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A exemplo de milhões de ucranianos e russos, Tamilla Imanova, Grigory Vaypan e Daria Guskova tiveram suas vidas profundamente alteradas a partir de fevereiro de 2022, quando Vladimir Putin decidiu invadir a Ucrânia e iniciar a guerra. Desde então, mais de 11,7 mil civis foram mortos e 6,2 milhões foram diretamente impactados na Ucrânia, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), além de 31 mil soldados ucranianos e cerca de 70 mil soldados russos mortos. Mas um outro impacto também ocorre dentro da Rússia, particularmente entre os críticos da guerra.
Nascidos e bastante atuantes na Rússia em suas profissões até o início do conflito, os advogados Imanova e Vaypan e a jornalista Guskova tiveram que sair do país e buscar proteção em outros lugares da Europa. São três ativistas de direitos humanos que nos últimos dias vieram à América do Sul para denunciar as perseguições contra a oposição na Rússia e pedir o fim do conflito. Na semana passada, estiveram em Brasília após reuniões com jornalistas e diplomatas em Buenos Aires e São Paulo. Também participaram de um debate na Universidade de Brasília (UnB). Eles querem sensibilizar os sul-americanos para um conflito que parece tão distante e ignorado pela população.
“Há certas coisas sobre as quais não podemos nos abster. Nesta guerra não há neutralidade. Você é a favor do agressor ou é a favor da liberdade e da democracia. O fato de alguém ficar calado, seja dentro da Rússia ou fora da Rússia, em qualquer continente, se você fica calado, então você habilita Putin. Se você ficar calado, então você apoia Putin, Não há lugar onde se esconder”, disse Vaypan em um encontro na última sexta-feira (28) com jornalistas de quatro veículos, incluindo a Agência Pública.
Na Rússia, segundo relatórios de organizações de direitos humanos, algumas das muitas consequências do conflito são o acirramento da perseguição a críticos da guerra, o aumento da censura nos meios de comunicação e o cerco, com apoio de decisões do Judiciário, a organizações não governamentais.
Relatório da Human Rights Watch apontou, no ano passado, que as autoridades russas atuam para “erradicar internamente qualquer dissidência sobre a guerra ou as políticas domésticas do Kremlin”. “Adotaram e aplicaram novas legislações repressivas, emitiram longas sentenças de prisão por discursos pacíficos contra a guerra e fecharam à força vários grupos notáveis de direitos humanos.”
Um dos grupos liquidados por decisão da Suprema Corte foi um dos mais antigos e laureados na Rússia, o Memorial. Criado no final dos anos 1980 a princípio com foco nos crimes da era stalinista, ele se tornou um importante canal de denúncias sobre as arbitrariedades do regime Putin. Em 2022, o Memorial foi um dos três agraciados com o Prêmio Nobel da Paz. Em fevereiro de 2024, um dos seus fundadores, Oleg Orlov, foi preso e condenado a 2,5 anos de prisão por supostamente “desacreditar as Forças Armadas”.
Vaypan e Imanova há anos são colaboradores do Memorial. Após a interdição judicial da organização e uma onda de detenções e perseguições contra advogados de direitos humanos, acusados de “traidores”, eles tiveram que ir viver em outros países. Formada em direito e especializada em ciência política, Imanova, 27 anos, submeteu ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a organismos da ONU mais de 50 pedidos de investigação sobre “direito à vida, proibição de tortura, liberdade de expressão, liberdade de reunião, não discriminação e outros tópicos”. Ela rejeita o rótulo de heroína dos direitos humanos.
“As pessoas [que continuam] dentro do país são as verdadeiras pessoas corajosas. Vocês podem estar dizendo isso sobre nós, mas não me sinto corajosa desde que deixei o país. Eu me sinto segura. Mas meus amigos, minha família, meus professores que foram demitidos da Faculdade de Direito por falarem a verdade, essas são as pessoas corajosas, e sendo inspirado por eles estou aqui diante de vocês.”
Grigory Vaypan, 34 anos, é um conhecido acadêmico e ativista pelos direitos humanos na Rússia e recebeu o prêmio do Grupo Helsinki de Direitos Humanos em 2022. Ele foi o autor principal de dois relatórios que revelavam abusos contra os direitos humanos na Rússia. Em julho de 2024, o Ministério da Justiça da Rússia chamou-o de “agente estrangeiro”, acusação rebatida pela Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH).
Vaypan teve que deixar o seu país em novembro de 2022 após ter sofrido ameaças de retaliação judicial. Segundo o advogado, a presença do trio no Brasil, que teve o apoio de embaixadas europeias como a da Finlândia, tem como propósitos “compreender quais são as atitudes públicas no Brasil” em relação ao conflito e “partilhar como a situação política na Rússia impacta a guerra e o resto do mundo”.
A Pública indagou como eles veem a posição do atual governo brasileiro sobre a guerra. “Estamos cientes da proposta de paz que Brasil e China apresentaram no início deste ano. Ela é centrada em alcançar a paz na Ucrânia e em certos aspectos humanitários, como trocas de prisioneiros de guerra ou de crianças ucranianas. Achamos que o aspecto humanitário é sempre algo que merece ser feito. Mas, fundamentalmente, esta proposta procura abordar a guerra na Ucrânia sem compreender ou aparentemente sem compreender a causa raiz da guerra. Como eu disse, é uma guerra criminosa em que um Estado é o agressor e o outro estado é a vítima. A história nos ensina que não pode haver paz sem justiça. A proposta do Brasil e da China é uma proposta de paz sem justiça.”
Vaypan apontou que a escassez de debate público no Brasil sobre a guerra não é uma particularidade brasileira, pode ser vista em outras partes do mundo naquilo que ele chamou de “maioria silenciosa do mundo”.
“Sim, a maioria dos países apoiou a Ucrânia na Assembleia Geral das Nações Unidas, especialmente nos primeiros dias e semanas da invasão em grande escala. Sim, a votação foi esmagadora. Os países condenaram a agressão da Rússia, mas sabemos que o apoio, se não diminuiu, tornou-se um tanto silenciado. E há certas coisas das quais não podemos nos abster. Nesta guerra não há neutralidade. […] Gostaria que muito mais russos tomassem partido e não tivessem medo.”
O advogado disse que cidadãos russos podem ir para a cadeia pelo que fazem ou dizem contra a guerra, mas não é assim em outras partes do mundo, e isso deveria estimular os críticos contra a guerra. “Putin não tem voz sobre o que os brasileiros pensam. As pessoas [russas] não podem colocar brasileiros na prisão. Putin não pode colocar os argentinos na prisão. Portanto, parece que as pessoas no mundo livre deveriam ter uma palavra a dizer sobre esta guerra. Claro, ela está longe [da América do Sul]. Mas o que as pessoas pensam do recente ataque à cidade ucraniana onde uma família inteira foi morta? Três crianças, de 10 e 8 anos e 2 meses. Uma mãe estava amamentando quando foi morta por um míssil russo. O mundo tem uma palavra a dizer sobre isso? O mundo deveria ter uma palavra a dizer sobre isso? Eu penso que sim.”
Daria Guskova é jornalista desde 2020 do site Mediazona, que tem sofrido uma intensa perseguição do regime Putin e é considerado um dos últimos meios independentes no país. Ele foi fundado pelas integrantes da banda de punk rock Pussy Riot, engajado na luta pelos direitos das mulheres e um alvo do governo russo. Três integrantes da banda foram presas diversas vezes e condenadas à prisão. Uma delas, Maria Alyokhina, teve que sair do país, segundo ela, disfarçada de entregadora de comida. Em 2020, ela foi entrevistada aqui pela Agência Pública.
A Mediazona tem divulgado inúmeras reportagens sobre aberrações contra os direitos humanos na Rússia, como torturas e prisões indiscriminadas de críticos do regime.
A jornalista Guskova também teve que se mudar de Moscou, onde se formou em jornalismo na Universidade Estatal Lomonosov em 2014. Até 2020, era ela a chefe do departamento de notícias do site.
“Acho que é importante frisar que, neste momento, todos os meios de comunicação de oposição na Rússia não podem ser acessados sem você comprar serviços de VPN. Para a maioria deles, é necessária uma conta num banco estrangeiro. E mais um problema, e para mim o mais assustador, é que as autoridades russas tentam forçar empresas como Google e Apple a excluir serviços VPN de suas lojas de aplicativos locais. É censura em diferentes níveis e a cada dia temos mais e mais maneiras de afastar as pessoas da informação.”
Segundo Guskova, o governo hoje “gasta uma grande quantidade de dinheiro do orçamento público com todos os canais de TV na Rússia” de forma a “transmitir apenas o ponto de vista oficial”. “É muito importante entender [esse mecanismo]. E para um grande número de russos que não vivem nos centros das cidades, mas apenas em cidades pequenas, como a minha, onde eu nasci, a televisão ainda é a principal fonte de informação.”
A jornalista entende que “esta é a principal razão pela qual o povo russo traduzirá as coisas da propaganda russa” de forma a concordar ou se manter inerte sobre a guerra. “Mas isso não significa que eles acreditem nessas coisas. Eles simplesmente não têm opinião própria porque é muito difícil criar sua própria opinião quando você tem apenas um lado da história. Para criar a sua opinião, você precisa dos dois, pelo menos, dos dois lados do conflito, mas você não pode acessar esses dois lados.”
Ela disse que, nesse cenário, é difícil subscrever as enquetes de opinião pública que indicam o apoio da maioria dos russos à guerra. Guskova contou que, em 2022, jornalistas da Rádio Europa Livre (REF) foram ouvir nas ruas da Rússia a opinião das pessoas sobre a guerra e um transeunte respondeu, sem esconder o rosto, “honestamente o que pensava”. Por isso, ele “está preso há cinco anos”. Pelo menos quatro jornalistas da RFE também estão presos neste momento.
“Isso significa que, se você não pode falar livremente, não pode ter números honestos de opinião pública. É por isso que eu peço que vocês não confiem em todos esses números, não são a imagem real. E o que podemos oferecer a vocês é contar histórias pessoais sobre a vida exata de pessoas na Rússia. E ainda tentamos fazer isso, ainda trabalhamos em campo na Rússia. E continuaremos a fazer esse trabalho o maior tempo possível, apesar de todos os riscos, e tentaremos documentar tudo o que está acontecendo agora.”