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Há meses sob proteção da Força Nacional, indígenas denunciam abusos e lutam por demarcação

Reportagem
13 de janeiro de 2025
04:00

Há quase cinco anos, mulheres, crianças, jovens e idosos Guarani Kaiowá acordaram, na madrugada de 2 de janeiro de 2020, com invasores ateando fogo no local mais sagrado da Terra Indígena (TI) Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante (MS): a casa de reza da comunidade. A estrutura foi reerguida no território, um dos 25 à espera de demarcação em Mato Grosso do Sul, e hoje se mantém como símbolo da resistência indígena no extremo sul do estado.

A proteção da casa de reza nos últimos anos não se deu sem esforço. A comunidade sofre uma série de ameaças desde o início do atual governo Lula (PT): em março de 2023, houve pressão da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, com risco de despejo dos indígenas sem ordem judicial. Uma juíza local interveio, ordenando a retomada da demarcação que, de fato, avançou somente a partir de 30 de setembro deste ano. Em novembro, uma comissão da Justiça Federal da 3ª Região esteve na área para mapear áreas de fazendeiros reclamadas pelos indígenas, visando à demarcação.

A Agência Pública esteve recentemente no chamado Cone Sul de Mato Grosso do Sul, visitando Laranjeira Nhanderu e outras retomadas Guarani Kaiowá. Desde julho, a região passa por uma grave crise de segurança após seguidos ataques de pistoleiros e fazendeiros contra jovens indígenas. Uma das vítimas, de 20 anos, segue com uma bala alojada na cabeça. Também em julho, caminhonetes cercaram famílias em Caarapó (MS), com pistoleiros disparando armas de fogo e rojões. Uma jovem acabou ferida.

Por que isso importa?

  • Uma crise humanitária se instaurou na região e, mesmo com a presença da Força Nacional, sem a diminuição da tensão, as vidas de dezenas de indígenas segue sob risco.

No último dia 17 de dezembro, completaram-se cinco meses de presença contínua de agentes da Força Nacional em áreas ocupadas por indígenas. A reportagem apurou que não há sinal de diminuição da tensão na área – vide recentes denúncias de violência policial contra indígenas da Reserva Indígena de Dourados (MS), atacados durante um protesto por acesso à água em novembro.

As áreas sob conflito são cercadas por imensas lavouras de soja e de milho, além de pasto para os rebanhos bovinos, nas proximidades da fronteira com o Paraguai. “A gente tinha riqueza, com frutos e animais aqui do Cerrado, mas hoje em dia é só ‘arroz com carcaça de frango’, e olhe lá”, disse uma liderança indígena que pediu para não ser identificada por motivos de segurança.

No Cone Sul, quem fala abertamente sobre as intimidações contra indígenas Guarani Kaiowá e Terena recebe ameaças, processos e juras de morte de pistoleiros, fazendeiros e parte da elite local. Em outubro, um cacique virou alvo de um processo de calúnia por ter denunciado, em uma rádio local, a violência sofrida por seu povo – motivo, afinal, da presença da Força Nacional na área. Um produtor rural e um ex-vice-prefeito de Douradina são parte no processo, segundo apurado pela Pública.

Agrotóxico, uma arma química recorrente

Ainda no início de 2024, uma indígena Guarani Kaiowá grávida e seus familiares sentiram na pele os efeitos da pulverização de agrotóxicos em terras vizinhas à aldeia Jaguapiru, em Dourados. A consequência foi letal para a mulher de 32 anos, grávida, que morreu 24 horas depois de ter sido hospitalizada devido à exposição ao veneno. O caso fez com que, em julho, órgãos federais e estaduais conduzissem uma operação, apreendendo mais de 750 litros de agrotóxicos vencidos – por vezes usados em áreas muito próximas das comunidades Guarani Kaiowá.

O uso de veneno contra indígenas se repetiu em 28 de outubro, quando uma pequena aeronave sobrevoou outra retomada, em Caarapó (MS), despejando agrotóxicos sobre a TI Guyraroká, que aguarda há mais de 15 anos por novas etapas de demarcação pelo governo federal.

“Chamam a gente aqui de (capim-)amargoso, resistente ao veneno, que só se arranca com a enxada. Começou ontem [29 de outubro] o despejo, às 15h, e continuou hoje, às 10h. O cheiro é insuportável, um horror. Infelizmente isso se normalizou… só que, diferente do amargoso, nós somos seres humanos”, disse Erileide Guarani Kaiowá à época do caso em Guyraroká.

Casos do tipo se amontoam no Cone Sul nos últimos anos, visivelmente afetando a integridade física e a saúde mental de comunidades Guarani Kaiowá. “Nossos filhos, filhas, netos e netas são atropelados ‘por acidente’, assassinados pelo veneno que jogam em nós, matam a gente com armas de fogo, incendeiam nossas terras, vasculham nossas vidas… Não consigo nem pensar na língua portuguesa para dizer como é viver isso”, disse outra liderança indígena sob anonimato à Pública.

Um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre a violência no campo nos primeiros seis meses de 2024 reforça a gravidade da situação. Na comparação com o mesmo período de 2023, a CPT aponta um aumento de 9,5 vezes no número de episódios de contaminação por agrotóxicos no Brasil.

“Conciliação forçada” no STF, diz Apib

Desde a posse do presidente Lula, líderes Guarani Kaiowá trabalham pela volta das demarcações de terras, interrompidas nos governos Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022). Em 2024, uma nova dificuldade se impôs: a criação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de uma “mesa de conciliação” para debater – e deliberar – sobre a tese do “marco temporal” para a demarcação de territórios.

“A gente só pede que o governo cumpra a Constituição, que demarque as nossas terras pra gente cuidar das nossas roças, cuidar bem da nossa terra”, disse outra liderança indígena, que também pediu para não ser identificada.

Como relatado pelo colunista da Pública Rubens Valente, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal entidade de representação indígena do país, se retirou da mesa criada pelo STF, denunciando uma “conciliação forçada” por trás da iniciativa. 

A “mesa de conciliação” do STF tem, entre os integrantes, tanto representantes do governo Lula quanto ruralistas indicados pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD). Segundo divulgado pela Apib em agosto, a iniciativa estaria “sendo conduzida com premissas equivocadas, desinformadas e pouco aberta a um verdadeiro diálogo intercultural”.

Edição:
Júlia Barbosa/CPT
Júlia Barbosa/CPT
Júlia Barbosa/CPT
Júlia Barbosa/CPT
Caio de Freitas/Agência Pública
Reprodução STF
Reprodução STF

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