A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center
O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o Partido Liberal (PL) são as duas legendas que reúnem o maior número de políticos que teriam antepassados escravizadores. É o que revela a investigação inédita da Agência Pública sobre as genealogias de políticos e autoridades brasileiras.
A partir da consulta e análise de centenas de documentos foi possível constatar ancestrais que teriam sido escravistas nas genealogias de pelo menos cinco políticos do MDB e cinco políticos do PL. Nesse ranking, o segundo lugar fica com o PP, que tem quatro. PT, União, PSDB, PSB e Podemos têm três cada. O PRN tem dois e o Republicanos, Cidadania e o Novo têm um cada.
Entre os emedebistas que teriam antepassados escravistas está o ex-presidente José Sarney. Outros dois são pai e filho: o senador Jader Barbalho e o governador do Pará, Helder Barbalho. Os demais políticos são os senadores Fernando Dueire e Veneziano Vital do Rêgo. Os políticos do PL são os senadores Marcos Pontes, Carlos Portinho e Rogério Marinho, o governador do Rio de Janeiro Cláudio Castro e o governador de Santa Catarina Jorginho Mello. Vale dizer que o ex-presidente Itamar Franco, falecido em 2011, era do Cidadania (antigo PPS), mas passou parte significativa da sua história política no MDB.
MDB
O economista pernambucano Fernando Antônio Caminha Dueire, 65 anos, iniciou em novembro de 2022 seu primeiro mandato no Senado Federal. Integrante da bancada ruralista, ele era o primeiro suplente na chapa de Jarbas Vasconcelos, um dos fundadores do MDB nos anos 1960. Vasconcelos exerceu numerosos cargos políticos – incluindo o de governador de Pernambuco e senador. Foi reeleito para o Senado em 2018, mas licenciou-se do mandato por questões médicas.
Dueire é filho de Maria Carmelita Monteiro e Pedro Dueire do Nascimento. Carmelita foi presidenta do Banco da Providência, braço filantrópico da Igreja Católica, durante o bispado de dom Hélder Câmara, de quem era amiga. Pedro, seu esposo, foi comerciante e deputado estadual por Pernambuco. Mas, muito antes dos pais do senador, a família já contava com uma longa tradição no exercício do poder político, econômico e militar.
Nascido em 1751, o trisavô de Carmelita, João de Castro e Silva, foi um dos homens fortes de Portugal na região do Ceará: era capitão-mor, responsável, portanto, pela defesa da colônia ultramar. Também seu pai, o português José de Castro e Silva, exerceu a função de capitão-mor, e, segundo a Revista do Instituto do Ceará, editada desde 1887, “territorialmente ampla e temporariamente longa foi a influência econômica de sua descendência”.
José de Castro e Silva é o sexto avô do senador Fernando Dueire que teria tido escravizados durante o período colonial. O documento que atesta é o Livro de Batismos de Aracati (CE), de 1797. Consta nele a ata de batismo de Francisca, “parda, filha legítima de Bento, escravo do capitão-mor José de Castro, e de Gertrudes da Conceição, índia”. Pela alta posição que ocupava na administração colonial, é possível que José de Castro tenha escravizado mais pessoas – o registro de Bento, porém, foi o único ao qual a Pública teve acesso.
Hoje, aos 54 anos, o emedebista Veneziano Vital do Rêgo Segundo Neto está na política desde os 27, quando se elegeu vereador de Campina Grande (PB). Sua carreira só fez ascender: aos 35 venceu a disputa pela prefeitura da cidade. Dez anos e dois mandatos de prefeito depois, sagrou-se deputado federal, e na eleição seguinte, em 2018, alcançou o Senado – do qual se tornou vice-presidente em 2021.
O senador descende de uma família de políticos e de alguns dos senhores de engenho mais ricos da Paraíba, como o major Antônio Bento Duarte, nascido em 1851, e o coronel Francisco Duarte, que nasceu em 1842. Os tataravós de Veneziano foram o coronel Santos da Costa Gondim e Maria Franca Torres. O coronel nasceu em 1815 e morreu em 1894, pouco depois da abolição da escravidão, e Maria nasceu em 1826, falecendo em 1871.
A informação de que o coronel teria tido escravos consta no testamento de Maria. Aos seus seis filhos, ela legou “17 escravos, casas de sobrado, casa de taipa, safra de canas, propriedade de terras”, patrimônio que fazia da família “uma das maiores riquezas da cidade de Areia-PB”, como analisou a historiadora Eleonora Félix da Silva em sua dissertação de mestrado, “Escravidão e resistência escrava na ‘Cidade d’Areia’ oitocentista”, defendida em 2010 na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
A família rica tem uma grande tradição política. Vital do Rêgo Filho, irmão do senador, chegou ao Senado, sendo indicado ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) por Dilma Rousseff (PT) em 2014, cargo que ocupa até hoje. A mãe dos dois, a também emedebista Ozanilda Gondim Vital do Rêgo, foi colega do filho no Senado até o ano passado. Nilda, como é conhecida, era a primeira suplente do senador José Maranhão (MDB) e assumiu a vaga após a morte dele. Já o pai de Veneziano, Antônio Vital do Rêgo, foi deputado estadual e federal, tendo passagem por oito partidos, entre eles a Arena, que dava sustentação à ditadura militar, e também pelo MDB, que lhe fazia oposição.
Os avós paternos e maternos do senador também foram políticos. O pai de seu pai, conhecido como major Veneziano, nascido em 1907, presidiu a Assembleia Legislativa de Pernambuco entre 1950 e 1958, enquanto o pai de sua mãe, Pedro Moreno Gondim, governou por dois mandatos a Paraíba, de 1958 a 1966.
PL
O senador Marcos Pontes, ex-ministro da Ciência do governo Bolsonaro, que também é do PL, tem como sexto avô o alferes Joaquim da Silveira Leite, nascido em 1758 no interior do estado de São Paulo e falecido em 1823. Oficial subalterno do corpo de milícias e senhor de engenho, ele teria tido dez pessoas escravizadas, de acordo com o censo da época, registrado no trabalho “Senhores de Terras da Vila de Itu em 1817”, publicado na Revista da Abrasp (Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia).
Já o coronel Hilário Teixeira de Mello, nascido em 1860, é trisavô de Carlos Portinho, senador pelo PL do Rio de Janeiro. Segundo registros, seu pai, Teodoro, deixou em inventário, datado de 1867, onde teria 17 pessoas escravizadas. Uma carta de alforria da escravizada Joaquina, com 52 anos, assinada em 7 de maio de 1867, tem a assinatura do coronel Hilário Teixeira de Mello.
O senador Rogério Marinho tem como sétimo avô o capitão-mor Bento Freire, nascido em 1727 e falecido em 1803. Ele era oficial militar responsável pelo comando de tropas e teria sido também senhor de engenho e um dos mais ricos proprietários de terras do Rio Grande do Norte. De acordo com dossiê publicado na Revista Nep (Núcleo de Estudos Paraenses) Bento Freire do Revoredo, era “rico proprietário de terras”, que “passou da pecuária aos engenhos de cana-de-açúcar ao longo do século 18”. O mesmo trabalho aponta que “os historiadores concordam que o trabalho ali [na região onde Bento Freire tinha engenhos] ocorria com base na mão de obra escrava – predominantemente de origem africana, do Guiné e da Costa da Mina, havendo também registro de índios escravizados.”
Entre os governadores do PL que teriam antepassados escravizadores, o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello, tem como sétimo avô o coronel Luciano Carneiro Lobo, nascido em 1757 e falecido em 1842. O testamento de José Joaquim de Godoy informa que ele teria sido o único escravo alforriado pelo coronel Lobo, sob a condição de ensinar sua filha Maria Eufrazia a ler.
Governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro é tataraneto do tenente-Coronel Tomás Lourenço da Silva Castro, natural do Ceará, nascido em 1806 e falecido em 1881. Um texto no jornal edição da Gazeta de Notícias de 1875, o tenente teria um escravo chamado “preto Luiz”, que foi preso por suspeita de ter sido cumplice de um assassinato.
A reportagem procurou os políticos citados e seus representantes para esclarecer os achados sobre suas árvores genealógicas e a relação dos seus antepassados com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. Não recebemos respostas até a publicação.
A história dos partidos
A ditadura militar, instaurada com o golpe de 1964, pôs fim ao pluripartidarismo. Surgiram, então, a Arena e o MDB. No início, o MDB era como uma frente ampla. Havia egressos do Partido Comunista Brasileiro, do Partido Trabalhista Brasileiro de João Goulart, presidente deposto pelos militares, centristas do extinto Partido Social Democrático (PSD), como Tancredo Neves, e quadros à direita, saídos da União Democrática Nacional (UDN), que apoiou o golpe.
Embora tenha surgido como a oposição tolerada pela própria ditadura, o MDB alcançou uma popularidade não prevista pelos militares e foi, ao lado do movimento sindicalista, de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de setores progressistas da Igreja Católica, um dos protagonistas na restauração da democracia no Brasil.
Nos anos 80, durante a redemocratização, as disputas internas do MDB começaram a ficar evidentes. De um lado, estavam os chamados “autênticos”, políticos de ideologia definida, à centro-esquerda, e que participaram da fundação do movimento, como Ulysses Guimarães e Roberto Requião; do outro, os “moderados”, muitos ligados a grandes produtores rurais e que pregavam uma atuação pragmática da legenda, contando inclusive com ex-quadros da Arena – José Sarney, por exemplo, assim como o pai e o avô materno do senador Veneziano Vital do Rêgo.
Com o retorno do pluripartidarismo em 1979, os políticos à esquerda do MDB refundaram o PCB, o PCdoB e o PSB, migrando para estes partidos. Seis anos depois, em 1985, morreu Tancredo, eleito indiretamente para a Presidência da República, e o MDB, de oposição, tornou-se situação pela primeira vez. Os “autênticos”, porém, negaram apoio a Sarney, enquanto os “moderados” participaram do seu governo.
Para Rodrigo Patto Sá Motta, 58 anos, professor titular de História na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a chegada do MDB ao poder foi determinante para que o partido assumisse a face que tem hoje, “mais comprometido com as elites econômicas do que com um programa de centro-esquerda”. “Enquanto era oposição à ditadura, o partido não tinha acesso a recursos e cargos, e portanto, salvo raras exceções, não atraía políticos de perfil oportunista. Depois da redemocratização, o MDB cresceu muito, elegendo grandes bancadas, governadores e prefeitos, o que favoreceu a entrada de personagens à direita no partido”, explica.
Além disso, desde a origem do MDB o que unia suas diferentes correntes era a luta contra a ditadura e pela democracia. Com o fim do regime, essa bandeira perdeu parte do sentido. “Isso contribuiu para a saída de pessoas de esquerda e centro-esquerda, atraindo, por outro lado, ex-arenistas e políticos mais jovens, sem um compromisso ideológico fixo”, completa o professor.
Já o PL, antigo Partido da República (PR), foi registrado em 2006. O partido do ex-presidente Bolsonaro elegeu quatro prefeitos de capitais nas últimas eleições. Também foi a legenda que mais venceu em cidades com mais de 200 mil habitantes.
A reportagem procurou a Assessoria de Imprensa do PL, mas não recebeu resposta até a publicação. A Assessoria de Imprensa do MDB respondeu em uma carta para edição. A Assessoria de Imprensa do MDB lamentou o foco da reportagem, que “usa como critério um número absoluto para afirmar que o partido tem mais políticos que seriam ligados a escravagistas”. A assessoria do partido destacou suas “quase seis décadas de funcionamento com os mesmos valores em defesa intransigente do Estado Democrático de Direito por meio do diálogo, da moderação e do equilíbrio”. Também que, “em 1968, apenas dois anos após ser criado, o MDB elegeu a primeira mulher negra vereadora da cidade de São Paulo: Theodosina Ribeiro. Dois anos depois, ela foi eleita a primeira deputada estadual negra do Estado de São Paulo. Em 1973, foi a única mulher a votar como delegada na Convenção Nacional do MDB que definiu em lançar a chamada anticandidatura de Ulysses Guimarães à presidência da República, evento político fundamental para o início da derrota da da ditadura militar”.
Ainda na carta, o MDB destacou na última eleição municipal, “foi o partido que mais elegeu pretos e pardos (3.929 pessoas)”. O partido também informou que “atualmente, o MDB Mulher é presidido por uma mulher negra, da comunidade da Mangueira, no Rio de Janeiro. Seu nome é Kâtia Lôbo. Até abril deste ano, a primeira mulher negra da história comandou a Secretaria de Cultura de São Paulo, Aline Torres, atual presidente do MDB Afro, núcleo responsável por estimular e desenvolver a maior participação dos negros na política partidária” e que, “em 2021, o MDB sediou o primeiro seminário negro partidário da história, com a participação com mais de uma dezena de siglas (PT, PSDB, PSB, DEM, PDT, PCdoB, Republicanos, Cidadania, PV, Solidariedade e Podemos). Leia a íntegra.