A investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center
Ex-presidentes do Brasil, senadores da República e governadores de estados brasileiros. Todos esses importantes cargos têm algo em comum: foram e são ocupados por pessoas que descendem de homens e mulheres que teriam alguma relação com pessoas escravizadas no país.
Essa é a conclusão principal do Projeto Escravizadores, investigação inédita feita pela Agência Pública que mapeou os antepassados de mais de cem autoridades brasileiras do Executivo e Legislativo para identificar se havia casos de uso de mão de obra escravizada.
O resultado do mapeamento é que, dos 116 investigados, ao menos 33 teriam antepassados que tiveram relação com pessoas escravizadas. Muitos dos políticos sequer conheciam seus antepassados ou mantêm relação próxima com a sua linhagem.
Veja abaixo quem são essas pessoas e seus familiares clicando nas imagens
Dos oito presidentes da República após o fim da ditadura de 1964, metade entra nessa lista: José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
Dos 81 senadores, 16, um quinto, também se enquadram nessa situação. São eles: Augusta Brito (PT-CE), Carlos Portinho (PL-RJ), Carlos Viana (Podemos-MG), Cid Ferreira Gomes (PSB-CE), Ciro Nogueira (PP-PI), Efraim Filho (União-PB), Fernando Dueire (MDB-PE), Jader Barbalho (MDB-PA), Jayme Campos (União-MT), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Marcos do Val (Podemos-ES), Marcos Pontes (PL-SP), Rogério Marinho (PL-RN), Soraya Thronicke (Podemos-MS), Tereza Cristina (PP-MS) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PP).
Dos 27 governadores, quase metade, 13, também entraram no levantamento: Carlos Brandão Júnior (PSB-MA), Cláudio Castro (PL-RJ), Eduardo Riedel (PSDB-MS), Fátima Bezerra (PT-RN), Gladson Camelli (PP-AC), Helder Barbalho (MDB-PA), João Azevêdo (PSB-PB), Jorginho Mello (PL-SC), Rafael Fonteles (PT-PI), Raquel Lyra (PSDB-PE), Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União-GO), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP).
Escravizados nas plantações, nas casas e no comércio
São várias as relações dos antepassados das autoridades brasileiras com a escravidão. O tataravô do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, era o coronel José Manoel da Silva e Oliveira, nascido por volta de 1771, em Minas Gerais. O militar foi uma importante figura a comandar a exploração de ouro nas antigas capitanias de Minas e Goiás. Segundo registros históricos, em uma dessas empreitadas para tentar achar novos pontos de mineração, ele teria usado pessoas escravizadas, que morreram no caminho de forma trágica devido a doenças.
A investigação encontrou diversos casos de antepassados de políticos atuais que teriam usado pessoas escravizadas em fazendas, no plantio e colheita de cana-de-açúcar, para produção de algodão e em fazendas de fumo, no Recôncavo Baiano.
Também há casos de pessoas escravizadas que viveriam nas casas dos senhores, acompanhando e cuidando de idosos, conforme mencionam testamentos, e outras que viajavam em companhia de seus escravizadores. Encontramos também registros de compra a venda de escravizados e até mesmo de aluguel dessas pessoas.
“Não eram só os grandes proprietários de terra que tinham escravizados, mas [também] comerciantes, pessoas com pequenas propriedades e que muitas vezes tinham propriedades de plantio só para consumo próprio ou no máximo para venda local, mas não necessariamente para exportação e que tinham um, dois escravizados ali que faziam esse trabalho”, comenta a historiadora e educadora social Joana Rezende.
“Muitas pessoas tinham escravizados que, por exemplo, alugavam para outras pessoas, para outras propriedades […] Haviam essas várias formas de, digamos assim, usar um escravizado, não só para plantação, não só nas lavouras”, completa.
Como a investigação foi feita
Para chegar a essas conclusões, a Pública definiu uma metodologia de investigação com os pesquisadores de genealogia do Núcleo de Estudos Paranaenses da Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenados pelo sociólogo e professor Ricardo Oliveira. Segundo o pesquisador, essas estruturas de poder e parentesco são um fenômeno genealógico, de modo que “ocorrem transmissões de heranças, de renda, patrimônio, escolaridade, e este temas são decisivos para entendermos o status quo”.
Ele cita que famílias ricas no século 21 são formadas, em boa parte, pelos mesmos grupos familiares ricos do século 20 – uma estrutura originada através de casamentos e alianças no período imperial e no colonial. “Com isso há um núcleo duro de continuidade social da classe dominante”, conclui.
Ao investigar o período da escravidão e a classe dominante tradicional, o pesquisador comenta que a presença no poder de pessoas com antepassados escravizadores está ligada a uma estrutura agrária, com grandes fazendeiros escravistas que surgiram com a distribuição das primeiras sesmarias. E, para investigar essas relações, a genealogia utiliza documentos que surgiram com o período republicano (registros civis, de casamento e nascimento e óbito), e, antes disso, no século 19, a igreja controlava a demografia com registros de batismo e matrimônio, entre outros.
A partir daí, investigamos cerca de 500 documentos, entre registros paroquiais e cartorários, jornais antigos em hemerotecas e arquivos públicos, e trabalhos acadêmicos de diversas universidades brasileiras. Ao todo, foram documentados mais de 200 parentescos.
Todos os 33 políticos cujos antepassados teriam relações com a escravidão foram procurados pela Pública e tiveram tempo para avaliar a genealogia e os documentos apresentados e responder à reportagem.
A metodologia completa você pode ler aqui.
É importante ressaltar que os demais políticos que não entraram no grupo dos 33 podem ter tido familiares com relação com a escravidão. A carência de documentos e a dificuldade de acesso a registros históricos impedem que se levantem, com precisão, todas as relações escravistas da genealogia das autoridades.
A investigação tem inspiração em iniciativas similares que foram realizadas nos Estados Unidos, pela Reuters, que revelou que mais de 110 membros da alta classe política americana são descendentes de escravizadores, e no Reino Unido, pelo Guardian, cujo conselho financiou uma pesquisa sobre as ligações do fundador do jornal e seus financiadores com o tráfico negreiro.
O projeto escravizadores quer seguir pesquisando essas conexões. Nosso objetivo é investigar ainda o Judiciário e outras autoridades do Executivo e Legislativo, como os deputados.
A dívida do Estado brasileiro pela escravidão
A escravidão foi utilizada na colonização do Brasil desde os princípios das atividades econômicas, gerando riquezas para os portugueses e, em seguida, para os donos de escravizados nascidos aqui. Como pontua Danilo Marques, doutor em história e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), existem registros de tráfico de pessoas escravizadas já no primeiro século de colonização do Brasil e, com isso, também histórias da resistência dessas pessoas.
“A gente tem os primeiros navios negreiros datados da década de 1550, o início dos engenhos de açúcar no Nordeste, como destino final desses africanos e africanas que seriam escravizados e escravizadas. E você tem, portanto, as primeiras informações de quilombos já em torno de 1570, na Bahia, uma revolta escrava em Porto Calvo [Alagoas] por volta de 1590, que provavelmente seria o início do quilombo dos Palmares”, comenta.
O doutor em história e professor do Universidade de São Paulo (USP) Alain El Youssef, ressalta que a escravidão não é uma prática que foi criada com o imperialismo das Américas, mas foi aqui que ganhou contornos de uma atividade comercial, que fazia a engrenagem econômica da produção colonial girar, mas também era em si uma fonte de lucro para quem traficava essas pessoas.
“Havia, por exemplo, escravidão na África, como havia escravidão em muitos outros continentes, em muitas outras sociedades. A questão é que essa escravidão não era uma escravidão comercial, como a gente está acostumado a ver no processo de colonização do Brasil, e depois no próprio século 19, quando o Brasil já é um país independente. Ou seja, ninguém escravizava uma pessoa nas sociedades africanas para vendê-la. O que havia, na verdade, era uma escravidão que era resquício, que era fruto de conflitos entre duas ou mais comunidades”, comenta.
Para a doutora em história e professora de história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Valéria Gomes Costa, a escravidão – e a forma como foi abolida, sem compensações ou direitos para os escravizados – deixou uma dívida com os descendentes das pessoas privadas de liberdade. “O estado republicano tem uma dívida imensa e impagável com a população negra. Prometeu e não cumpriu, com a cidadania, com moradia digna, educação, saúde”, avalia.
Iniciativas de reparação, que responsabilizam o estado e instituições ligadas ao governo brasileiro, já estão se tornando realidade no Brasil. Um caso recente é o que envolve o Banco do Brasil, que teve as relações de financiamento do tráfico de pessoas escravizadas expostas por um grupo de pesquisadores ano passado. O levantamento já levou à abertura de um inquérito civil contra a instituição.
A historiadora Joana Rezende defende que essa reparação deve acontecer inclusive na forma de preservação, pesquisa e divulgação dos registros que documentam a escravidão no Brasil, que devem ser acompanhados de uma reflexão sobre como as pessoas sem liberdade eram retratadas.
“Boa parte dos documentos que a gente tem nesse período são documentos institucionais, de cartórios, processos legais, legislativos, até mesmo jornais. Estamos falando de um momento que dificilmente as pessoas escravizadas teriam acesso a produzir esses documentos ou serem representadas como personagens ativos. Muitas vezes, a apreensão que nós temos da vida, da experiência dos escravizados, é mediada por um escrivão, um político, algum representante que não necessariamente colocava aquela pessoa como pessoa, até porque elas não eram vistas dessa forma”, pondera.
A historiadora defende que esse trabalho de resgate e reflexão crítica sobre o período escravista deve ser uma política pública do Estado brasileiro. “Cabe ao governo, não somente através dos arquivos nacionais, da preservação dos arquivos, das políticas de resgate à documentação, mas também a partir do incentivo à pesquisa, com linhas específicas voltadas para a recuperação dessa memória”, afirma.