No dia 27 de março deste ano, o governo do estado de São Paulo anunciou um concurso para selecionar o projeto arquitetônico da construção do novo centro administrativo na região dos Campos Elíseos, centro da capital paulista. O projeto, chamado de Centro Administrativo Campos Elíseos, vai substituir a atual sede do governo, que fica no Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, um dos bairros mais caros da cidade.
O novo centro será construído por meio de uma parceria público-privada (PPP). Segundo informações do site do governo estadual, o custo será de cerca de R$ 4 bilhões.
A mudança da sede governamental é uma promessa de campanha do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e deve transformar o entorno da praça Princesa Isabel em uma esplanada com prédios que vão centralizar o poder administrativo. Uma das justificativas para a mudança é que a nova sede vai aumentar a circulação e ocupação na região, conhecida como “Cracolândia”, e ajudaria a “revitalizar” o centro da cidade.
Mas, segundo levantamento feito pelo LabCidade, metade dos órgãos governamentais que estão na capital e seriam transferidos com a mudança já está no centro da cidade. “Dessa metade, 21 estão no centro histórico, principalmente na área do Triângulo Histórico de São Paulo, ocupando prédios”, diz Raquel Rolnik, professora, urbanista e coordenadora do LabCidade.
No artigo publicado no dia 10 de junho, Rolnik diz que o projeto é uma falácia, já que, para além dos 27 órgãos governamentais já presentes do centro, outros não irão mudar de lugar, como o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), localizados na Universidade de São Paulo (USP). Ela pontua que o coordenador do plano de PPP do projeto, Afif Domingos, garantiu que pelo menos quatro órgãos continuarão no Morumbi: o gabinete e a moradia do governador, a Casa Civil e a Militar e a Secretaria de Comunicação.
Por que isso importa?
- A mudança dos prédios do governo estadual irá afetar uma região já bastante vulnerável na capital paulista, a Cracolândia, alvo de operações policiais, sujeita ao tráfico e organizações criminosas e com uma grande população vivendo na rua.
- A área pode passar por processos de gentrificação com expulsão de moradores que não consigam arcar com os novos custos de aluguel e serviços.
Na entrevista para a Agência Pública, a urbanista diz que a mudança vai aumentar um problema que o centro de São Paulo já enfrenta: prédios abandonados. “Eles vão sair de lá [Triângulo Histórico] para os Campos Elíseos, deixando estes prédios vazios e, portanto, gerando um problema que é uma das questões que sempre estão colocadas no centro, sobre por que é importante ter investimentos e projetos no centro, foi a própria existência de prédios vazios e subutilizados. Então nós vamos produzir 21 prédios vazios e subutilizados”, explica.
A Pública procurou o governo de São Paulo e questionou quais são as etapas do processo e se existe algum plano que contemple as pessoas que serão desabrigadas. Em resposta, o governo disse apenas que o projeto está na fase do concurso arquitetônico, que já conta com 50 inscrições. Sobre os imóveis desapropriados, a assessoria respondeu um decreto foi editado com validade de 5 anos para que sejam feitas avaliações técnicas e financeiras sobre os imóveis em que o complexo será construído. Através disso, serão calculados os valores para indenizar os proprietários.
A Pública questionou o governo sobre como a mudança pode aumentar o problema de prédios vazios na cidade, que não respondeu sobre isso. A reportagem também perguntou quais órgãos não estão incluídos na mudança, o que vai acontecer com os edifícios que serão deixados e se o governo vai alterar a estrutura arquitetônica do Campos Elíseos, mas não obteve resposta sobre esses questionamentos.
A reportagem também procurou a prefeitura da cidade de São Paulo sobre o papel do município na mudança, se algum órgão municipal foi consultado e quais os planos para o Terminal Princesa Isabel, que fica na região. A prefeitura respondeu que enviou à Câmara Municipal, em abril deste ano, um projeto de lei que transfere para a gestão estadual a posse do Parque Princesa Isabel e todo o complexo que abriga o terminal de ônibus. A prefeitura também disse que o projeto foi apresentado ao Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) no dia de 29 de abril e que o órgão aguarda o recebimento das propostas definitivas para realizar os estudos necessários.
Leia a entrevista completa.
Recentemente saíram várias matérias sobre os prós e contras da mudança do governo do estado para o centro de São Paulo e seu artigo trouxe um outro olhar. Pode falar mais sobre isso?
Uma das primeiras questões é justamente essa, uma falácia. Porque você lança a ideia de que vai ser superlegal, porque finalmente todos os órgãos do estado estarão no centro e não vão mais estar no Morumbi, que é tão longe da população. Isso é lançado com essa justificativa, mas entre os órgãos que fazem parte do governo do estado, que estão na capital e não estão no interior, metade está no centro. Dessa metade, que é 27, 21 estão no centro histórico, principalmente na área do Triângulo Histórico de São Paulo, ocupando prédios.
Ou seja, eles vão sair de lá para ir para os Campos Elíseos, deixando estes prédios [no Triângulo Histórico] vazios. E, portanto, gerando um problema. Então nós vamos produzir 21 prédios vazios e subutilizados.
A outra dimensão é que ele vai destruir um pedaço dos Campos Elíseos, cinco quadras, para fazer uma grande esplanada com edifícios administrativos novos. Na verdade, você não precisava destruir, você pode trazer [os órgãos do governo] para edifícios que estão vazios, subutilizados, ocupando, reformando.
De qualquer maneira, caminhando hoje no centro histórico, tem ruas ali que parecem o Poupatempo. Você tem um prédio do lado do outro com algum serviço público municipal, estadual ou judiciário, é excelente.
Então, na destruição dessas quadras nós estamos destruindo não só o patrimônio arquitetônico urbanístico de um dos bairros mais antigos de São Paulo, do século XIX, como nós estamos também deixando pelo menos 800 pessoas sem casa. Uma das questões fundamentais colocadas no centro hoje é a quantidade de gente morando na rua e precariamente em ocupações, que não serão de forma nenhuma atendidas por essa proposta. Uma população que vive na rua ou vive precariamente em pensões, cortiços e ocupações.
No fim, você vai produzir mais problemas do que soluções, se você considerar quais são os problemas do centro. É essa a questão central. Fora toda história que não tem sentido nenhum fazer um concurso para um projeto que já está pronto. Você olha o edital do concurso, o projeto está pronto. É a destruição de cinco quadras fazendo uma esplanada. O plano urbano está pronto.
Então você acha que os principais problemas seriam estes: a destruição arquitetônica do próprio bairro e a produção de prédios vazios?
Produção de prédios vazios, destruição do bairro e produção de sem-teto. Tudo que a gente não precisa nesse momento. Porque nós temos uma emergência habitacional na cidade de São Paulo. Então, em vez de melhorar as condições de quem vive ali, não, vamos acabar com o acesso à moradia para essas pessoas.
Eles [o governo] falam “não, mas serão atendidos numa PPP”. A experiência que nós vimos da PPP Casa Paulista, que foi implementada lá mesmo no bairro [Campos Elíseos], que também destruiu. Essa PPP não acolheu as pessoas que foram removidas porque os lugares onde elas moravam foram destruídos. Elas receberam auxílio aluguel, estão até hoje pagando quarto de quinta categoria de cortiço, de pensão com esse auxílio aluguel, morando precariamente. Está certo? [Elas] não tiveram acesso à PPP, porque a PPP é para uma renda maior, pra gente que tem condição de pegar financiamento. Não é essa característica dessas pessoas.
Então é como se os resultados dessa mudança fossem totalmente no caminho contrário do que eles estão prometendo?
Exatamente. É mentira. E por que essa mentira? Aí é preciso entender, porque você lança como se fosse uma coisa, mas é outra.
O Palácio do Morumbi só tem seis órgãos. Li em uma entrevista com o Afif Domingos, que é quem está coordenando esse projeto, que disse que eles não vão sair de lá.
É a captura desse território para produzir um negócio, um negócio imobiliário, que vai construir torres de vidro em plena mudança climática, destruir um território para construir de um jeito como sempre se fez, e abrindo uma frente de expansão imobiliária no Campos Elíseos.
Se você for analisar, nós temos um material no LabCidade, uma leitura da dinâmica imobiliária do centro, está rolando um enorme movimento na área central. Tem um pedaço onde esse boom não penetrou, por várias razões, que é justamente o Campos Elíseos e Santa Efigênia. E que tem vários projetos, desde os anos 1990, para tentar fazer um chamariz para trazer um mercado imobiliário, para trazer a classe média, trazer essa transformação urbanística de mercado para lá, o que não rolou até agora.
Então, a solução final é destruir tudo, arrancar tudo, botar ali um chamariz, que é esse centro administrativo, para, finalmente, o mercado corporativo entrar nesse local. E, ainda por cima, desvalorizado, porque a Cracolândia a tudo desvaloriza. Então as compensações das desapropriações daqueles que são proprietários vão lá para baixo, [o governo] vai pagar baratinho para os proprietários e expulsar os não proprietários, sem nenhum tipo de compensação nem atendimento.
Isso vai valorizar enormemente com a chamada “rent-gap”. Vai ser esse diferencial de renda que vai ser obtido com esse projeto. Exemplo clássico de gentrificação conduzida por projeto estatal.
Então essa ida para o centro seria uma forma de aumentar a especulação imobiliária na região?
Evidentemente. É uma estratégia de criação, de geração de uma nova fronteira de expansão imobiliária.
Além dessa justificativa que o governo está dando, de que é uma forma de ocupar a área da Cracolândia, o que você acha que o governo ganharia levando esses órgãos para o centro?
Segundo eles, eles vão economizar o pagamento de aluguel de prédios onde as secretarias e os órgãos ocupam hoje. Aluguel e condomínio. Vão reduzir metro quadrado por funcionário, do que é hoje. Então vai ser uma economia, mas o custo de fazer tudo isso é R$ 4 bilhões. Isso é um enorme custo. Esse argumento, também, me parece absolutamente falacioso. Quanto custa o aluguel? Quanto eles gastam de aluguel que eles vão deixar de gastar tirando os 21 órgãos que estão no centro, para levar para lá?
E mais alguns, porque tem alguns que não estão no centro. Eu falei desses que estão no centro, falei do Morumbi, mas têm 27 fora, desses, seis estão no Morumbi. Precisava fazer uma conta. A gente fez esse levantamento, para ver quem está em cada prédio, quanto custa, qual é o preço do aluguel, qual é a tal da econômica.
Pelos artigos que vocês lançaram, uma das reclamações é da falta de transparência nesse movimento, certo?
Completa. Esse projeto foi desenvolvido pela CPP, Companhia Paulista de Parcerias, que não é exatamente um órgão de desenvolvimento de projetos urbanos, não tem nenhuma competência para isso, contratando a Fipe [Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas]. Então ele foi desenvolvido em cima de uma modelagem econômica, que serve para ver que modelo levaria a maior rentabilidade para o investidor. Esse é o modelo.
Só que você não tem acesso a nada disso para ver exatamente qual é esse cálculo, a Fipe assinou cláusula de confidencialidade com o governo do estado.
No seu artigo, você fala muito sobre essa falácia, por conta da maioria dos órgãos já estar na região central. Então você acha que essa mudança também estaria superfaturada? Esses bilhões que serão gastos, você acha que não precisaria de tudo isso?
Não se justifica. Não se justifica. Tem uma questão também de custo. Não estamos tão preocupados com gasto público? Cadê o pessoal do gasto público para reclamar desses R$ 4 bilhões?
Qual o papel da prefeitura nessa mudança?
É um absurdo. Um projeto urbanístico feito no município de São Paulo que não passou por nenhuma instância da prefeitura, nem da Câmara Municipal, não foi desenvolvido a partir dessas contribuições.
No mais, o município está completamente omisso e deixa de se manifestar numa coisa que, inclusive, deveria ser debatida e aprovada no Conpresp [Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo], órgão de patrimônio histórico do município.
Na sua opinião, a mudança dos órgãos públicos para o centro pode ter algum papel na revitalização da região ou pode piorar a situação?
Eu acho que é bem importante a gente entender que essa é uma região que está precisando de investimentos públicos, cuidado, carinho, ação social. Não há a menor dúvida. Mas a discussão é qual é o projeto, qual é o plano que melhor atenderia às questões que estão colocadas na região. Essa é a pergunta.
Do meu ponto de vista, isso é uma coisa que tem que ser construída com quem está na região, em diálogo. E hoje, claramente, a gente tem um problema complexo de moradia, de saúde mental e drogadição, de patrimônio histórico abandonado. E me parece que a opção de destruição e eliminação desses corpos, eliminação desses edifícios, eliminação daquilo que é o problema, parece que não é a melhor abordagem.
Sim, precisamos de um plano, sim, precisamos de uma proposta de reabilitação, mas, claramente, não é essa.