No dia 1º de janeiro de 2025, pelo menos 1.641 prefeitos no Brasil vão tomar posse em cidades que têm risco de impacto alto ou muito alto para desastres relacionados a chuvas, como deslizamentos de terra e/ou inundações, enxurradas e alagamentos. Elas representam quase 1 a cada 3 municípios do país e 50% da população. Entre essas cidades, 907 têm risco de impacto elevado para os dois tipos de desastres. É o caso de capitais como Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, Natal, Maceió, Macapá e Manaus.
O agravamento das mudanças climáticas impõe aos novos mandatários um desafio extra de gestão. A forma como planejam administrar suas cidades nos próximos quatro anos vai tornar seus habitantes mais ou menos vulneráveis ou resilientes diante da ocorrência de eventos extremos, que têm se tornando mais comuns e intensos em todo o mundo.
Os dados foram compilados pela Agência Pública na plataforma AdaptaBrasil, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que reúne informações sobre diversos riscos de impacto das mudanças do clima para cada um dos 5.570 municípios do país. O objetivo é revelar as fragilidades a fim de orientar ações de adaptação nas cidades.
Por que isso importa?
- É nas cidades que a crise climática chega primeiro e são os prefeitos os que primeiro atendem às emergências.
- Sem planejamento para aumentar a resiliência dos municípios, as populações tendem a ficar mais vulneráveis ao aumento de eventos como as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul neste ano.
A plataforma considera, além dos dois tipos de desastres geo- hidrológicos (deslizamentos e inundações, enxurradas e alagamentos), os riscos de impacto de seca e de doenças e também os riscos às seguranças alimentar e energética e às infraestruturas portuária, rodoviária e ferroviária.
A análise estabelece um índice para cada um desses riscos, que vai do muito baixo ao muito alto, a partir de um cálculo que considera uma combinação de três fatores principais: quanto cada cidade está ameaçada pela mudança do clima (se vai chover mais ou menos, por exemplo); quanto ela está vulnerável a essa ameaça (ou seja, se a cidade é muito sensível ao problema ou se tem condições de lidar com aquilo); e quanto está exposta (se tem pessoas em moradia de risco e em alta densidade demográfica).
Isso é importante porque quanto uma cidade pode sofrer diante de um evento não depende apenas da intensidade dele. Dois municípios – ou dois bairros dentro de uma mesma cidade – podem ser atingidos por um mesmo volume de chuva, mas ter uma quantidade de danos ou vítimas completamente diferente porque são mais ou menos vulneráveis ao desastre.
Essa análise tem tudo a ver com as eleições e com os desafios dos novos prefeitos, apontam especialistas ouvidos pela Pública. É nas cidades que o desastre climático primeiro se instala. São os prefeitos, os gestores locais, os primeiros a ter de atender às emergências. Mas são também eles que podem adotar medidas que, se não vão evitar que uma chuva forte aconteça, por exemplo, ao menos conseguem reduzir seu impacto e salvar vidas.
Manter a adoção de velhas práticas que não levem em conta esses riscos, por outro lado, como canalizar rios, impermeabilizar as cidades, reduzindo as áreas verdes, permitir a ocupação de áreas sem oferecer nenhuma infraestrutura, pode agravar ainda mais esse cenário.
“A mudança do clima acontece no território, mas as políticas climáticas ainda estão acontecendo nos níveis globais, nacionais, setoriais. Ainda falta trazer o tema de clima para os municípios”, aponta Ana Toni, secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente.
Ela vem liderando a construção do Plano Clima, pensado para guiar a política climática brasileira até 2035 a partir de dois pilares: uma estratégia para reduzir as emissões de gases de efeito estufa do país; e uma estratégia de adaptação, para diminuir a vulnerabilidade de cidades e ambientes naturais às mudanças do clima.
Trabalhando em contato direto com gestores municipais nesse processo, ela diz sentir que ainda falta preparação para os prefeitos em relação a essa agenda. “Cabe aos prefeitos fazer adaptação, prevenção e preparação para desastres. Cabe também fazer mitigação, porque toda a área de mobilidade urbana está na mão do prefeito, assim como a de resíduos. Essa é a agenda que deveria ser abraçada pelos futuros prefeitos e prefeitas. Mas o que a gente vê é uma falta de preparação deles”, afirma a secretária.
Ela argumenta que ainda não existe uma cultura de fazer políticas que talvez possam vir a beneficiar o prefeito do futuro. “Pensa-se muito em programas e projetos que tenham efeitos mais rápidos: ‘vou construir uma escola’. Mas, se a escola vai ser inundada daqui 8 anos ou 10 anos não é mais a responsabilidade daquele prefeito que construiu a escola. Acho que ainda não há incentivos para que o prefeito faça construções resilientes”, diz.
Uma das ideias do Plano Clima é orientar os governos locais nesse sentido, para que eles construam seus planos de adaptação.
Não é só a chuva forte que faz um desastre
“Não estamos aqui falando se há ou não o risco de existir um desastre, mas do risco do impacto que esse desastre pode causar, o que é muito diferente”, explica Jean Ometto, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador científico do AdaptaBrasil. “Estamos falando que, se acontecer um deslizamento ou uma inundação, o impacto é maior ou menor dependendo da vulnerabilidade e da exposição daquela população”, diz.
O fator vulnerabilidade considera quão sensível é um determinado lugar a ser alterado diante do desastre (deslizar, inundar, por exemplo) e se ele tem a chamada capacidade adaptativa – que é quanto as cidades estão preparadas para responder ao desastre.
Esse é um dos fatores de maior fragilidade no país. As cidades simplesmente não estão preparadas: de acordo com o AdaptaBrasil, 66% do total de municípios do Brasil (3.679) possuem capacidade adaptativa baixa ou muito baixa para deslizamentos de terra. Quando se observa a situação para inundações, enxurradas e alagamentos, o número é ligeiramente maior, com 3.739 cidades com capacidade adaptativa baixa ou muito baixa para enfrentar esse tipo de desastre.
Outras informações que compõem o índice de vulnerabilidade tratam da governança e a gestão do risco nas cidades, fator diretamente relacionado com a condução de políticas públicas na esfera municipal. Quatro a cada cinco cidades brasileiras (83%), ou 4.634 municípios, possuem gestão de risco baixa ou muito baixa para deslizamentos de terra. Tratando de inundações, enxurradas e alagamentos, são 4.374 cidades (78% do total) com gestão de risco baixa ou muito baixa.
A plataforma também agrega informações específicas sobre a existência ou não de sistemas de alerta antecipado para os desastres: apenas 1.072 cidades, ou uma a cada cinco no país (19%), possuem essa ferramenta para enfrentar deslizamentos de terra e 1.178 municípios operam alertas para inundações, enxurradas e alagamentos.
Terceiro fato que compõe o risco de impacto, a exposição leva em conta a presença de pessoas, moradias e infraestrutura nesses locais sujeitos a deslizamento ou inundação, por exemplo. “Um morro pode deslizar em uma chuva, mas, se não tiver casa ali, não há exposição”, explica Ometto.
São 1.130 municípios com índice de exposição alto e muito alto para inundações e 1.069 para deslizamento. O pesquisador cita como exemplo São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, que em fevereiro de 2023 foi atingido por fortes chuvas e 64 pessoas morreram. As vítimas estavam todas nos locais de alta vulnerabilidade e exposição (ocupando os morros, por exemplo). Já nos bairros mais seguros, houve impactos, mas infinitamente menos graves.
No Rio Grande do Sul, a cidade de Lajeado, severamente impactada por inundações no desastre que atingiu o estado entre abril e maio, por outro lado, até tem uma capacidade adaptativa alta, mas a gestão de ocupação urbana em áreas de risco é muito baixa. Somando isso à alta exposição e à ameaça climática muito alta, o risco da cidade aumentou.
Ometto alerta que a crise climática combinada com uma quase total ausência de atenção para a vulnerabilidade das cidades tem deixado cada vez mais brasileiros em risco de eventos como a tragédia do Rio Grande do Sul e as queimadas recentes no Pantanal e na Amazônia.
“Isso a gente pode falar sem dúvida nenhuma. Não só porque a população do país aumentou, mas porque não teve um Plano Diretor, não teve um ordenamento territorial nos últimos 20 anos no Brasil que considerou a mudança de clima. A gente pode até ter um ou outro plano municipal de adaptação, plano municipal de mudança climática, mas em que isso refletiu em um bom ordenamento territorial? Muito pouco”, afirma.
O arquiteto Leonardo Musumeci, diretor-executivo adjunto do Instituto de Arquitetos do Brasil, que implantou um grupo de trabalho chamado Clima e Cidade, concorda. “O risco não vem da natureza, o risco vem de uma ação humana de produção do ambiente e da paisagem. Isso quer dizer que não é a natureza que coloca a situação de risco, mas que, na verdade, o modo de produção e ocupação das nossas cidades produz uma aliança perversa entre a desproteção social e a suscetibilidade ambiental.”
Na cultura de planejamento brasileira, pontua Musumeci, os planos de gestão de risco costumam descer de nível do federal para o estadual e o municipal. “Mas ninguém pode conhecer melhor o seu território do que o próprio município. Mas, para isso, é preciso a realização de diagnósticos locais sobre as situações de risco. É o primeiro passo: conhecer a condição e a dimensão desse risco. É a base para os planos de gerenciamento de risco, que depois serão incorporados em outras legislações, como o Plano Diretor e a Lei de Uso de Ocupação do Solo”, diz.
“É competência do município que a Defesa Civil mobilize as pessoas para reconhecerem sua situação de risco e faça diagnósticos participativos, com o envolvimento da população para criar um senso de comunidade para a prevenção do risco. A responsabilidade de evitar que o risco se transforme em um desastre é das prefeituras”, defende o arquiteto.
Ometto reforça que é crítico que os novos prefeitos incorporem no planejamento urbano a variante de que o clima agora é diferente do que a gente vivenciou no passado. “A chance é muito grande de que eles vão ter de enfrentar essas situações e, para isso, eles têm que olhar o quão vulneráveis estão suas populações e quais são as medidas para que essa vulnerabilidade diminua, para que a capacidade adaptativa aumente”, comenta.
Nesse sentido, as ações a serem adotadas não dependem apenas de grandes obras ou de remoções de comunidades em área de risco, por exemplo – apesar de às vezes isso ser, sim, necessário. Mas é preciso se valer também de outras estratégias que diminuam a vulnerabilidade.
Muito se fala de sistemas de alertas, que são fundamentais na hora de evacuar um local sob ameaça iminente, mas é preciso investir também em educação para que essas pessoas saibam como agir nesse momento. É preciso ter áreas de refúgio para elas irem. Mobilidade urbana para que elas possam se deslocar. Além, claro, de investir nas chamadas soluções baseadas na natureza, como melhorar a arborização e a drenagem, criando a estrutura que acabou ficando bastante difundida após a tragédia de maio do Rio Grande do Sul, de cidades-esponja.
Plano nacional visa colocar em emergência cidades que já sofreram com desastres
Apesar da necessidade clara de os prefeitos colocarem a questão climática como central na sua gestão, os especialistas ouvidos pela reportagem lembram que os esforços para lidar com essa crise não se darão à base do cada um por si e dependem, também, das outras instâncias de governo, principalmente por causa da necessidade de recursos.
Desde o início do ano passado, o governo federal trabalha em um plano de prevenção e enfrentamento dos eventos climáticos extremos que considera um outro indicador: uma lista de 1.942 municípios, onde vivem 73% da população do país, que já foram impactados com desastres relacionados a chuvas, mortes e desalojamentos em decorrência desses eventos no período de 1991 a 2022.
Pouco mais da metade dessas cidades conta com monitoramento diário do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão que colaborou com o levantamento.
“Seria muito importante que, para a elaboração das suas propostas, dos seus planos de governo, cada candidato já olhasse: a sua cidade está na lista das 1942 cidades com maior risco? Se está, qual é a tipologia de desastres que afeta a cidade? Tem mapeamento ou não tem mapeamento das áreas de risco? Tem alguma avaliação sobre o quantitativo de pessoas que vivem em risco na minha cidade?”, afirma Regina Alvalá, diretora do Cemaden.
“Quem está mais próximo da população é o [gestor do] município. São essas pessoas que precisam estar prontamente preparadas para auxiliar a população, criar rotas de fuga e treinar profissionais”, complementa. “Se no seu município você começar a desmatar, a tirar a vegetação que protege as margens dos rios, os topos de morros, a sua cidade, que não tinha risco, pode passar a ter. Então, se a cidade já está na lista, tem de entender o que é preciso priorizar. Se não está, entender quais as singularidades da cidade e ficar atento para os riscos que podem surgir no futuro.”
A lista consta de uma nota técnica da Casa Civil finalizada em outubro do ano passado para orientar, entre outras ações, a escolha das cidades a receberem recursos do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Já considerando que as obras têm de ser feitas com o critério “prevenção de riscos”, com contenção de encostas, sistema de macrodrenagem, barragens de regularização de vazões e controle de cheias, por exemplo.
A ideia da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, é, a partir desse levantamento, elaborar uma ação contínua de prevenção de desastres nas cidades mais vulneráveis, uma espécie de “UTI climática”, como ela tem dito.
Uma pré-proposta nesse sentido foi elaborada conjuntamente pelo MMA com os ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR), das Cidades e da Fazenda para a criação de uma estratégia de enfrentamento à emergência climática com o objetivo de aperfeiçoar a gestão de risco e incluir medidas antecipatórias.
Em junho, essa proposta inicial chegou a ser apresentada à Casa Civil e ao presidente Lula, mas ainda não avançou. Segundo Ana Toni, reuniões semanais têm sido feitas para aprimorar o projeto, mas ainda não há previsão de entrega.