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Falsas acusações de crimes tentam descredibilizar Guarani-Kaiowá em processo de retomada marcado por tensão e violência

Reportagem
19 de agosto de 2024
10:00

Um indígena assistia indignado a um vídeo, enquanto dizia algumas palavras em guarani. Ao me ver, disse, em português: “Como pode falar tanto absurdo?”. Ele ouvia o deputado federal Marcos Pollon (PL-MS) mentir ao afirmar que Mato Grosso do Sul vive “uma onda de invasão de propriedade privada, especialmente propriedades rurais, onde supostos indígenas estão atacando proprietários rurais, invadindo fazendas e destruindo, pondo fogo, atirando, ameaçando, estuprando mulheres, matando crianças e cometendo uma série de crimes”, enquanto comentava sobre a recente retomada protagonizada desde 13 de julho pelos Guarani-Kaiowá, em Douradina, a 192 km de Campo Grande. 

Acusações falsas como essas contra os indígenas da Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica têm sido recorrentes e os colocam em risco. Os vídeos incitam a população a reagir contra as comunidades, mesmo sem apresentar provas dos supostos crimes. A desinformação alimenta movimentos ideológicos que têm atuado para promover despejos ilegais, como o movimento Invasão Zero, citado com recorrência por produtores rurais e políticos do estado. Fundado por produtores rurais da Bahia, o Invasão Zero é acusado por indígenas de atuar como uma organização criminosa e incitar crimes, e já está sendo investigado pela Polícia Federal.

Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os ataques ocorridos nos dias 3 e 4 de agosto na TI Panambi-Lagoa Rica, que deixaram 11 Guarani-Kaiowá feridos, foram motivados por desinformação. Na ocasião, corria a informação de que os indígenas haviam retomado mais áreas, além das sete que já existem dentro do limite dos 12.196 hectares delimitados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Apesar de uma representante do órgão federal afirmar, após ir ao local, que a informação era falsa, de nada adiantou. A mentira já tinha se espalhado.

“Autorreintegrações” forçadas não são episódios isolados ou aleatórios no estado, mas constituem um quadro mais amplo no qual milícias armadas rurais têm sido organizadas pelos proprietários rurais e efetivamente empregadas para promover ataques a grupos indígenas. É o que indica o documento “Crimes contra a humanidade no Mato Grosso do Sul: ataques armados, assassinatos e atos desumanos contra os Guarani e Kaiowá”, do Ministério Público Federal (MPF), ao qual a Agência Pública teve acesso. 

O documento, elaborado em 2021, se baseia em evidências de ataques armados contra as comunidades Guarani e Kaiowá ocorridos entre 2000 e 2016. Ele conclui que os crimes não são isolados, mas interligados, configurando um ataque generalizado e sistemático conduzido por grupos que seguem uma política organizacional discriminatória. 

As investigações revelam que, em muitos casos, os mandantes dos ataques são os donos de fazendas locais que se associam. Esses fazendeiros frequentemente contam com o apoio do poder político e contratam terceiros para formar milícias rurais com o objetivo de expulsar os indígenas. Na maioria dos casos, verifica-se a existência de uma rede de proteção que opera localmente por meio de federações e sindicatos rurais de fazendeiros. Esses espaços são utilizados para discutir e planejar ataques.

O deputado federal Marcos Pollon não apresentou provas quanto às acusações proferidas contra os Guarani-Kaiowá. Procurado pela Pública, Pollon também não se manifestou sobre onde obteve a informação de que os indígenas estavam avançando sobre as terras para além das retomadas que ocorreram em julho, e até mesmo sobre a afirmação que fez sobre o MPF e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) serem coniventes com o conflito fundiário.

Sem solução independentemente de governo

A realidade persiste na região, segundo a autora do documento e professora do curso de direito da Unisinos Fernanda Frizzo Bragato: “A gente tem ali um problema de interesses econômicos. O agronegócio no Mato Grosso do Sul é um ator extremamente poderoso na arena política nacional e pressiona todos os estados, de modo que, se a gente for ver, a maior parte dos ataques aconteceu durante os governos de esquerda, que nunca tiveram disposição ou poder suficiente para enfrentar o agronegócio, de modo que os Guarani e [os] Kaiowá estão totalmente desprotegidos”.

Um trecho do documento afirma que “os ataques [contra indígenas] são ultrajantes e humilhantes, pois acontecem de surpresa, contra população desarmada, composta de crianças e idosos que têm que sair correndo pelos campos e matos para se esconder dos tiros, sem poder carregar os seus pertences que, não raro, são destruídos e queimados. Muitas vezes, são espancados, carregados à força em carrocerias de caminhões e jogados em qualquer lugar, como na beira das estradas. A violação de sua dignidade enquanto pessoas e povo é absoluta”.

Para Bragato, o uso das redes sociais na organização de despejos ilegais ganhou força a partir de 2016. Naquele ano, identificou-se o uso de mensagens via WhatsApp para incitar a população contra os indígenas que haviam retomado uma área em Caarapó (MS). 

O ataque aos Guarani-Kaiowá ocorreu em 14 de junho de 2016, quando cerca de 40 caminhonetes, acompanhadas por três pás-carregadeiras e mais de cem pessoas, muitas delas encapuzadas e fortemente armadas, investiram violentamente contra a comunidade.

“A troca de mensagens por redes sociais, incitando e chamando as pessoas para se juntarem e promoverem um despejo forçado dos indígenas, já tinha acontecido em 2016, em Caarapó. Eu observei que muitas pessoas estavam engajadas apenas por motivos ideológicos, sem um interesse específico nas reintegrações ilegais ou nos ataques”, afirma Bragato.

A professora explica que o engajamento ideológico é significativo para esse tipo de movimento, porque alimenta um discurso inflamado contra os indígenas. “O potencial para incitação é elevado, especialmente porque na região já existe um racismo profundo contra os indígenas. Há uma crença predominante de que os indígenas são sub-cidadãos e um obstáculo ao desenvolvimento, com a ideia de que devolver terras a eles impediria o Mato Grosso do Sul de continuar sendo um estado altamente produtivo.”

Procurado para se manifestar sobre o conflito, o Ministério Público Federal informou apenas que o “inquérito está em andamento e as informações estão sendo apuradas para que a Procuradoria da República no Município de Dourados defina os próximos passos”.

A Defensoria Pública da União (DPU) disse à Pública que, até o presente momento, não foi informada sobre a prática de crimes praticados pelos indígenas Guarani e Kaiowá das retomadas de Panambi em Mato Grosso do Sul. A DPU afirmou também que protestos e reivindicações relacionadas à demarcação de terras, mesmo quando realizados por meio de retomadas, não configuram crime, uma vez que está ausente o dolo, já que os indígenas acreditam que aquele espaço geográfico constitui o seu território tradicional, da forma como já estabelecido em relatório circunstanciado de delimitação e identificação de terras indígenas pela Funai.

Outra Kaiowá assistia ao discurso de um político da região. Incrédula, exclamava: “Olha esse tanto de mentira”. O vídeo era de uma live do candidato a vereador de Douradina (MS) Sargento Prates (PL-MS), em que ele afirmava que os indígenas usavam foices e flechas com pontas de prego “afiadíssimas” contra produtores rurais, mas que na presença do MPF e da Sonia Guajajara – em referência à visita da ministra do MPI à retomada, no dia 6 de agosto – mostravam flechas de madeira. 

“Colocaram três cruzes ali, simbolizando a morte de três pessoas, uma delas é proprietário dessa propriedade aqui [onde está a retomada], o Cleto [Spessatto]. São os índios ameaçando a vida das pessoas”, disse Prates.

As cruzes mencionadas referem-se, na verdade, ao Chiru, varas e cruzes feitas da madeira da cabriúva-vermelha (Myroxylon peruiferum). Esses símbolos sagrados, preservados e transmitidos através das gerações, representam o soberano da cultura Guarani-Kaiowá, foram colocados na retomada – terra originária reocupada pelos Kaiowá-Yvy Ajere (Terra Redonda, em guarani) – e funcionam como proteção espiritual. Os indígenas acreditam que, se bem cuidados, esses objetos podem trazer grandes benefícios, mas, se negligenciados, podem provocar pragas e doenças.

“Os brancos querem culpar os Guarani-Kaiowá e jogar sobre eles o que na verdade eles fazem. Falam que estamos botando fogo, que estamos armados, e saem inventando um monte de coisas. Mas quem faz isso são eles. Falam que somos invasores e questionam até a nossa identidade. Fazem de tudo para nos tirar daqui, sempre usando mentiras”, me disse um Kaiowá, que pediu para não ser identificado por questões de segurança. Ele também explicou que as flechas usadas pelos Kaiowá são de madeira, sobretudo, para serem usadas na caça de animais. “Dizer que usamos pregos é mais uma mentira contra o meu povo”, frisa.

Para o coordenador do Cimi – Regional MS, Matias Benno Rempel, a desinformação é uma estratégia antiga e tem o intuito de pintar os Guarani-Kaiowá como hostis e criminosos. “Fazem isso para tentar justificar o injustificável, que seria um justiçamento, fazer pelas próprias mãos a defesa dos bons costumes, sendo que a gente sabe que não é nada disso. Na verdade, as mentiras espalhadas por políticos em nível nacional e local são um espelho perfeito para demonstrar do que é feito o agronegócio”, afirma Rempel. 

“Quem usa caminhonetes, armamentos e brutalidade para invadir território indígena e disparar contra pessoas desarmadas agora tenta usar o racismo estrutural da sociedade para angariar contra os indígenas, para pintar um quadro contra os indígenas, que é um quadro que está no imaginário racista”, completa.

Para Rempel, é preciso dizer o óbvio: “As alegações de que os povos indígenas estão cometendo graves atos de violência contra proprietários são absurdas e enganosas. Na realidade, a maioria dos indígenas são idosos, jovens, crianças e mulheres, muitos dos quais não têm condições de se defender em caso de ataque”.

Edição: | Fotógrafo:
Gabriel Schlickmann/Agência Pública
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