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Trabalhadores denunciam mortes, agressões e ameaças. Volkswagen rejeitou acordo, e indenização chegaria a R$ 165 milhões

Reportagem
31 de janeiro de 2025
04:00

Pela primeira vez, a cumplicidade entre empresas e a ditadura civil-militar de 1964 será objeto de análise da Justiça. O Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou em dezembro de 2024 uma ação civil pública contra a Volkswagen do Brasil por trabalho escravo e tráfico de pessoas, após ter tentado, por mais de um ano, um acordo com a montadora. O pedido é para que a empresa seja condenada a assumir a responsabilidade pelos fatos e a pagar uma indenização de R$ 165 milhões. 

O caso tramita na Vara do Trabalho de Redenção, no sul do Pará, a 190 km de Santana do Araguaia (PA), onde era localizada a fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida como Fazenda Volkswagen. O imóvel ostentava em suas porteiras a logomarca da companhia, que manteve o empreendimento entre 1974 e 1986. A aventura da montadora no mercado madeireiro e agropecuário foi bancada com subsídios da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e financiada pelo Banco da Amazônia S.A. (Basa).

Por que isso importa?

  • Apenas 60 anos após o início da ditadura, parte dos responsáveis passa a responder por abusos no período de repressão militar. Responsabilizar empresas milionárias ainda em operação no país que se beneficiaram do regime poderia acelerar o processo de compensação histórica às vítimas desse período.

Até o momento, além da Volks, 14 empresas são investigadas pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo MPT por cumplicidade com a ditadura. Apenas um caso, que trata das violações de direitos humanos na fábrica da montadora, em São Bernardo do Campo (SP), resultou em um acordo que prevê o pagamento de R$ 36 milhões em indenizações pela multinacional alemã. Parte desse dinheiro financiou pesquisas coordenadas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Caaf/Unifesp) sobre dez empresas. 

Dos casos em andamento, os ministérios públicos já se reuniram com parte das companhias investigadas, caso do porto de Santos, mas ainda não houve anúncio de novos acordos. A Agência Pública contou o que foi apurado pelos pesquisadores na série Empresas Cúmplices da Ditadura

A Fazenda Volkswagen tinha 139 mil hectares, uma área que corresponde a 90% do município de São Paulo e 15% maior que toda a cidade do Rio de Janeiro. Oficialmente, tinha 300 empregados, entre área administrativa e vaqueiros, que contavam com posto de saúde e até um clube. A lida muito mais pesada, porém, que incluía a derrubada da vegetação nativa para a transformação em pastagens, era realizada por trabalhadores sem vínculo com a Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC), subsidiária criada pela montadora para administrar seu braço madeireiro-agropecuário, cujo diretor-presidente era o alemão Wolfgang Sauer, que presidiu a Volks do Brasil entre 1973 e 1989.

Segundo a ação do MPT, esses trabalhadores sem vínculo, muitos deles menores de 18 anos, eram traficados por “gatos” (recrutadores de mão de obra, que trabalhavam diretamente para a montadora) em vários estados, com promessas de ganhos acima do mercado, e eram levados na caçamba de caminhonetes ou caminhões paus de arara até a fazenda, onde eram vendidos. 

Os procuradores concluíram que a Volkswagen “praticou condutas que configuram exploração de trabalho escravo e tráfico de pessoas” e que a multinacional, que controlava a “subsidiária extinta, é responsável pelas violações generalizadas e sistemáticas aos direitos humanos de centenas de trabalhadores rurais que prestaram serviços de roçagem e derrubada na Fazenda Vale do Rio Cristalino”. 

Escravidão, comunismo e igreja na floresta

A investigação que gerou a ação foi aberta em 2019 e baseia-se em depoimentos de pelo menos 42 vítimas e 11 testemunhas, a maioria colhida na época dos fatos pelo professor doutor Ricardo Rezende Figueira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que foi padre durante 20 anos na Diocese de Conceição do Araguaia (PA) e integrava a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O MPT entrevistou parte dessas pessoas e um “gato”, que admitiu o tráfico de pessoas e a escravidão por dívida.

Esses intermediários mantinham “cantinas”, empórios dentro das fazendas, onde os trabalhadores compravam comida, ferramentas, calçados e lonas para montar as barracas nas frentes de trabalho. Os valores dos produtos seriam maiores que os praticados no mercado. Os trabalhadores relatam também que peões doentes eram tratados no local. Em geral, recebiam injeções ou “azulão” (soro com azul de metileno) na veia e depois eram cobrados pelo serviço. 

Após o início das tarefas, além de dormirem em barracas sem vedação, junto a animais selvagens e peçonhentos, sem atendimento médico adequado, e lidando com o risco de malária, endêmica, os trabalhadores recebiam remuneração abaixo do combinado no recrutamento. A situação impedia que deixassem o local, pois, ao pedirem para ir embora, eram informados de que deviam na cantina mais do que o saldo a receber. 

Apesar do forte esquema de vigilância com capatazes armados contratados e a vigilância institucional da companhia, alguns trabalhadores conseguiam fugir. Enfrentavam quilômetros de floresta e pediam caronas nas poucas estradas que havia na época. Algumas das vítimas encontraram o padre Ricardo, que ouvia seus relatos, anotava tudo e depois levava as vítimas ao cartório ou à polícia para oficializar os depoimentos. 

“Nós éramos vistos pelo governo como comunistas, terroristas, a Igreja era malvista. Como não gozávamos de crédito por parte do Estado, algumas vezes nós levávamos os trabalhadores para prestar depoimento em cartório ou na própria polícia”, afirmou Figueira. 

“Eu tinha muita vontade de chorar”

Os depoimentos apontam quatro casos de morte por omissão de socorro (dois trabalhadores por malária sem tratamento adequado e dois bebês), quatro casos de trabalhadores executados para dar exemplo aos demais, sete casos de agressões, um estupro e um desaparecimento. 

Raimundo Batista de Souza conta que foi traficado para a Fazenda Volkswagen aos 14 anos, em 1984, junto com os irmãos Raul e Juldemar e outros jovens de Porto Nacional (TO). “Fomos de pau de arara num caminhão para Santana do Araguaia. Depois de uns dias de trabalho, o gato deu a informação que eu e meus irmãos iríamos ser separados. Entendo que eles queriam evitar que os trabalhadores que se conheciam se unissem para reclamar das más condições”, lembra.

“Eu tinha muita vontade de chorar; lembrava de casa, com saudade dos pais, as notícias de Raul zeraram, e eu pensava coisa ruim. No trabalho, adoeci e consegui chegar na sede da fazenda e me deram o tal azulão na veia, aplicado pelo cantineiro. Ficamos [Raimundo e Juldemar] quase um mês doentes, comendo comida ruim da cantina. Comia pouco e fiquei tão fraco que desmaiei várias vezes. Eu tremia muito”, contou Souza em depoimento ao MPT.

“Juldemar nunca se recuperou plenamente. Ele voltou a trabalhar um tempo, mas piorou muito e foi aposentado e tomava remédios psiquiátricos”, finalizou o homem sobre o irmão, que morreu em junho de 2021. 

História de poucos e com pouco espaço na imprensa

Aos poucos, os relatos dos trabalhadores que fugiam chegavam à imprensa local, depois, com o tempo, começaram a chegar à imprensa nacional. Quando o caso estourou na imprensa alemã é que algumas investigações começaram a avançar no Brasil, tocadas por parlamentares de oposição à ditadura.

Em 1983, uma comissão mista de parlamentares, jornalistas, sindicalistas e o padre estiveram na fazenda a convite do presidente da Volks, Wolfgang Sauer, que fez uma visita ao governador do Pará na época, Jader Barbalho, que havia mandado a Polícia Civil do Pará investigar o caso. 

Apesar da visita a convite e do evidente medo dos trabalhadores de contarem algo mais comprometedor, os integrantes da comitiva entrevistaram dois gatos que atuavam na fazenda. Um deles, Francisco Andrade Chagas, o Chicô, admitiu que ele e seu irmão, que administrava uma cantina, andavam armados e que os peões que tentavam fugir eram amarrados e entregues à polícia, onde recebiam “sermões”. 

Os gatos ouvidos pela comitiva se referiam aos trabalhadores como “vagabundos”. Questionado sobre a violência utilizada para impedir que trabalhadores deixassem a fazenda, a comitiva registrou que o então diretor da fazenda Friedrich Brügger, designado por Sauer para acompanhar as oitivas, disse: “Não é problema meu”. Um relatório com sugestões para coibir a violência foi elaborado, mas não há registro de que tenham sido colocadas em prática.

Entre os mais de 50 depoimentos, há apenas dois casos de trabalhadores que conseguiram sair pela porta da frente. Um é o de um grupo de cinco trabalhadores, recrutados ainda adolescentes, de Luciara (MT), que inventaram ter se comprometido com um coronel para se alistar no serviço militar. “O gato ficou assustado, pois não queria ter um problema com o Exército”, Figueira contou à Pública.  

O segundo caso é contado pelo trabalhador João Aires da Silva, traficado para a Fazenda Volkswagen aos 17 anos. Segundo ele, um colega, Divino Ferreira Matos, conseguiu licença para buscar tratamento para o filho recém-nascido. A mulher, cujo nome não é mencionado, deu à luz sem ajuda médica em um brejo. A criança, conta Aires, estava doente. O bebê acabou não resistindo. Diante da oportunidade de deixar a fazenda, o casal acabou deixando tudo para trás, inclusive um filho de 6 anos. A ação não conta se Divino, a esposa e o filho se reencontraram. 

Ditadura é deixada de lado, mas acordo segue longe de concretizado

Apesar da intrínseca relação entre a Volks e a ditadura e o fato de que a fazenda só existiu graças ao apoio do governo militar, o MPT optou por não abordar diretamente o relacionamento da montadora com a ditadura nessa ação. 

“Nesse caso, como não teve uma participação direta da ditadura em episódios de repressão e perseguição de trabalhadores, a gente fez uma opção de não tratar sob o enfoque da ditadura, até para evitar qualquer tipo de questionamento eventual por parte da Volks de que esse assunto já é página virada em razão do TAC [Termo de Ajustamento de Conduta]”, afirmou o procurador do trabalho Rafael Garcia Rodrigues, um dos autores da ação. 

A Pública consultou tanto o TAC assinado em 2020 quanto o relatório final da investigação sobre a Volks. Nenhum dos documentos versa sobre qualquer atividade da companhia ou subsidiárias da montadora na Amazônia. 

A ação do MPT foi ajuizada em 5 de dezembro de 2024, e o juiz Otavio Bruno da Silva Ferreira, da Vara do Trabalho de Redenção, designou audiência de tentativa de conciliação online para o dia 24 de janeiro e atendeu a pedido do órgão para tramitação prioritária do processo. A Volkswagen pediu o adiamento da audiência de conciliação, o que foi negado pelo juiz. Em 16 de dezembro, a Volks solicitou que a Justiça do Trabalho do Pará seja declarada incompetente para atuar no caso. O juiz cancelou a audiência de conciliação e pediu a manifestação do MPT. 

O MPT afirma ter se reunido cinco vezes com a montadora entre 2022 e 2023 em busca de uma conciliação. Em março de 2023, a Volks anunciou sua saída das negociações. Segundo a ação, a montadora nega responsabilidade no que foi apurado pelo MPT e sustenta que, ainda que os fatos fossem verdadeiros, não estariam abrangidos pelo TAC celebrado em 2020 com MPF, Ministério Público de São Paulo (MPSP) e MPT. “O acordo diz respeito às perseguições políticas e ideológicas a ex-trabalhadores da empresa durante a ditadura militar, o que não se confunde com o objeto da presente demanda”, afirma o MPT. 

Subsidiária já condenada e o silêncio da Volkswagen

Em 1984, quatro dos cinco trabalhadores de Luciara que fugiram da fazenda com o argumento de que iriam prestar serviço militar ajuizaram uma ação trabalhista contra a CVRC. A ação reconheceu o vínculo empregatício. 

Em sua defesa, a CVRC juntou contrato entre a fazenda e a empresa Andrade Desmatamento, do gato Chicô, com o intuito de mostrar que os trabalhadores eram terceirizados, mas, para o MPT, o documento serviu “para demonstrar o controle da Fazenda Volkswagen sobre o esquema premeditado para tráfico de pessoas e exploração de trabalho escravo”.

A Justiça do Trabalho condenou a CVRC ao pagamento de verbas trabalhistas e rescisórias, como salários retidos em dobro, horas extras, repouso semanal remunerado, férias, décimo terceiro, aviso prévio e que tudo fosse anotado na carteira de trabalho dos autores da ação. 

Em 1986, a fazenda foi vendida ao grupo Matsubara, que herdou as dívidas da companhia e propôs aos quatro trabalhadores que recebessem duas máquinas do espólio da CVRC, mas eles rejeitaram o acordo, pois as máquinas já eram sucata. Em 1995, foi definido que cada um dos autores receberia R$ 1.049,65 (o equivalente hoje a R$ 11,7 mil), e a fazenda foi à penhora. 

A Pública procurou a Volkswagen para falar sobre a ação do MPT, mas, até a publicação da reportagem, a empresa não respondeu. Este espaço será atualizado tão logo haja manifestação.

Esta reportagem pertence ao especial As empresas cúmplices da ditadura militar que revela empresas que teriam algum grau de participação no aparato de repressão que perseguiu, prendeu, torturou e assassinou opositores durante o regime. A cobertura completa está no site do projeto.

Reprodução/Revista Veja
Fernando Bizerra/Agência Senado
Divulgação/Volkswagen

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