O resultado da investigação da Polícia Federal (PF) sobre o assassinato da ex-vereadora do PSOL Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes lembrou uma antiga pergunta: se o Rio de Janeiro passava por uma intervenção militar na segurança pública, o que as Forças Armadas descobriram sobre esse crime, sobre grupos milicianos e sobre outras facções criminosas que operam no estado?
A Agência Pública descobriu que informes, relatórios e outros documentos de inteligência produzidos pelos interventores militares no Rio de Janeiro em 2018 não existem nos arquivos públicos e que nem mesmo as autoridades parecem saber totalmente o que foi descoberto à época.
Por que isso importa?
- A ausência de todos os documentos de inteligência produzidos pelas Forças Armadas durante a intervenção no Rio de Janeiro impacta a velocidade e qualidade da investigação de casos sensíveis, como o do assassinato de Marielle e Anderson, e prejudica o combate ao narcotráfico.
Os materiais em questão foram elaborados com uso de tecnologias de espionagem, como softwares de monitoramento de telefones e de integração de dados sobre indivíduos, e incluem informações sobre o avanço do narcotráfico e das milícias, a situação fundiária em áreas de atuação desses grupos e a investigação da PF sobre o caso Marielle e Anderson, que, vale lembrar, relaciona o crime a disputas pelo controle de terras na capital fluminense pela milícia. Esses conteúdos teriam sido repassados para a Polícia Civil do Rio de Janeiro ao fim da intervenção, mas a polícia não confirmou à reportagem o recebimento dos documentos.
O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) é o responsável por guardar o legado da intervenção. O órgão chefiado pelo general da reserva do Exército Marcos Antônio Amaro dos Santos respondeu à Pública, por meio de assessoria de imprensa e Lei de Acesso à Informação (LAI), que “todos os relatórios disponíveis estão na área Repositório Institucional” do site da intervenção. Mesmo após insistência da reportagem sobre o destino específico do material de inteligência, a resposta continuou a mesma.
Oficialmente, tanto o Exército como os governos federal, via GSI, e do Rio de Janeiro, por meio da Polícia Civil, não souberam responder quem ficou com o material de inteligência feito pelos militares entre fevereiro e dezembro de 2018, qual o volume produzido ou os temas dos relatórios elaborados à época.
Em comum, o Exército e os governos federal e do Rio de Janeiro alegam não ter ficado com os documentos produzidos pela antiga Diretoria de Inteligência da intervenção, comandada por dois oficiais das Forças Armadas no período – um tenente-coronel do Exército e um capitão de fragata da Marinha.
A Pública pediu, por meio da Lei de Acesso à Informação, explicações sobre o caso à Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio de Janeiro. O órgão respondeu que “não há nada em nosso sistema referente aos citados documentos”, em referência à lista de documentos de inteligência.
Assinada no último dia 29 de abril pelo subsecretário de Inteligência do governo do Rio de Janeiro, delegado Flávio Porto de Moura, e por seu assistente, delegado Paulo Henrique da Silva Ribeiro, a nota afirma que a subsecretaria “não possui a informação solicitada”.
O Exército não comentou o caso, endereçando o pedido da Pública para o detentor oficial do legado da intervenção, o GSI. Já a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio de Janeiro não respondeu. Caso se manifeste, esta reportagem será atualizada.
Militares teriam usado ferramentas espiãs contra narcotráfico e milícias
Conforme apurado pela Pública, a antiga Diretoria de Inteligência da Secretaria de Segurança da intervenção teria produzido material de inteligência sobre diversos aspectos da criminalidade no Rio de Janeiro, como o poderio do narcotráfico e das milícias, além de ter tratado informações recebidas à época via Disque-Denúncia.
Para tal, a intervenção militar adquiriu e usou ferramentas de espionagem como o software brasileiro Guardião e programas da israelense Cognyte. Como reportado pela Pública e pelo portal Brasil de Fato, as Forças Armadas compram produtos do grupo israelense há anos.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, o gabinete de intervenção militar, então comandado pelo general do Exército Walter Braga Netto, teria comprado o software First Mile da antiga Verint, atual Cognyte do Brasil, representada comercialmente desde 2016 por Caio dos Santos Cruz, filho do general da reserva do Exército Carlos Alberto Santos Cruz.
A ferramenta do grupo israelense ganhou fama no Brasil em 2023, após suspeitas de uso ilegal por agentes ligados à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo Bolsonaro.
Como já relatado pela Pública, a PF investiga o uso do First Mile pela antiga gestão da Abin, quando sob comando do aliado do clã Bolsonaro, deputado federal e atual pré-candidato a prefeito da cidade do Rio de Janeiro Alexandre Ramagem (PL).
Munida dos softwares de espionagem, a Diretoria de Inteligência da intervenção agiu no Rio de Janeiro sob o comando de dois militares. Entre fevereiro e dezembro de 2018, o então tenente-coronel do Exército Marcelo Schneider ocupava o cargo de diretor; ao fim dos trabalhos, o então capitão- de- fragata da Marinha Márcio Rosetti assumiu o posto.
Caso Marielle e Anderson entre os afetados
O desaparecimento dos relatórios da intervenção no Rio de Janeiro impacta casos como a investigação da PF sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Em depoimento prestado em outubro de 2023 à PF, o ex-secretário de Segurança da intervenção, general do Exército Richard Fernandez Nunes, alegou ter recebido informações de inteligência antes de nomear o delegado Rivaldo Barbosa para a chefia da Polícia Civil do Rio. Barbosa hoje está preso, acusado de ser um dos arquitetos do crime.
Segundo Nunes, a “subsecretaria de inteligência [do Rio de Janeiro] contraindicou” a nomeação de Barbosa em março de 2018. De acordo com a investigação da PF, a escolha do delegado para o cargo seria fruto da influência política à época do PMDB e de Domingos Brazão, acusado pela PF de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle e Anderson.
Perguntado sobre a disponibilidade das informações citadas em depoimento do general, o GSI disse que tais documentos “não se acham no legado” da intervenção sob sua tutela. Já o governo do Rio de Janeiro afirmou que “não há nada em nosso sistema referente aos citados documentos” e especulou que, “se tais documentos foram produzidos, provavelmente não foram feitos formalmente”.
A Pública apurou que a contraindicação ao nome de Rivaldo Barbosa teria partido do subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro à época, o delegado federal Fábio Galvão da Silva Rêgo.
Galvão comandava a inteligência do estado havia sete anos. Mas ele não ficou por muito tempo na intervenção após o episódio, saindo em agosto de 2018. Como relatado pelo portal G1, um dos principais motivos de sua saída teria sido a nomeação de Rivaldo Barbosa, mesmo após a contraindicação feita pela inteligência.
À Pública, o general Richard Nunes disse ter visto a acusação da PF contra o delegado Rivaldo Barbosa no caso Marielle e Anderson “com perplexidade”. “Foi uma nomeação muito bem recebida pelos diversos segmentos da sociedade, até pelo prestígio devido ao cargo que ocupava, como chefe da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio”, afirmou ainda. Já Fábio Galvão disse que “não poderia comentar” o caso.