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Município foi o mais perigoso do Brasil em 2022; bairros periféricos ficaram debaixo d’água após enchentes recentes

Reportagem
1 de outubro de 2024
04:00

Desempregada há seis anos, Ivonildes Soares, de 44, caminha com medo, devagar, sob a quentura do sol de Jequié, município baiano a 360 km de Salvador, enquanto distribui santinhos de candidatos a vereador. Ela está na comunidade quilombola urbana do Barro Preto, que fica em área periférica do município. Ivonildes vai ganhar R$ 600 pelo mês de serviço depois que passar a eleição. Mas ela diz que a caminhada pela cidade precisa ser com “muito cuidado” e apenas durante o dia.

Quem mora mais afastado do centro tem ficado em sobressalto com a atuação de grupos ligados ao tráfico de drogas, incluindo braços do Comando Vermelho e do Primeiro Comando da Capital. Os moradores da comunidade têm ouvido sons de tiros com recorrência. Jequié se tornou uma das cidades mais perigosas do Brasil. 

Em 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Jequié era a mais perigosa do Brasil, com 88,8 mortes para cada 100 mil habitantes. Segundo o último anuário, de 2023, o município ficou em terceiro lugar nacional, com um total de 134 vítimas de mortes por assassinato no ano passado e 84,4 a cada 100 mil pessoas.

Por que isso importa?

  • Jequié foi apontada como a cidade mais violenta do Brasil em 2022 pelo Anuário Brasileiro da Segurança Pública. Em 2023, das dez cidades com mais mortes violentas do Brasil, seis estão na Bahia.
  • Pessoas negras são a maior parte das vítimas de mortes violentas causadas por policiais.

Outro agravante é que 74 desses crimes (55,2%) tiveram participação de policiais. “A gente sente que a polícia vê o cidadão na periferia como um inimigo”, lamenta uma moradora que pediu para não ser identificada. Aliás, no cenário de violência que a cidade vive, as pessoas têm receio de falar com jornalistas ou pesquisadores. 

A comunidade quilombola do Barro Preto tem 22 ruas reconhecidas como de povo remanescente, onde vivem 3.549 pessoas em cerca de 350 residências. Um problema que deixa a comunidade mais vulnerável é que apenas cerca de 20% das pessoas têm alguma ocupação profissional regular. Como a área urbana devorou o quilombo, quem trabalhava com agricultura perdeu espaço.

Tiros, medo e compra de votos

Os tiros que são ouvidos pela madrugada, o medo de sair à noite, a falta de oportunidades de trabalho e o racismo de todo dia formam um amplo cenário de violência que, segundo pesquisadores, deixam a comunidade quilombola cada vez mais vulnerável ao assédio dos políticos.

Agente comunitária de saúde há 20 anos, Manuella Ribeiro, de 41 anos, é liderança da associação de moradores do Barro Preto. Ela relata que candidatos batem de porta em porta tentando comprar votos na comunidade, mais reconhecida por ser periférica e pobre do que quilombola. “Tem candidato que vê adesivo nas casas e oferece uma cesta básica ou mesmo R$ 200 para mudar de ideia. Tem assédio eleitoral em todo lugar”, denuncia.

Foi percebendo isso que, nas últimas eleições, Ribeiro resolveu se candidatar a vereadora e tentar ser a primeira quilombola a ocupar uma das 19 vagas na Câmara Municipal. Em 2020, teve apenas 134 votos e não se elegeu. “A gente é usado como periférica, minoria, mulher. Políticos prometem tudo no período eleitoral e chamam para caminhadas. No dia seguinte da eleição, a gente não encontra eles mais. Temos tentado conscientizar a comunidade sobre isso e sobre a necessidade de se identificar como quilombola, mas muita gente tem vergonha.” Durante a pandemia, ela foi de porta em porta para tentar convencer os moradores que seria importante se identificarem como quilombolas para fazer jus à prioridade da vacina contra a covid-19.

Ribeiro diz que uma dificuldade é que, por se tratar de um quilombo urbano, as raízes também vão sendo desfeitas e a memória se perde. Um dos trabalhos é o de divulgação do que é ser quilombola em um cenário urbano. “A gente tem tentado mostrar para a população a importância de ser autodeclarado para preservar e cuidar do nosso quilombo.”

Ativista pelos direitos quilombolas e hoje universitária, Milena Silva, de 39 anos, defende que a área quilombola é muito maior do que as 22 ruas reconhecidas pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ela é uma das coordenadoras da Associação de Trabalhadoras e Trabalhadores Urbanos de Jequié.

Segundo o Incra, a comunidade Barro Preto não possui processo aberto para regularização fundiária do território. “Para a abertura do processo, a comunidade precisa encaminhar um documento ao Incra com a certidão da Fundação Cultural Palmares, acrescidas de informações que já dispõem sobre a comunidade”, explicou o órgão em nota à reportagem.

A ativista diz que o período eleitoral expõe as barganhas feitas com uma localidade carente de políticas públicas. Por isso, gestores optam, na avaliação dela, por oferecer mais serviços e investir em obras de reformas normalmente abandonadas durante o mandato. “Aqui mesmo tinham muitas ruas sem calçamento. Aí as pessoas ficam felizes porque a rua foi calçada”, exemplifica. “O nosso trabalho de conscientização é muito devagar.” Ela acrescenta que uma das prioridades é conversar com as mulheres sobre direitos sociais e luta contra violência doméstica.

No centro de Jequié, a universitária quilombola Mariana Soares, de 24 anos, balança a bandeira para o candidato da situação durante todo o dia. Fora do período eleitoral, ela ganha a vida com um estúdio de beleza que montou em casa. Até outubro, ela foi contratada para fazer campanha. “Acho que a situação melhorou ultimamente. As ruas foram até asfaltadas”, diz.

“Quem é servidor público, principalmente as pessoas periféricas, nessa época de eleições, muita gente que trabalha no município, é obrigado a vestir a camisa do prefeito”, afirmou um funcionário terceirizado, de comunidade quilombola, que pediu para não ser identificado. “Tem muita pressão para votar em quem já é vereador ou prefeito. Quem é contratado fica pressionadíssimo”, acrescenta. 

Questionada sobre o tema, a prefeitura de Jequié, atualmente chefiada por Zenildo Brandão Santana, o Zé Cocá (PP-BA), não respondeu à reportagem sobre as denúncias de obrigatoriedade do uso de camiseta pelos funcionários públicos.

Instalação de penitenciária ajudou a mudar cidade pacata

Pesquisadora do Órgão de Educação e Relações Étnicas (Odeere), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), a assistente social Ariadiny Dócio assinala que é necessário contextualizar fatores históricos que transformaram a região em um dos municípios mais violentos do Brasil. Para ela, a instalação do presídio de Jequié em 1997 e o crescimento da cidade alteraram o cenário de lugar pacato.

Ela relembra que, nas eleições da década de 1990, os candidatos anunciavam que as instalações trariam emprego para as áreas periféricas, incluindo os quilombolas. “Esse presídio foi apresentado como uma obra que iria trazer desenvolvimento para os mais pobres”, diz.

Dócio explica que as pessoas que acompanham os detentos se instalaram nas periferias, incluindo áreas vizinhas à comunidade quilombola, e assim deixaram lugares já vulnerabilizados ainda mais estigmatizados pelo poder público. 

Professor e pesquisador da Uesb, Marcos Lopes de Souza, coordenador do Odeere, pontua que a população negra na cidade ficou nos espaços de periferia, com menos condições sociais de vida, incluindo a dificuldade com iluminação, tratamento de água e acesso a postos de saúde e educação com qualidade. “Não é uma cidade que tem empregos. Há ocupações informais e mesmo o comércio não consegue empregabilidade significativa. Quem é de periferia sofre mais.”

Casas trazem marcas da violência e pobreza

A maioria das casas na comunidade do Barro Preto é feita de alvenaria, mas as construções apresentaram problemas quando vieram as enchentes de 2021 e 2022. As enchentes tiveram seus piores efeitos no dia 25 de dezembro de 2022, com o transbordamento dos rios de Contas e Jequiezinho. Segundo foi registrado à época pela prefeitura, foi a pior cheia desde 1981. Na ocasião, mais de 200 pessoas ficaram desabrigadas. A Defensoria Pública da Bahia estimou que mais de 30 mil pessoas foram atingidas direta ou indiretamente pela enchente daquele ano. 

No ano anterior, também em dezembro, diversos bairros ficaram alagados. “A gente mostra para os políticos. Eles balançam a cabeça. Mas não vão estar aqui quando a água subir”, critica um morador. Não houve perdas de vidas, mas impacto em toda a cidade, com mais reflexos nas áreas pobres.

A pesquisadora Ariadiny Dócio recorda que os mais atingidos pelas cheias foram os mais vulneráveis, incluindo as construções da comunidade quilombola, particularmente aquelas sem alvenaria. Ela explica que eles precisaram de recursos da assistência social do município. “Em 2021, houve problema de manutenção. A cidade não estava preparada para aquilo. No período colonial, muitas áreas que hoje são urbanas eram locais alagadiços que foram aterrados e com construção de casas.” Ela contextualiza que, em 2022, houve problema no gerenciamento da barragem da cidade, e impactou as periferias e o centro comercial. “Aqueles que estão mais vulneráveis precisam de mais apoio.” A rua Nazaré, no quilombo do Barro Preto, foi uma das mais afetadas, conforme salienta a pesquisadora.

Manuella Ribeiro explica que a maior parte da comunidade vive dos benefícios sociais, embora as pessoas tenham vergonha disso. “Tenho certeza de que trocariam qualquer benefício por um emprego.” A falta de recursos faz com que a população opte por comprar alimento e não tenha recurso para manter a estrutura da casa. 

Uma das moradoras diz que não conseguiu recuperar a parede da marca de uma munição depois de um tiroteio na comunidade. “Soube que foi troca de tiros entre as facções. Passamos a ter medo até em lugares que nos sentíamos mais seguras. Antes, tínhamos mais grupos de jovens cantando e se reunindo nas igrejas. Hoje mudou. Nem as religiões conseguem mais concentrar os jovens”, afirmou. 

Leia Nascimento, de 36 anos, atua numa organização chamada Consulta Popular, que se apresenta como “antirracista e antipatriarcal”. Ela lamenta ouvir sons de tiro em vários momentos do dia e de chegarem ao seu conhecimento notícias de crimes no entorno da comunidade. “Os barulhos estão fazendo os mais jovens irem embora da cidade, além do que a maioria das vítimas da violência também são jovens.”

Jefferson Rosa, diretor da escola Milton Santos, unidade de ensino estadual voltada para comunidade quilombola e que hoje tem 700 alunos, defende que os projetos desenvolvidos no ambiente escolar, como clube de leitura e capoeira, reforçam a identidade da comunidade.

A cozinheira Indaiara Barbosa foi aluna da escola quando a escola ainda tinha o nome do patrono do Exército, Duque de Caxias. Para ela, os alunos estão mais engajados que na época dela. Que o diga a filha, Melissa, que vai votar pela primeira vez na vida. “A gente precisa se informar mais. O meu sonho é fazer o curso de direito para um dia poder defender a minha comunidade.”

Outro lado

A respeito da violência, o prefeito Zé Cocá, em entrevista à Agência Pública, afirmou que a comunidade quilombola do Barro Preto é “bem unida e organizada”. “Tinha uma estrutura de creche ali muito ruim. A comunidade vivia em uma área com esgoto a céu aberto, com nenhuma infraestrutura. Nós urbanizamos. Ali, a iluminação era muito precária e trabalhamos para a gente fazer um trabalho maior da segurança. O município deve fazer esse trabalho educacional mais forte”, afirmou Zé Cocá.

Se for reeleito, o candidato entende que é necessário garantir geração de emprego. “O mercado de trabalho indireto tem crescido. Nós estamos vendo se a qualificação é uma das maiores necessidades que nós temos. Nós já qualificamos muita gente que era chamado de indigente”, lamentou. Ele garante que, sobre a violência, o município cedeu três carros para a ronda escolar. 

“Nós temos Guarda Municipal. Estamos monitorando as escolas e aumentando o ensino para tempo integral, justamente para evitar que os alunos estejam nas ruas”, explicou. “A intenção, de fato, é que a gente dê saúde, educação e qualificação naquela comunidade para que a gente tire o risco dos filhos de caminhar com o lado negativo”, disse o prefeito.

O rival nas urnas do atual prefeito é Alexandre Margoti. A reportagem pediu o projeto do candidato para os quilombolas, mas não obteve resposta.

A respeito da ação do crime organizado em Jequié, em resposta à Pública, a Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia não particularizou a situação da cidade nem das comunidades vulnerabilizadas como são os quilombolas, mas defendeu as ações tomadas no estado. 

Segundo o último anuário Brasileiro da Segurança Pública, das dez cidades mais violentas, cinco são baianas (Camaçari, Jequié, Simões Filho, Feira de Santana e Juazeiro). Entre as cidades em que a polícia mais matou, Jequié está em primeiro lugar. A despeito disso, a secretaria alegou que as ações policiais no estado são pautadas pela “integração dos esforços, foco no trabalho de inteligência e na ampliação dos investimentos”.

O governo do estado ponderou que, em 2023, houve contratação de 2,5 mil novos policiais e bombeiros, compra de softwares para investigação e a implantação da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco) Bahia. 

“O combate às facções foi reforçado. As mortes violentas apresentaram redução de 6% no estado”, destacou a secretaria, que acrescentou que mais de 6 mil armas foram apreendidas no ano passado, entre elas 55 fuzis, mais de 12 toneladas de drogas foram retiradas das ruas e cerca de 20 mil criminosos foram capturados, entre eles 54 líderes de facções.

A respeito de 2024, a secretaria argumentou que manteve os investimentos, com a contratação de mais mil policiais civis. “Entre janeiro e agosto, as mortes violentas recuaram 14%. Cerca de 80 líderes se facções foram localizados.” A secretaria ainda acrescentou que as ações preventivas, ostensivas e de inteligência, para proteção de vidas, continuarão sendo desempenhadas com prioridade em todos os municípios baianos. Também questionadas, as assessorias das polícias Civil e Militar não responderam em relação à situação da violência em Jequié.

Edição: | Fotógrafo:

Essa reportagem foi financiada graças ao programa de bolsas para jornalismo investigativo da Meedan.

Marcello Hendriks/Agência Pública
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Luiz Carvalho / Coletivo de Comunicação do MAB
Marcello Hendriks/Agência Pública
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