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As crônicas de fogo e (bem pouco) gelo da nova era Trump

Presidente eleito dos EUA vive negando o aquecimento global, mas nem por isso deixa de fazer planos para lucrar com ele

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10 de janeiro de 2025
06:00

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No primeiro texto que escrevi para a newsletter, em abril de 2023, comentei sobre uma série que tinha acabado de assistir e que tinha me impactado muito, muito mesmo. Extrapolations, que recentemente havia sido lançada pela Apple TV, projeta como podem ser as próximas décadas da humanidade diante do aquecimento global e das mudanças climáticas.

A série é impactante porque, apesar de ser uma ficção futurista, ela não tem nada de distópica. Pelo contrário, é ancorada em respeitadas pesquisas científicas que projetam como o mundo deve se portar nas próximas décadas sem uma redução drástica das emissões de gases de efeito estufa. 

Mais do que isso, esse futuro retratado pelo show é logo ali, a partir de 2037, e ele traz uma verossimilhança profundamente incômoda com o que já estamos vendo acontecer.

Voltei à série nesta semana diante da bravata mais recente de Donald Trump de querer anexar a Groenlândia, ilha gelada localizada no Ártico, que é parte da Dinamarca, mas que Trump diz ser crítica para a segurança nacional dos Estados Unidos. 

Alguns textos publicados pela imprensa norte-americana nos últimos dias dão uma dimensão bem mais prosaica de quais seriam os interesses reais dele. E, bem… têm tudo a ver com o aquecimento global.

Trump, que toma posse como presidente no próximo dia 20, é um conhecido negacionista das mudanças climáticas, mas parece que isso não é nenhum impeditivo para que ele não queira lucrar com elas. O Ártico é o lugar que mais está aquecendo em todo o planeta, e a Groenlândia rapidamente está descongelando. 

“Desde 2002, a Groenlândia perdeu 5,9 trilhões de toneladas de gelo, o suficiente para cobrir praticamente todo o estado do Mato Grosso com uma camada de oito metros de espessura de gelo”, escreveu no fim do ano passado a colega Ana Lucia Azevedo, em O Globo. Se ela derreter completamente, pode levar a um aumento de 7 metros no nível do mar, segundo estimativas da Nasa.

Agora, adivinha o que tem abaixo do manto de gelo?

“O recuo do gelo da Groenlândia poderia abrir áreas para perfuração de petróleo e gás e locais para exploração de minerais críticos, o que já atraiu interesse internacional e levantou preocupações sobre danos ambientais. Além disso, o tráfego de navios no Ártico aumentou 37% na última década, de acordo com relatório do Conselho Ártico, com o declínio do gelo marinho. Mais derretimento poderia abrir ainda mais rotas comerciais”, apontou a jornalista norte-americana Lisa Friedman, em newsletter do New York Times.

Outra reportagem do NYTimes destacou que entre os minerais estão cobre, lítio, níquel e cobalto, essenciais para o rápido crescimento das indústrias de turbinas eólicas, linhas de transmissão, baterias e veículos elétricos. 

Esse potencial é retratado no primeiro episódio de Extrapolations. Em 2037, com a temperatura média do planeta já 1,55°C mais quente que no período pré-industrial, o gelo na Groenlândia praticamente desapareceu no verão, e os minérios começam a aflorar e a atrair o interesse de diversos países. 

A crueldade vem a seguir. O vilão da história – o bilionário megalomaníaco metido a “salvar” o mundo com novas tecnologias – propõe que países reunidos na 42ª Conferência do Clima da ONU concordem em deixar o mundo aquecer até 2,3°C. Em troca, ele oferece quebrar a patente de uma solução para a dessalinização da água a países do Oriente Médio que já não têm mais acesso ao recurso.

O raciocínio por trás é: com o clima mais quente, mais gelo vai derreter, mais metais serão acessados que poderão gerar mais matéria-prima para tecnologias que, depois, serão usadas para combater o aquecimento global. Sentiu a falácia? É igualzinho quem defende que a exploração de mais combustíveis fósseis é o que vai financiar a transição energética. Deixa o circo pegar fogo mais um pouquinho porque com o lucro a gente resolve depois o problema.

Ou não resolve, afinal, “não estaremos vivos até lá mesmo”, como diz outro personagem canalha da série. “Mas seremos enterrados em caixões de ouro.”

Você não consegue imaginar esse pensamento passando pela cabeça de Trump, de Elon Musk? Só que isso não faz o menor sentido, porque quanto mais a gente deixar o planeta aquecer, mais vamos TODOS sofrer. 

Veja que a Terra já está atingindo agora esse nível de aquecimento global – e não depois de 2030, como se imaginava. Nesta sexta-feira (10), as organizações meteorológicas internacionais bateram o martelo de que 2024 não foi apenas o ano mais quente do registro histórico como o primeiro a ultrapassar a marca de 1,5°C mais quente que o período pré-industrial. 

E não ultrapassou por pouco. A temperatura média do planeta no ano passado foi 1,6°C mais quente do que a média do período entre 1850 e 1900, de acordo com dados do observatório Copernicus, da União Europeia, superando em 0,12°C a temperatura de 2023, que já tinha sido o mais quente dos registros. Os últimos dez anos (2015-2024) foram os 10 anos mais quentes da história.

A gente já viu bem o que isso significou no ano passado em todo mundo. Nos Estados Unidos, inclusive – com uma sequência de furacões devastadores, secas e enchentes que tiraram vidas e afetaram muito a economia do país. As tragédias, porém, não foram decisivas na hora das eleições.

E a realidade continua batendo na porta em 2025, como escancaram os terríveis incêndios florestais que atingem neste momento Los Angeles, na Califórnia. Aliás, tal qual em Extrapolations.

O inverno na Califórnia está anormalmente seco, seguindo um período de meses com baixos níveis de chuva. “Los Angeles enfrentou o verão mais quente de sua história e recebeu apenas 2% da chuva normal no início da temporada chuvosa deste ano – o período mais seco já registrado”, afirma o meteorologista Eric Holthaus, no Guardian.

“Somado a isso, temos a histórica tempestade de vento Santa Ana desta semana, que, por si só, já quebrou recordes de velocidade de vento na região em qualquer época do ano, com rajadas de até 160 km/h no início da quarta-feira”, continua ele. É uma força próxima a de um furacão. 

“Esses elementos se combinaram para criar condições extremas propícias para incêndios florestais que, por si só, já sobrecarregariam os recursos do estado, mesmo no auge da temporada de incêndios de verão – quanto mais em janeiro, quando muitos bombeiros estão de licença e equipamentos foram armazenados”, aponta Holthaus.

De acordo com um estudo divulgado no ano passado, a incidência de incêndios de rápido alastramento como esses de agora, que queimam pelo menos 1.600 hectares em um único dia, cresceu 249% no oeste dos Estados Unidos entre 2001 e 2020. Na Califórnia, eles ficaram 398% mais rápidos.

A situação é dramática. Enquanto o presidente Joe Biden, em seus últimos dias de governo, está rapidamente mobilizando esforços para ajudar a região, Trump está só esbravejando e culpando o governador da Califórnia, que é do partido democrata. 

Sempre bom lembrar que, quando foi presidente pela primeira vez, Trump chegou a se recusar a aprovar uma ajuda emergencial depois de o estado ser atingido por incêndios florestais, primeiro em 2018 e depois em 2020. Em 2025, antes mesmo de assumir, ele está preferindo mirar o degelo da Groenlândia.

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