Buscar
Coluna

Como está a regulação de inteligência artificial na América Latina?

Projetos de regulação de IA foram apresentados no Brasil, Argentina, Colômbia, Costa Rica, Chile, México e Uruguai

Coluna
20 de agosto de 2024
06:00
Ouça Natalia Viana

Natalia Viana

20 de agosto de 2024 · Projetos de regulação de IA foram apresentados no Brasil, Argentina, Colômbia, Costa Rica, Chile, México e Uruguai

0:00

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.

Os cães ladram, a caravana passa. Hoje vou mentalizar esse mantra pra ignorar, aqui neste espaço de comentário, a jogada suja de Elon Musk ao anunciar o “fechamento” de seu escritório no Brasil porque o Supremo Tribunal Federal (STF) enviou um comunicado dizendo que haverá sanções se ele não cumprir ordens judiciais. Arrumou uma desculpa para demitir os poucos gatos-pingados que restavam da operação por aqui e ainda conseguiu vociferar contra a “censura” do STF, animando as redes bolsonaristas e a narrativa de que qualquer tentativa de impor limites legais para as plataformas bilionárias é censura. 

Entretanto, a caravana passa, a história avança, e é disso que vou tratar hoje. Mais especificamente, na América Latina avançam iniciativas para regular o uso e o desenvolvimento de inteligência artificial (IA), segundo um relatório da organização Access Now. Além do Brasil, projetos de lei nesse sentido foram apresentados na Argentina, Colômbia, Costa Rica, Chile, México e Uruguai. A maioria delas segue as linhas gerais da Lei de IA da União Europeia, que estabelece que a segurança no desenvolvimento e uso dessa tecnologia deve se sobrepor às oportunidades econômicas. Outras, como a da Argentina sob o governo de Milei, vão no sentido oposto – chegaremos lá. 

Um exemplo de legislação que segue a linha mestra definida pela legislação europeia é a que foi proposta pelo governo de Gabriel Boric, do Chile, em 7 de maio deste ano. A abordagem se baseia nos riscos aos direitos fundamentais causados por diferentes ferramentas. Seriam riscos inaceitáveis aqueles que são incompatíveis com o respeito e garantia dos direitos fundamentais – e, portanto, sua comercialização é proibida. Exemplos: criação de deepfakes com conteúdo sexual e identificação biométrica em tempo real, exceto para fins de segurança pública. De alto risco seriam as ferramentas que podem afetar negativamente, além dos direitos fundamentais, a saúde, a segurança ou o meio ambiente, e portanto essas ferramentas devem ser aprovadas para uso. Por exemplo, o uso da IA em processos seletivos para vagas de emprego. A categoria de “risco limitado” teria fiscalização mais branda. Inclui chatbots. As demais, sem risco evidente, podem ser desenvolvidas e comercializadas livremente. 

Para fiscalizar e cumprir a legislação, o governo de Boric propõe criar uma Agência de Proteção de Dados Pessoais, responsável por monitorar ativa e passivamente a indústria – qualquer pessoa poderia informar à agência se identificar um incidente grave, que por sua vez exigirá do operador uma “resposta frente às respectivas contingências”. As infrações podem ser gravíssimas, graves e leves e levar a multas de até US$ 1,5 milhão. 

Na Argentina, por sua vez, o governo de Javier Milei decidiu jogar fora um projeto de lei que estava em discussão e apresentar outro, cujo foco é tornar o país “um dos quatro polos de inteligência artificial do mundo”, segundo afirmou Milei. Poucos meses antes, o ultradireitista havia feito uma viagem de Estado para o Vale do Silício, onde teve reuniões com executivos da Apple, Google, Meta e OpenAI. 

Milei e seu assessor especial Demián Reide, um entusiasta da tecnologia e do Estado mínimo, acreditam que a Argentina tem vantagens perante o que chamam de “outros três” polos – EUA, China e Europa –, já que, para eles, no primeiro a situação regulatória segue nebulosa, enquanto na China e na Europa o Estado regula em excesso o uso de inteligência artificial. 

“A Europa é paladina da sobrerregulação”, disse Milei. “Mataram a inovação.” Como se um fosse oposto ao outro, falácia que é a cara de tipos como Elon Musk. 

Vai nesse sentido a lei proposta, cujo texto vago estabelece, em vez de deveres para os diferentes atores da cadeia de IA, apenas requerimentos genéricos de transparência e explicabilidade, segurança, garantias dos direitos humanos e respeito ao Estado democrático de direito, entre outros. Em vez de criar uma autoridade reguladora, cria um Conselho Consultivo de IA sem nenhum poder de fato: sua missão seria “elaborar planos de prevenção de possíveis perigos em inovações tecnológicas, emitir recomendações não vinculantes e estimular as boas práticas algorítmicas em inovações”. Todas as determinações sobre riscos, protocolos de transparência, rastreabilidade e mecanismos de segurança caberão a essa autoridade oca. 

Finalmente, grande parte do texto é dedicada à criação de uma política de incentivo ao desenvolvimento de IA na Argentina. 

É um passo além do que já estabelecia outra lei, o Regime de Incentivos para Grandes Investimentos, aprovado em 13 de junho, que incluiu o setor de alta tecnologia entre aqueles que receberão incentivos fiscais e de câmbio para investimentos acima de US$ 200 milhões.

Milei garante que a Argentina é o lugar perfeito para ser o paraíso da inteligência artificial. Milei destaca aquilo que já sabemos: como o resto da América do Sul, o país teria as condições ideais para – como adivinhou o leitor – grandes datacenters. Milei quer atrair as Big Techs para construírem seus centros de dados no sul do país. “A ideia é criar o quarto polo de IA na Argentina… basicamente é que sejam instaladas as plantas nas quais os algoritmos aprendem… para isso, é fundamental grandes extensões de terra, baixas temperaturas, acesso a muita energia e capital humano…”, explicou pelo Twitter. 

A iniciativa foi aplaudida pelo jornal conservador Clarín, que manchetou que a regulação excessiva “pode ir contra a Argentina ser um polo global” e afirmou que a lei europeia é um “antiexemplo”. 

Em apoio ao projeto de lei, a Argencon, um grupo da indústria que inclui empresas de internet, entre elas a Amazon, Accenture, Mercado Livre, Microsoft e IBM, apoiou a ideia de uma regulação mínima, sugerindo que as leis devem “incentivar a inovação e a criação de novas soluções de IA” e evitar “restrições que possam desacelerar seu desenvolvimento”, além de “formatos regulatórios rígidos, com carga burocrática excessiva e disfuncionais no que diz respeito à dinâmica de inovação destas tecnologias”.

“A diversidade de usos impossibilita a determinação de regulamentações gerais”, garante a agremiação. 

O leitor que segue semanalmente esta coluna vai encontrar ecos da carta da CNI editada especificamente para suspender a votação do projeto de Lei de IA aqui no Brasil.

Também, como no caso brasileiro, basta ler nas entrelinhas quem vai ganhar com esse tipo de proposta – as empresas multinacionais e multibilionárias, e não nós, pobres latino-americanos.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Aviso

Este é um conteúdo exclusivo da Agência Pública e não pode ser republicado.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes