema era endeusado nos fóruns, com memes e cortes de vídeos “lacradores” rodados à exaustão.
“Eu entendo a criação deste microsmo, deste ‘clube do Bolinha’ virtual, como sintoma de um movimento maior que é a obsolescência do modelo hegemônico de masculinidade patriarcal. Na falta de novas subjetividades que englobem os interesses e formas de socialização destes jovens, o discurso que fica é o reacionário”, diz Luís Meira, que pesquisou chans como o 55 e o 1500, os mais populares do país, além do Dogola.
“Estes jovens se reúnem em locais fechados, anônimos, onde tudo pode ser dito e feito, toda fantasia pode ser compartilhada – os chans”, ele continua. “Por isso, os chans são frequentemente utilizados como espaços para planejamento de ataques na vida real, como aconteceu em Suzano, em São Paulo, e Christchurch, na Nova Zelândia, e em tantos outros episódios de tiroteios em massa.”
Para ele, “a extrema direita soube olhar para este movimento e focou nos chans, especificamente o 4chan, como um front de mobilização política.