O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou mais de 70 atos no seu primeiro dia de governo. No pacote de políticas de combate ao narcotráfico, a Casa Branca anunciou um ato extraordinário que coloca o país em “emergência nacional” e passa a classificar cartéis e organizações criminosas como terroristas.
O anúncio acendeu um sinal de alerta no Ocidente e, em especial, para os latino-americanos, sobre a possibilidade de o governo estadunidense realizar incursões militares nos países que compõem o continente.
A lista de organizações criminosas e cartéis que atuam em solo estadunidense e que passarão a ser classificadas como terroristas deve ficar pronta em até 15 após o anúncio do ato. No entanto, a Casa Branca cita dois exemplos de facções criminosas, o La Mara Salvatrucha 13, de salvadorenhos, e o Trem de Aragua, de origem venezuelana.
De forma genérica, o republicano também cita os cartéis mexicanos e sua atuação no sul dos Estados Unidos, na fronteira entre os dois países, uma área de fluxo imigratório intenso. A ordem descreveu que “em certas partes do México, eles funcionam como entidades quase governamentais, controlando quase todos os aspectos da sociedade”.
Embora seja a maior organização criminosa das Américas em exercício, o Primeiro Comando da Capital (PCC), que também tem indícios de atuação nos Estados Unidos, não foi citado no texto. Segundo o professor e pesquisador Thiago Rodrigues, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), a ordem executiva “tem um tom altamente repressivo” e “parece ser um aceno de apoio a perspectivas de ultradireita na América Latina”.
“O Trem de Arágua me parece ter sido citado como uma forma de abrir espaço para uma intervenção contra o regime bolivariano da Venezuela”, avaliou Thiago Rodrigues.
Em julho de 2024, o Departamento de Estados dos EUA informou que o Trem de Aragua é uma “crescente ameaça que representa para as comunidades americanas”. Além disso, pagaria 12 milhões de dólares a quem fornecesse informações sobre os líderes da facção venezuelana, que estariam escondidos na Colômbia e Venezuela.
No mesmo dia em que a Casa Branca anunciou o combate ao Trem de Aragua, o Ministério Público da Venezuela havia declarado que a organização criminosa já estava desmantelada, em virtude de duas operações que culminaram em 48 prisões, incluindo a dos líderes da facção.
O Trem de Aragua teve origem no estado de Aragua, no norte da Venezuela, nos anos 2010. Segundo a apuração da jornalista e escritora venezuelana Ronna Rísquez, autora do livro El Tren de Aragua. La banda que revolucionó el crimen organizado en América Latina, o grupo também teria estabelecido relações de parceria com o Primeiro Comando da Capital (PCC) na Bolívia, onde supostamente ocorreu troca de armas.
Há indícios de atuação do Trem de Aragua em pelo menos sete países, sendo eles Brasil, Colômbia, Peru, Chile, Equador, Bolívia e Estados Unidos, conforme a declaração da Casa Branca na ordem extraordinária.
Nos Estados Unidos, os governadores do Texas e Colorado afirmaram ter prendido 31 supostos integrantes do Trem de Aragua, de acordo com a apuração do jornal O Globo.
Recado indireto ao Brasil
Após o anúncio da ordem extraordinária, instaurou-se a preocupação de quais ações os Estados Unidos poderiam tomar com relação ao Brasil, berço de uma das maiores facções criminosas em atuação, o Primeiro Comando da Capital (PCC), e com atuações em solo estadunidense.
O professor de relações internacionais Thiago Rodrigues diz que, embora não cite o PCC, o anúncio pode ser interpretado como um recado indireto para o Brasil.
“Existe um potencial teórico, conceitual para isso. Eu não acho que o documento, no momento, diga que há a possibilidade concreta, próxima de uma intervenção na Amazônia a título de combate a essas organizações. Mas [também] não há nada no documento que impeça chegar a isso”, disse.
Ato político
A ordem de Trump faz citação também à Mara Salvatrucha 13, conhecida como MS-13, uma organização criminosa que nasceu nas ruas de Los Angeles, na Califórnia, ainda na década de 1980, composta majoritariamente por salvadorenhos.
Thiago Rodrigues explica que o processo massivo de deportação de supostos integrantes da gangue, feito ainda no governo do ex-presidente Ronald Reagan (1981-1988), levou a organização criminosa a se expandir em El Salvador.
Na avaliação do professor, a citação à organização criminosa salvadorenha é uma demonstração de apoio ao governo de ultradireita do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, um dos convidados para comparecer à posse de Trump, em 20 de janeiro.
“A citação ao grupo de El Salvador [MS-13] me parece mais destinada a fortalecer um governo de ultradireita, que é o do Bukele, do que colocar esse governo sob a mira de Washington.”
A ação da gangue já despertava preocupações a Donald Trump ainda no seu primeiro mandato. Em abril de 2014, quatro pessoas foram encontradas decapitadas em uma floresta de Long Island e a autoria seria da gangue MS-13. Na época, o presidente havia classificado o grupo como “perverso”.
O ultradireitista Bukele trata a MS-13 como o seu principal alvo, tendo ganhado espaço no noticiário internacional após prender cerca de 2% da população de El Salvador como forma de combate ao crime organizado.
Guerra ao narcotráfico não mira na cannabis, diz professor
Em setembro de 2024, o então candidato republicado à Casa Branca declarou que votaria a favor da legalização da maconha para uso de adultos no estado da Flórida, o que o colocou em desacordo com o então governador do estado Gavin Newsom.
O posicionamento de Trump foi publicado, na época, na rede Truth Social, onde ele disse que “é hora de acabar com as prisões e encarceramentos desnecessários de adultos por pequenas quantidades de maconha para uso pessoal. Devemos também implementar regulamentações inteligentes, proporcionando ao mesmo tempo acesso aos adultos a produtos seguros e testados. Como morador da Flórida, votarei ‘SIM’ na emenda 3 em novembro”. O uso recreativo da maconha no estado segue proibida.
Na avaliação do professor Thiago Rodrigues, a política de combate ao narcotráfico nos Estados Unidos não deve atingir o processo de legalização da maconha, uma vez que o produto tem sido explorado pelo capital farmacêutico.
“Do ponto de vista do outro tipo de legalização, que é a legalização para consumo recreativo, também já há interesses bilionários que mobilizam, nos Estados Unidos, grandes corporações”, argumentou o docente.