A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center
Em julho de 2023, a Agência Pública iniciou um ambicioso projeto para mapear as raízes genealógicas dos principais líderes políticos do Brasil. Inspirada pelo especial “Slavery’s Descendants”, publicado pela Reuters em junho do mesmo ano, o nosso levantamento tinha como objetivo identificar quais dos representantes da nação, entre senadores, governadores e presidentes pós-redemocratização, teriam laços familiares com antigos escravocratas. Não queríamos apenas mexer com o passado, mas documentar o que comprova a relação direta com a escravidão através de fontes genealógicas e registros históricos.
A escravidão no Brasil não se deu da mesma forma que em outros países. Por aqui, ela durou mais de 300 anos e a mão de obra escrava foi amplamente utilizada em todo o território. Além disso, o acesso aos documentos desse período tem uma lógica própria. Nos Estados Unidos, há um formulário de censo estruturado e nacional com informações sobre os escravizados, que foi utilizado pela equipe da Reuters para comprovar proprietários de pessoas escravizadas. Aqui, essas informações estão dispersas, de modo que utilizar uma única fonte para esse tipo de comprovação seria inviável.
Por essas e outras particularidades, percebemos que seguir os passos de levantamentos jornalísticos estrangeiros não seria o suficiente para mapear a genealogia de membros do alto escalão do poder no Brasil. Precisávamos criar uma metodologia adaptada à nossa realidade.
Nosso primeiro passo foi buscar quem já tinha embasamento teórico sobre metodologias e fontes para esse tipo de levantamento, ou seja, especialistas em genealogias. Formamos uma equipe multidisciplinar com dois jornalistas e quatro pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que se dedicou ao levantamento das genealogias ao longo de um ano. Como analista de dados da Pública, tive a missão de coordenar essa equipe mista. Contamos também com apoio de pesquisadores em genealogia, arquivologia e história de diferentes instituições, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e de outras instituições de ensino e pesquisa.
Antes mesmo de entendermos que etapas deveríamos seguir nas pesquisas genealógicas, precisávamos de respostas fundamentais para avaliar a própria viabilidade do nosso projeto. Uma das principais delas era: será que temos bases de dados públicas sobre pessoas escravizadas e escravizadores no Brasil?
A resposta é sim, elas existem. Entre julho e outubro de 2023, fizemos um grande mapeamento dessas fontes e fechamos um banco documental para a pesquisa. Nesse banco há documentos como listas nominativas de habitantes ou “maços de população”, que são um tipo de censo populacional do século 19, e inventários post-mortem, que detalhavam bens deixados por uma pessoa falecida, incluindo escravizados, nas propriedades da elite da época, como os atuais testamentos.
Incluímos também registros de batismos, nascimentos e casamentos armazenados em cartórios, arquivos digitais e no site FamilySearch, que terminou sendo nossa principal ferramenta de busca, como detalho mais à frente. Consultamos também cartórios e arquivos públicos de diferentes estados durante a apuração. Nosso banco de fontes ainda inclui ferramentas digitais, como o DivulgaCand (uma base de dados de candidatos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que reúne informações sobre candidaturas brasileiras) e o Google Acadêmico. Utilizamos também a base de dados colaborativa SlaveVoyages, que documenta embarcações e rotas de tráfico de pessoas escravizadas.
Pesquisa das árvores genealógicas
Para este levantamento, a Pública definiu uma amostra de políticos e autoridades brasileiras que inclui senadores da 57ª Legislatura (2023-2027); governadores em exercício e presidentes desde a redemocratização. A lista total reuniu 116 nomes.
Entre os 116 políticos, encontramos 33 autoridades que teriam ligações com escravizadores. Documentamos mais de 200 parentescos e investigamos cerca de 500 documentos. Focamos na busca de vínculos diretos com escravizadores nas árvores genealógicas – apenas antepassados diretos como pais, avós, bisavós, trisavós (e assim por diante) das autoridades foram considerados na comprovação de laços com proprietários de pessoas escravizadas.
Esse tipo de cruzamento, muito utilizado em pesquisas genealógicas, é facilitado por ferramentas online como o site do FamilySearch. Essa página pertence a uma organização sem fins lucrativos que tem uma história curiosa. Ela é administrada por uma instituição religiosa, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. A plataforma permite o acesso a milhões de registros históricos, incluindo documentos de imigração, certidões paroquiais e civis, censos e outros registros vitais de vários países. Os usuários podem construir e compartilhar árvores genealógicas, colaborar com outros usuários e acessar uma vasta coleção de documentos históricos digitalizados.
O interesse da igreja em genealogias é fundamentado na crença mórmon de que as relações familiares são mantidas mesmo depois da morte. No Brasil, o FamilySearch tem parceria com o Museu da Imigração, em São Paulo. Henrique Trindade, coordenador de formação e educativo do museu, conta que existem diferentes tipos de acesso aos documentos do FamilySearch. Muitos documentos digitalizados são públicos e podem ser acessados de qualquer dispositivo, basta fazer uma conta gratuita. Também é possível fazer consultas exclusivas em uma biblioteca afiliada ou em um Centro de História da Família.
O Museu da Imigração é a primeira biblioteca afiliada do FamilySearch no Brasil. “Você consegue ver alguns registros nessas bibliotecas afiliadas. Isso porque alguns contratos do FamilySearch com instituições [como cartórios, paróquias ou arquivos] que fornecem os documentos estabelecem acesso restrito”, explica Trindade. A Pública foi até o Centro de Preservação, Pesquisa e Referência (CPPR) do museu algumas vezes durante o processo de pesquisa e checagem. Outros documentos só estavam disponíveis para consulta nos Centros de História da Família, que ficam dentro das igrejas mórmons. Há 387 desses centros no Brasil, 106 apenas no estado de São Paulo. As pesquisas conduzidas pela Pública foram feitas presencialmente na igreja que fica no bairro de Pinheiros, na capital paulista, com agendamento e auxílio de uma pessoa voluntária do FamilySearch.
Para cada registro identificado nas árvores do FamilySearch, checamos minuciosamente dados como nome completo e variações de sobrenome, considerando mudanças por casamento, adaptações ou mesmo diferentes grafias. Fizemos cruzamentos com datas e locais de nascimento, casamento e falecimento, além de registros de filiação, para confirmar a identidade e o parentesco de cada um dos antepassados de autoridades e políticos que conseguimos encontrar.
Na árvore genealógica do senador Luis Heinze (PP-RS), por exemplo, há variações de nomes porque sua família migrou da Alemanha para o Sul do Brasil. Seu tataravô, Carl Clemens Kersting, é citado em documentos como Carlos Kersting e Carl Clemente, entre outras variações. Apenas ao cruzarmos essas variações com outras informações conseguimos assegurar que se tratava da mesma pessoa.
Comparamos os registros encontrados no FamilySearch com os arquivos anexados na própria plataforma. Todos os dados foram planilhados e categorizados seguindo um sistema de numeração de antepassados utilizado universalmente em genealogias, chamado de método Sosa-Stradonitz.
Ao longo do nosso levantamento, encontramos desafios que, de acordo com José Victor Maritan, pesquisador do Núcleo de Estudos da População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), são comuns à pesquisa genealógica. Um deles é a dificuldade de encontrar registros únicos de cada cidadão brasileiro, como o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). Esses dados ficam mais escassos à medida que nos aprofundamos em gerações passadas. O CPF, por exemplo, só surgiu no Brasil em 1965.
Para driblar essa dificuldade, ele fez um caminho de pesquisa semelhante ao que tomamos na Pública. “Fui até os arquivos públicos e transformei as imagens de documentos dos séculos 18 e 19 em planilhas. Assim, é mais fácil organizar as árvores, referenciar dados e estimar as gerações”, explica.
Um grande risco de pesquisas nominativas é encontrar homônimos (pessoas com o mesmo nome). Isso porque há nomes muito comuns, como “Silva” – 1 em cada 40 brasileiros tem esse sobrenome –, o que dificulta a comprovação de que a pessoa de que estamos falando é, de fato, o objeto da pesquisa.
Para não cairmos nessas confusões, verificamos outros dados, como nome de cônjuges, parentes e local de nascimento. Quando essas informações não eram suficientes para confirmar o parentesco, o levantamento era descartado. Foi o que aconteceu com a genealogia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Encontramos indícios de que a árvore genealógica de Lula pode conter um antepassado escravista, mas os dados disponíveis não foram suficientes para confirmar essa ligação, se considerarmos que a região de Garanhuns, em Pernambuco, onde ele e parte de sua família viveram, foi povoada inicialmente por Micael de Amorim Souto e Maria Paes Cabral. O casal teria posse de ao menos cinco pessoas escravizadas, em 1749. Não foi possível comprovar o parentesco de Micael e Maria, possíveis sextos avós de Lula, com o restante dos laços exibidos em sites genealógicos, por ausência de documentos.
Busca de escravizadores
Em genealogias anteriores ao ano de 1888, data da abolição da escravidão no Brasil, fizemos o cruzamento de dados genealógicos com informações sobre propriedades de pessoas escravizadas. Essa pesquisa incluiu técnicas de Open Source Intelligence em diferentes sites, como buscas avançadas por combinações de termos como “cativo”, “africano”, “escravo”, “alforria” associados ao nome dos ancestrais.
No caso da genealogia do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, por exemplo, a relação se deu por assentos de batismo (um documento paroquial que identifica cada batizado realizado por determinada igreja e contém informações do indivíduo, como pais, padrinhos, idade, naturalidade) de pessoas escravizadas no estado do Rio de Janeiro. Anna Rosalina Pacheco de Freitas, sua trisavó, é mencionada no registro do batizado de Martha, filha de sua escrava Delfina.
Em outros casos, o registro de envolvimento com o sistema escravista foi apontado por censos populacionais ou menção em estudos que se valeram de documentos históricos. O senador Marcos Pontes (PL-SP) cuja família é do interior de São Paulo, tem entre seus antepassados o alferes e senhor de engenho Joaquim da Silveira Leite, registrado no censo de Itu como “chefe do fogo”, ou seja, líder de um núcleo familiar. O registro, apontado no artigo “Senhores de terras da Vila de Itu em 1817”, do historiador Leandro Antonio de Almeida, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), conta que o alferes vivia com sua esposa, Ana Joaquina, cinco filhos e dez pessoas escravizadas.
Processo de checagem e validação
Ao término dos levantamentos, cada genealogia passou por uma rechecagem. Esse foi um cuidado fundamental para evitar erros nas análises e reportagens que você lê neste especial. Estabelecemos alguns critérios de validação, como a existência de algum documento comprobatório ou de uma fonte referenciada por pesquisas acadêmicas, em que fosse possível identificar o autor do estudo. Livros de genealogia ou projetos como o Compartilhar e o site de descendentes, que abrigam informações de pesquisas, foram considerados em alguns casos, quando foi possível encontrar menção ao parentesco em mais fontes.
Usamos inteligência artificial para ajudar a decifrar documentos escritos há mais de cem anos, em letra cursiva, em papéis em diferentes estados de conservação. Embora a transcrição não seja perfeita, era possível identificar padrões e dados importantes dos documentos.
Outra etapa fundamental foi garantir que cada político, cada autoridade citada recebesse, com antecedência de pelo menos 15 dias da publicação, um e-mail detalhando o seu parentesco com o ancestral escravizador junto com a árvore genealógica e os documentos que a sustentam. Cada autoridade ou seu representante teve até o dia 11 de novembro para acrescentar comentários ou questionar a genealogia apresentada. Todas as respostas que recebemos estão disponíveis para leitura neste especial. Muitos dos políticos sequer conheciam seus antepassados ou mantêm relação próxima com a sua linhagem.
Este é um trabalho jornalístico pioneiro, corajoso por levantar um debate que muitas autoridades brasileiras querem evitar, sobre como pessoas que se beneficiaram da escravidão teriam deixado descendentes na política. Sabemos que nossos achados são apenas um pequeno quadro de um cenário maior, considerando que o acesso às genealogias tem suas limitações. Ainda há muitas outras histórias para contar sobre como o poder no Brasil se constituiu à custa de trabalho escravo e como essa dívida histórica jamais foi paga – ou poderá ser. Esperamos que este seja apenas o começo da nossa jornada em busca dessas respostas.