Os intervalos bíblicos em escolas se tornaram alvo de uma investida legislativa de parlamentares evangélicos e cristãos conservadores em Pernambuco, desde que a realização desses momentos de culto começou a ser questionada pela Secretaria de Educação (SEE-PE), pelo Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Pernambuco (Sintepe) e pelo Ministério Público do Estado (MPPE). As entidades vêm recebendo denúncias de que as programações, cuja participação geralmente é voluntária, teriam se tornado obrigatórias em algumas unidades de ensino e de que alunos de outras religiões não teriam o mesmo espaço de culto oferecido aos evangélicos ou cristãos.
Há ao menos dois projetos de lei em tramitação na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) que fazem defesa dos intervalos bíblicos e outros dois que chegaram à Câmara dos Deputados, em novembro deste ano, pelas mãos da vereadora de Recife Missionária Michele Collins (PP). Ela foi suplente da deputada federal Clarissa Tércio (PP) durante a campanha à prefeitura de Jaboatão dos Guararapes.
No último dia 11, o deputado estadual bolsonarista Joel da Harpa (PL) convocou uma audiência pública na Alepe para debater os intervalos bíblicos nas escolas públicas do estado. O assunto passou também a ser mobilizado intensamente por parlamentares evangélicos conservadores nas redes sociais. “Por que a perseguição contra os intervalos bíblicos, já que esses encontros conseguem o que nem a direção das escolas nem a polícia é capaz de fazer: tirar os jovens das drogas e da prostituição?”, disse o deputado.
A maior articulação dos parlamentares em torno do tema começou quando, em abril passado, o MPPE abriu um procedimento administrativo para investigar o ensino religioso/laicidade nas unidades escolares da rede pública. Segundo o órgão, as investigações ainda estão em andamento. De acordo com a presidente do Sintepe, Ivete de Oliveira, há “denúncias sobre a realização de cultos evangélicos nas dependências de escolas estaduais, em espaços públicos e sem a participação de outras crenças”. Uma nota do MPPE diz que a prática também estaria ocorrendo “sem a orientação ou supervisão de funcionários das escolas”.
À Agência Pública, o sindicato informou que, “após pedido do MPPE, tem agrupado as denúncias que eram observadas apenas como casos isolados espalhados por Pernambuco”.
No mês seguinte, o deputado estadual cristão Abimael Santos (PL) apresentou um projeto de lei que prevê “sanções administrativas a quem inibir a liberdade religiosa, como a prática de intervalos bíblicos, com advertências e multas que poderão chegar até R$ 50 mil”. A proposta ainda está em tramitação.
Em setembro, o MPPE realizou um encontro com a Secretaria de Educação e o Sintepe, no qual foi decidido que o sindicato também iria agrupar denúncias sobre os encontros religiosos na rede pública e privada. Um mês depois, o deputado estadual evangélico Renato Antunes (PL) apresentou um projeto de lei que reconhece a importância dos intervalos bíblicos e, entre outras medidas, determina que “as instituições de ensino, faculdades e universidades públicas e particulares deverão disponibilizar espaços adequados e condizentes para a realização do Intervalo Bíblico”. A proposta está em tramitação.
A Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) também entrou no debate. A entidade fundada pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e conhecida por fazer lobby por agendas conservadoras no Congresso Nacional, solicitou ao MPPE, em outubro, o envio do procedimento administrativo e das denúncias. Procurada, a Anajure informou apenas que “está acompanhando o caso e a realização de audiências públicas” e que “tem oferecido orientação jurídica a respeito do tema”.
Os debates continuaram esquentando ao longo do ano até que uma audiência pública sobre o tema, que tinha sido convocada para o dia 27 de novembro, no Colégio Católico Salesiano de Recife, foi cancelada a pedido da direção da escola, por superlotação do espaço. O encontro foi interrompido pelo promotor de justiça do MPPE Salomão Ismail Filho, após xingamentos da plateia contra a presidenta do Sintepe, Ivete de Oliveira, que no momento apontava algumas denúncias de imposição de intervalos bíblicos, presença de bandas e pastores externos nos encontros e discriminação contra grupos de outras religiões.
Semanas antes da audiência, a vereadora Missionária Michele Collins , que estava na suplência de Clarissa Tércio, apresentou dois projetos de lei na Câmara dos Deputados. Em um deles, Collins assegura a realização “de ritos religiosos voluntários nas unidades de ensino públicas e privadas em todo território nacional”. Para as escolas que “impedirem a realização dos ritos, as multas poderão chegar até R$ 6 mil em caso de reincidência”. Em outro PL, o valor da multa poderá chegar a 30 salários-mínimos, “a quem interromper a realização do intervalo religioso”.
Atualmente os dois PLs de autoria de Collins estão em tramitação na Comissão de Educação, que em Brasília é presidida pelo deputado federal bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG). Em Brasília, o deputado federal Pastor Eurico (PL-PE) também tem levado a discussão sobre intervalos bíblicos para âmbito nacional. Ele fez um pronunciamento na Câmara Federal alegando que “entre os docentes não há o mesmo rigor e espanto em ensinar danças obscenas às crianças e poder colocar música imoral em apresentações”.
Desde novembro, a deputada federal Clarissa Tércio e seu esposo, o deputado estadual Júnior Tércio (PP-PE), têm acompanhado lideranças dos intervalos bíblicos nas escolas públicas da Região Metropolitana do Recife, como a Escola de Referência em Ensino Médio (Erem) Othon Paraíso, no bairro do Bongi. No dia quatro de dezembro, a deputada Michele Collins esteve na escola participando dos intervalos bíblicos para incentivar a prática.
Os políticos também estão convidando adolescentes evangélicos dessas escolas para participar de programas em rádios evangélicas, como a RBC, da Assembleia de Deus, e a Novas de Paz, que pertence aos Tércio. Em agosto, um representante da União Juventude Liberdade (UJL), um braço de direita do movimento estudantil, participou do programa Dia a Dia com Fé, da rádio RBC, para discutir ensino religioso nas escolas.
Mobilização nas redes
A audiência realizada no último dia 11 foi requerida pela Comissão de Segurança Pública e Defesa Social da Alepe, da qual o deputado estadual Joel da Harpa é membro. Ex-policial militar, o parlamentar convidou representantes da Polícia Militar de Pernambuco e do Corpo de Bombeiros do estado, além da Patrulha Escolar e o Colégio da Polícia Militar, para o encontro, que contou com o apoio de outros políticos bolsonaristas evangélicos e cristãos conservadores, como os vereadores Thiago Medina (PL), Paulo Muniz (PL) e Fred Ferreira (PL). Representantes da Igreja Batista também estavam presentes.
O pastor da Igreja Batista em Casa Forte Edvar Gimenez, que faz parte da diretoria da Convenção Batista de Pernambuco, foi convidado pelo gabinete de Joel da Harpa para participar da audiência, mas recusou. Apesar de ter sido diretor do Colégio Americano Batista, em Recife, onde presenciou a realização de intervalos bíblicos, Gimenez disse que é a favor dos intervalos bíblicos apenas de forma voluntária e com supervisão da escola. “Considerando o tempo que estamos vivendo e a função que a religião hoje desempenha, os encontros religiosos visam amar a Deus ou a uma ideologia político-partidária, como tem sido utilizada como estratégia pela extrema direita na educação?”
Joel da Harpa tem publicado vídeos no Instagram em defesa dos intervalos bíblicos com conteúdos LGBTfóbicos. “Os grupos LGTQIA seguem perseguindo a inocência das crianças. Por que podem ter acesso às coisas obscenas, mas não podem ter acesso à principal religião do país?”, diz um deles. Uma checagem do Coletivo Bereia, de jornalismo, desmentiu postagens desinformativas do ex-deputado federal e ex-prefeito de Jaboatão dos Guararapes (PE) Anderson Ferreira sobre uma suposta proibição dos intervalos e cerceamento da liberdade religiosa.
Os parlamentares têm repercutido postagens da conta Juntos pelo IB, no Instagram, criada pelos estudantes com o objetivo de recolher relatos de estudantes participantes de intervalos bíblicos. A conta já tem 1,1 mil seguidores e um abaixo-assinado, que já ultrapassa 17 mil assinaturas, “em defesa da liberdade religiosa na rede pública”. Eles têm dois grupos no WhatsApp com mais de mil membros.
Quem também tem mobilizado o tema nas redes sociais é o pastor Teo Hayashi, da igreja Zion Recife, que é próximo a Bolsonaro. Na sua conta pessoal do Instagram, ele acusa o Sintepe de perseguição cristã. “Pouco a pouco eles vão tachar a Bíblia como um livro de ódio, é isso que a esquerda deseja. Por isso, digo a você jovem evangélico: não desista, tome os espaços!”, diz o pastor, adepto à teologia do domínio, que entende que a igreja deve preparar líderes para dominar as sete esferas da sociedade, sendo a educação uma delas. “Se fossem um grupo de candomblé ou umbanda estariam tão preocupados em acabar? Chegou a hora de nos posicionarmos”, ressalta no mesmo vídeo.
A Pública procurou os parlamentares citados, mas não obteve respostas até a publicação.
Magali Cunha, fundadora do Coletivo Bereia e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), diz que a educação “se tornou um dos alvos da ofensiva conservadora não apenas em Pernambuco, como também na Câmara dos Deputados”. Em 2023, um levantamento da Pública com dados do Iser mostrou que a educação foi o principal foco dos projetos de lei apresentados por políticos considerados católicos ou evangélicos.
“Os intervalos bíblicos nada mais são do que um outro gancho político capturado pelos grupos ultraconservadores no país. Isso vem como uma disputa que se intensificou durante o governo Bolsonaro, quando o MEC [Ministério da Educação] foi colocado como um ministério estratégico para aproximar o conservadorismo das escolas”, diz.
Candomblé foi proibido em escola pública
Além de colher denúncias sobre a obrigatoriedade de intervalos bíblicos, o Sintepe recebeu relatos de proibição de outras práticas religiosas, como no Erem Confederação do Equador, em Paudalho, cidade da Mata Norte de Pernambuco, onde duas estudantes teriam sofrido discriminação por serem praticantes de candomblé.
“Elas chegaram me dizendo que os alunos estavam proferindo xingamentos dizendo que eram macumbeiras, filhas do diabo”, disse, em condição de anonimato, um dos professores das alunas à Pública. Segundo ele, a unidade de ensino não tomou providências. “Desenvolvemos rodas de conversa sobre o tema durante as aulas vagas. Esse não era uma demanda, mas se tornou após percebermos um aumento de casos de discriminação racial e de gênero motivados por um comportamento relgioso ultraconservador.”
As discriminações contra um grupo de estudantes praticantes do candomblé também teriam acontecido na Escola Técnica Estadual (ETE) Aderico Alves de Vasconcelos, em Goiânia. Um dos professores da escola contou, também em condição de anonimato, que eles foram desestimulados pela direção de ensino a realizar um intervalo de candomblé, enquanto o intervalo evangélico e o católico continuaram sendo realizados. “Desde 2022, aqui na escola esse grupo [de alunos evangélicos] passou a se consolidar, influenciado por igrejas neopentecostais, promovendo uma certa resistência de outros estudantes , que têm se retirado das aulas que abordam cultura negra e suas tradições, mesmo havendo uma lei federal que obrigue a inclusão desse ensino”, disse.
Também na Erem Confederação do Equador, o professor Marcondes Rodrigues comenta que, em maio, os alunos foram incentivados a participar dos encontros Marianas, uma celebração tradicional católica da cidade que ocorre durante todo o mês. “A presença era obrigatória e alguns professores atribuíam atividades valendo nota”, diz.
Há dois anos, a escola deixou de ter dois intervalos bíblicos, um evangélico e um católico, depois que professores precisaram levar alguns alunos ao hospital, após um “momento de transe religioso liderado pela Renovação Carismática [Católica] da cidade”. Ele não vê problema nos intervalos bíblicos voluntários, mas é crítico à institucionalização desses momentos nas escolas. “Aqui na escola, em decorrência do que estava sendo ensinado nesses intervalos, um estudante passou a sofrer transfobia durante o seu processo de transição. Isso fere a laicidade do Estado”, diz.
A reportagem entrou em contato com as direções das escolas, mas não recebeu resposta até a publicação.