O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) tem pedido a estados e municípios, desde o governo Bolsonaro (2019-2022), acesso a dados sensíveis como “contrapartida” para fornecer acesso ao sistema Córtex para guardas civis e servidores de fora do Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que guardas civis não têm permissão para fazerem funções “ostensivas ou investigativas”, típicas das polícias Civil e Militar, mesmo estando integradas ao SUSP. Em outubro de 2023, a Terceira Seção do STJ definiu que “a investigação de suspeitos de crimes que não tenham relação com bens, serviços e instalações do município” está “fora das atribuições” de guardas civis em todo o Brasil.
A Agência Pública revelou que o Córtex é uma poderosa plataforma espiã capaz de monitorar pessoas e veículos em tempo real, sem autorização judicial nem motivação para a vigilância, entre outros recursos que envolvem dados sensíveis da população.
Entre as “contrapartidas” do acordo para que estados e municípios tenham acesso ao Córtex está uma cláusula anti-imprensa. O trecho proíbe a divulgação, à “imprensa” em geral, de qualquer “possível ocorrência” policial relacionada ao uso do Córtex. É o que revelam documentos inéditos obtidos pela reportagem.
Por que isso importa?
- Sem precisar registrar a motivação da consulta, pessoas podem ser monitoradas nas ruas sem prévia análise do Judiciário e fora de inquéritos policiais.
- Com 55 mil usuários civis e militares, sistema de inteligência explodiu desde o governo Bolsonaro e será expandido no governo Lula.
- O MJSP detectou casos de venda de senhas e presença de contas automatizadas no sistema Córtex, que extraíam grandes volumes de dados sigilosos de milhões de brasileiros.
Listada como uma das “obrigações” do MJSP, estados e municípios, a cláusula consta dos Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) pelos quais o MJSP dá acesso ao Córtex. Os acordos têm sido firmados desde 2020, sempre com prazo de duração de cinco anos.
Com pequenas variações, os acordos trazem na cláusula 5ª a mesma mordaça para o órgão que assina: “Fazer uso das informações de dados disponibilizados pelo MJSP, somente pelos órgãos integrantes neste acordo, sendo expressamente proibida a transmissão a outros órgãos ou entidades, tampouco divulgar à imprensa que uma possível ocorrência foi decorrente de informações contidas no sistema, de forma a detalhar sua dinâmica de funcionamento”.
O texto não dá nenhuma indicação do que seria uma “possível ocorrência” relacionada ao sistema – se isso se refere a crimes flagrados por agentes graças ao Córtex ou se também engloba delitos e desvios cometidos graças ao sistema pelos seus 55 mil usuários civis e militares.
A cláusula só vem à tona após a liberação da íntegra dos ACTs já assinados e com extratos publicados no Diário Oficial da União. A íntegra foi solicitada pela Pública por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e seguidamente negada pelo MJSP. A informação só foi liberada em junho passado após recurso e decisão da Controladoria-Geral da União (CGU).
Conforme revelado pela Pública, o ministério já manifestou preocupação sobre possível uso indevido do Córtex, com indício de contas robotizadas e suspeita de utilização para a vigilância ilegal de cônjuges de usuários do sistema. À reportagem, o MJSP disse ter implementado medidas de segurança, como auditorias automatizadas, para prevenir usos indevidos do Córtex.
Na gestão do ex-ministro Flávio Dino no MJSP, atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), um grupo de trabalho interno cogitou fazer uma auditoria sobre o uso passado do sistema, relativo ao período do governo Bolsonaro (2019-2022), mas voltou atrás e decidiu auditar apenas dali para “o futuro”.
Eventuais desvios de finalidade no uso da ferramenta desrespeitam os compromissos firmados pelo MJSP com estados e municípios por meio dos ACTs. Os 160 acordos de cooperação técnica encaminhados à Pública pelo MJSP contêm uma cláusula-padrão que determina que os órgãos devem “responsabilizar-se por quaisquer danos porventura causados, dolosa ou culposamente, por seus colaboradores, servidores ou prepostos”.
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Câmeras nas ruas, dados pessoais, notas fiscais: o que é dado em troca do Córtex
Os documentos obtidos pela reportagem revelam que tipo de informação as secretarias de Fazenda, de Segurança Pública e de Trânsito, entre outras, de estados e municípios, têm dado em troca do acesso ao Córtex.
Como “contrapartida”, pelo menos 22 governos estaduais e 108 prefeituras fornecem ao Córtex imagens em tempo real “de veículos, com ou sem restrições identificadas, pelos pontos de monitoramento com leitura de caracteres de placas (OCR), independentemente da tecnologia utilizada”.
O termo “leitura de caracteres” se refere à tecnologia OCR, que lê e converte imagens de texto, como as de placas veiculares, em dados de texto – uma função que agiliza pesquisas dentro do sistema do MJSP.
A maioria dos municípios que assinaram acordos com o MJSP a fim de acessar o Córtex se concentra no estado de São Paulo, com 52 cidades do total (108 municípios em todo o Brasil), ainda segundo o material obtido pela Pública.
Os acordos garantem também o fornecimento de informações “em tempo real da bilhetagem dos ônibus” municipais sempre que possível, incluindo “CPF e Nome [dos passageiros], Linha e Prefixo [dos ônibus], Data e Hora da Leitura [dos cartões de embarque], Latitude e Longitude [dos ônibus em trânsito]”.
No caso das secretarias de Segurança Pública dos estados, as polícias Civil e Militar se comprometeram a disponibilizar ao MJSP todos os boletins de ocorrência registrados por esses órgãos e avisos e denúncias protocoladas no serviço 190.
Por meio dos acordos, o Córtex é capaz também de receber diversas informações financeiras. De outubro a dezembro de 2022, já no final do governo Bolsonaro, todos os 27 secretários estaduais de Fazenda assinaram um ACT com o MJSP, pelo qual se comprometeram a repassar ao sistema Córtex uma série de informações.
Acordo com Secretarias de Fazenda
O acordo das 27 secretarias de Fazenda do país garante o repasse ao Córtex dos “Manifestos Eletrônicos de Documentos Fiscais (MDF-e)” obrigatórios para o “transporte rodoviário de cargas”, com dados completos dos “Municípios/UF de Carregamento e descarregamento e UF de percurso; Placa do veículo de tração e de reboques; CPF/Nome do condutor; Peso Bruto; Produto predominante; e data/hora de emissão, autorização do MDF-e e seus eventos”.Os secretários de Fazenda se comprometeram também a fornecer “credenciais de acesso a sistemas ou dados gerenciados pela Sefaz [Secretaria de Estado de Fazenda], como, por exemplo, pessoas, veículos, registros cíveis, criminais, penitenciários (como visitantes, presidiários e faccionados), tornozelados, registros de atendimentos e registros de ocorrências efetivado pelos órgãos estaduais ou conveniados, veiculares (incluindo histórico de proprietários, consulta por fragmento de chassi e placa, dados e listagem de multas, dados de RENACH, RENAINF, RENAJUD, RENAVAM, autuações, entre outras administrados pelo órgão estadual ou acessados por ele a partir de outros órgãos), seus equipamentos de videomonitoramento, bem como estatísticas de violência e demais informações de Segurança Pública, ressalvadas as protegidas por sigilo e os classificados como restritas, observados os níveis de acesso”.
Em contrapartida, o governo federal assumiu o compromisso de enviar ao Operador Nacional dos Estados, que reúne todos os documentos fiscais eletrônicos emitidos pelos estados, “informações relativas às passagens de veículos de cargas, com ou sem restrições, identificadas pelos pontos de monitoramento com leitura de caracteres de placas”.
Os ACTs com as 27 secretarias estaduais de Fazenda contrariam uma informação passada pelo próprio ministério à Pública: a de que apenas três secretarias estaduais de Fazenda – dos governos de Alagoas, Paraíba e Acre – compartilham seus dados com o Córtex. O MJSP alegou sigilo para não explicar o conteúdo dessas informações à reportagem.
Incentivo ao uso de sistemas de inteligência no país, mesmo sob suspeita de descontrole
Os documentos obtidos pela Pública indicam que, durante o governo Bolsonaro, o MJSP não apenas buscou ampliar o poder e o alcance do sistema Córtex, mas também utilizou os acordos firmados para promover a adoção de tecnologias semelhantes por estados e municípios.
A prática foi mantida pelo MJSP do atual governo Lula, ainda segundo os ACTs disponibilizados até o momento.
Uma das cláusulas-padrão dos acordos assinados desde 2020 até o fim do governo Bolsonaro determina que MJSP, estados e municípios se comprometem a “buscar constantemente a implantação e uso de tecnologias que sejam aderentes ao objeto deste acordo, voltadas principalmente a oferecer a integração e alinhamento a Protocolos de Uso fixados em comum acordo”.
Uma cláusula-padrão dos acordos firmados entre 2020 e o final do governo Bolsonaro estabelece que o MJSP, os estados e os municípios se comprometem a buscar continuamente a implementação e o uso de tecnologias alinhadas ao objeto do acordo, “voltadas principalmente a oferecer a integração e alinhamento a Protocolos de Uso fixados em comum acordo”.
Os ACTs assinados no governo Lula trazem pequenas mudanças na cláusula, cuja essência segue a mesma: “buscar continuamente implementar e utilizar tecnologias compatíveis com o escopo deste acordo, priorizando a integração e conformidade com os Protocolos de Uso estabelecidos por consenso mútuo”.
Em ambos os casos, porém, não há nenhuma definição sobre o que seriam tecnologias “aderentes” ou “compatíveis”.
Na prática, a cláusula dos ACTs estimula os órgãos usuários do Córtex a buscar programas similares, como as chamadas “muralhas digitais” – que monitoram tráfego de veículos em ruas, avenidas e rodovias e integram as imagens a bancos de dados de órgãos públicos.
Há cada vez mais ferramentas que também possuem “câmeras inteligentes”, capazes de “ler” as placas veiculares e monitorar carros e pessoas, formando uma indústria em torno do tema – com empresas privadas montando e vendendo os sistemas para as prefeituras.
O estímulo à contratação dessas tecnologias ocorre em um momento de aparente descontrole dos serviços de inteligência no país. Como a Pública revelou, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga um caso no qual a Procuradoria-Geral da República (PGR) vê “omissão” e “inércia” nos órgãos competentes quando se trata da fiscalização de ferramentas espiãs pelo poder público brasileiro. O caso segue em julgamento no STF, mesmo com omissões das compras de produtos de inteligência pelos estados, como já denunciado em julho passado.