Em julho deste ano, uma das maiores companhias de saneamento básico do mundo, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), passou por um processo de privatização, ou seja, teve uma redução significativa da participação do governo na gestão da empresa. Essa ação não é inédita, repetindo o processo de desestatização já ocorrido também no setor elétrico, na década de 1990, também em São Paulo, com a Ente Nazionale per l’Energia Elettrica (Enel), empresa privada internacional que teve destaque nacional após um apagão resultado de um temporal que atingiu grande parte do estado, na sexta-feira, 11 de outubro.
O debate sobre esse tipo de privatização no Brasil ganhou força após o ocorrido. Milhares de residências ficaram sem energia elétrica, algumas por mais de três dias, resultando em diversos desconfortos. A situação confronta a lógica por trás da onda de privatização, que pressupõe que as empresas, por meio da competitividade e de uma maior eficiência, prestariam serviços melhores à população. O que acontece quando o mercado financeiro e instituições com fins lucrativos assumem o controle de serviços públicos essenciais?
Para falar sobre o tema, o Pauta Pública desta semana contou com a participação de David Deccache, doutor em economia, diretor do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento e coautor do livro Teoria monetária moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas. Na entrevista, Deccache resgata o contexto histórico em que as privatizações ganharam força no mundo. “A partir dos anos 1990, criou-se uma narrativa de que tudo que era público era muito ruim, muito ineficiente, o Estado era muito pesado e não teria capacidade de investir em melhorias e expansão de uma série de serviços públicos e de infraestrutura.”
No entanto, segundo o economista, na prática as privatizações transformam setores essenciais em fontes de lucro, resultando geralmente em aumento de tarifas e queda de qualidade dos serviços. Ele defende que as tentativas de privatização em diversos países, principalmente nas áreas de saneamento básico e energia elétrica, foram mal planejadas e fracassaram. Como resultado, centenas dessas privatizações já foram revertidas. “O Brasil está na contramão do mundo ao continuar apostando nesse modelo”, afirma Deccache, destacando ainda que “o oposto de um mau serviço público não é a desestatização do serviço público, é um serviço público bem prestado”.
Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.
EP 143 Quem paga o preço das privatizações? com David Deccache
Como as privatizações impactam diretamente a vida das pessoas?
As tarifas dos serviços antes públicos tendem a subir. Essa é a tendência óbvia de um processo de privatizações. O contrapeso disso seria uma enorme eficiência das exigências reguladoras, de não deixar o preço decolar muito do custo das empresas, certo? Mas isso não acontece. As empresas possuem um poder de influência muito maior do que os consumidores na própria regulação.
Se fala muito em autonomia de tudo, autonomia das agências reguladoras, autonomia do Banco Central, como se essas instituições fossem blindadas do jogo político, dos interesses. Como se elas não atuassem para um lado e tivessem uma abordagem técnica. Isso não acontece na realidade. O que implica em uma assimetria de forças entre os consumidores e as empresas no próprio processo de regulação, o que gera uma tendência à precarização do serviço, que é isso que as empresas buscam, e elevação dos preços. É isso que uma empresa busca para ter lucro extraordinário.
Então, se nos anos 90, a esperança nas privatizações como a grande solução de todos os problemas do mundo permitia alguma ilusão – já que aquele processo estava começando – quatro décadas depois dos anos 80 e 90, nós não podemos mais ter essa ilusão. O oposto de um mau serviço público não é a desestatização do serviço público, é o bom serviço público. Ele tem que ser bem prestado.
Confundimos muito um serviço público que porventura seja ineficiente com a solução única sendo um processo de desestatização, de parceria pública-privada, de concessão, quando há outras alternativas, que é, por exemplo, a melhoria do serviço público. É simples, né? Essa alternativa parece que foi descartada por definição, e é uma definição ideológica.
Tem algum exemplo que você acha que nos ajuda a entender mais? Tem algum caso concreto que você possa trazer para a gente visualizar essas camadas na prática?
O grupo Lemann, por exemplo. Um conglomerado empresário bilionário que atua em diversos setores, responsável pela fraude nas Lojas Americanas. Uma grande fraude. Isso quem fala não sou eu, são os próprios bancos que tiveram prejuízos decorrentes desse esquema, hoje, obviamente, reconhecido como fraudulento, um esquema bilionário.
Esse mesmo grupo participa da privatização da Eletrobras no Brasil. Um grupo que possui grande influência política e consegue ter uma incidência muito forte no Parlamento, no Executivo. Por exemplo, no caso das Americanas, a CPI que tratava do assunto simplesmente desapareceu do mapa. Os parlamentares, na sua maioria, que começaram a fazer o debate, de repente, magicamente, pararam de fazer esse debate. Há algo relacionado ao poder econômico desses grupos, ao poder político desses grupos.
Então, se um grupo desses tem tanto poder político, não só para conseguir um processo de compra muito vantajoso, e isso é o mais provável, esse grupo não teria poder político para se blindar de uma regulação e de uma fiscalização eficiente? Alguns diriam que eles não teriam porque a autonomia é total. Só que na prática nós não observamos isso. Temos sempre grandes esquemas que furam a fiscalização, a regulação.
Na prática, vamos ter uma elevação de tarifas. Nós vamos ter uma queda de qualidade, que é isso que as empresas buscam, e talvez o mais importante, o mais central, nós perdemos a capacidade de planejar o futuro e de fazer coisas que não dão lucro financeiro, mas que são fundamentais para a própria sobrevivência da humanidade. Diante de uma crise climática, por exemplo, um processo de transição energética, ele nunca será conduzido pelo setor privado, porque ele custa caro, ele tem retornos que são sociais e que não são incorporados no balanço de uma empresa.
Fora das fronteiras do Brasil, vemos em outros países um processo de reestatização de empresas. Como você vê isso? O que é diferente?
A privatização da água em Berlim, por exemplo, os estudos apontam um aumento de tarifas e piora na qualidade do serviço. O debate que se faz hoje, não só no campo que a gente pode chamar progressista, é sobre as consequências negativas dessas privatizações. Hoje no mundo, tem pesquisas que apontam que, desde a década de 2000 para frente, em torno de 400 privatizações já foram revistas.
Nós vamos ter uma série de reversões por conta dessa precarização que é estrutural, vai acontecer em algum momento. Esse processo não é só das privatizações em si, que é quando você vende algo para o setor privado. Isso também inclui o processo de desestatização no geral, que é quando você faz uma parceria público-privada para uma empresa prestar um serviço que deveria ser público sem vender aquele ativo. Por exemplo, nós estamos falando de educação, de saúde e de previdência social.
O que nós temos é uma crise em diversos setores que buscam agora condições de reverter um processo de privatização, que é um processo muito mais duro. O processo de reestatização é muito mais complicado, ele é muito mais duro que o processo de venda de uma estatal. Porque você pega uma empresa que tem um desequilíbrio estrutural, se ela está sendo reestatizada é porque houve uma ampla mobilização social para tal. Então é uma empresa que tem uma estrutura precária, seja financeira, seja de qualidade de serviços. Há uma série de atores políticos que vão atuar em defesa dessa empresa, que essa empresa vai ter grande influência.
Portanto, a gente entra nesse debate, no Brasil, com 30 anos de atraso. Estamos desde 2016 com uma política orientada às privatizações no âmbito da União, dos governos estaduais e dos municípios. Então, a partir de 2016, houve uma espécie de consenso no mercado e entre a maior parte dos economistas que são ligados a esse mercado, de que o Brasil deveria iniciar um processo que o mundo todo estava tentando reverter.