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Partido que tem entre seus políticos uma neta de ministro de Hitler cresceu e ficou em segundo lugar no Parlamento

Reportagem
23 de fevereiro de 2025
17:54

De cima de um pequeno palanque em frente a um shopping center no subúrbio de Berlim, uma candidata do partido de extrema direita alemão AfD (Alternativa para a Alemanha) agarrava o microfone para tentar disputar a atenção dos passantes. Sua voz, contudo, era abafada por gritos de “Toda Berlin odeia a Afd”, “Tchau, nazis”, apitos e batucadas que vinham do outro lado da rua. A polícia fazia um cordão de separação entre audiência do comício – majoritariamente homens brancos segurando bandeiras da Alemanha – e um grupo grande e diverso de manifestantes, que seguravam placas e bandeiras antifascistas. Eram duas da tarde do dia 22 de fevereiro, um dia antes das mais emblemática eleições do país desde a reunificação.

Agora, com os resultados prévios apontando para uma vitória do partido conservador CDU com 29% dos votos e, a depender das coalizões, Friedrich Merz como novo chanceler, a política e a economia do país devem tomar um rumo totalmente diferente. Em um debate entre os candidatos dos partidos mais votados ocorrido algumas horas depois das eleições, no entanto, Merz reafirmou que não vai se associar à AfD, ainda que o partido tenha ficado em segundo lugar, com quase 20% dos votos.

A disputa veio em um momento conturbado: a Alemanha enfrenta seu segundo ano de recessão econômica, decide sobre continuar a apoiar militarmente a Ucrânia na resistência contra a Rússia ou não, e o país vive o fim da era de políticas públicas implementadas por Angela Merkel, que até então vinham sendo mantidas pelo atual chanceler Olaf Scholz. A mulher ao microfone do palanque era Beatrix von Storch, parte da ala conservadora da AfD, neta do ministro de finanças de Hitler e amiga da família Bolsonaro. Beatrix esteve no Brasil em 2021, quando se reuniu com o então presidente Jair Bolsonaro (PL), seu filho Eduardo (PL-SP) e com a deputada federal Bia Kicis (PL-RJ), segundo ela para criar uma internacional conservadora e ganhar aliados para o partido.

Há quatro anos, a AfD vivia um momento diferente. Mais… Inglório. O partido aparecia muito raramente na mídia internacional, quase sempre relacionado a um escândalo, uma fala de conotação neonazista, um encontro com grupos radicais, ou apenas como uma lembrança incômoda de que apesar dos esforços das instituições democráticas alemãs em rememorar seu passado nazista e o holocausto com homenagens, museus e monumentos para que não se repita – “Nie wieder” ou “nunca mais” se tornou um lema para o pais. É desde 2021 inclusive, que a AfD está sob vigilância do Departamento Federal de Proteção da Constituição, por suspeita de extremismo e risco à democracia.

Mas em 2025, tudo mudou. Storch segura seu microfone destemida. Pela primeira vez desde a fundação em 2013, seu partido teve pouco mais de 20% dos votos e se torna a segunda maior força no Bundestag. Enquanto pedia que a audiência não desse ouvidos aos “malucos lá atrás” — se referindo aos manifestantes antifascistas — ela lembrou que a AfD tem o apoio de Elon Musk e diálogo aberto com o governo Trump. Disse que o país pode ser grande novamente, assim como os EUA. E comemorou o fato de que Alice Weidel, que concorre a chanceler pela AfD, foi a única a se encontrar com o vice-presidente norte americano JD Vance quando ele esteve recentemente em Munique. “Somos o único partido da Alemanha que não está isolado internacionalmente. Muito obrigada, vice-presidente”, disse sob aplausos.

Storch defende endurecer as políticas de imigração e finalizou seu discurso afirmando que “as pessoas estão cansadas de serem confrontadas com vespeiros o tempo todo. Só queremos voltar ao normal. Queremos proteger nossas fronteiras. Queremos ter uma economia funcionando. Queremos que ‘eles’ deixem nossas crianças em paz, com todas as suas bobagens de gênero, trans e woke”. Detalhe: Alice Weidel, a candidata a chanceler pela AfD, é casada com uma mulher, mas isso parece não ser um problema para o partido ou para seus eleitores, já que as vezes em que Weidel foi confrontada com esse fato, respondeu que não é queer e não levanta essa bandeira, apenas está casada e tem filhos com uma mulher há muitos anos. Parece ser o suficiente e até uma boa estratégia para tirar o ranço de conservadorismo velho.

É preciso entender também que, diferente da América Latina e dos Estados Unidos que têm sua extrema direita muito calcada no cristianismo e portanto totalmente atrelada às pautas morais, na Alemanha esses discursos anti gênero e anti aborto, por exemplo, ficam em segundo plano. O foco é no nacionalismo exacerbado, em retomar o orgulho da pátria, na “pureza cultural”. E nos culpados por eles pelo aumento da criminalidade, da falta de empregos e das crises econômicas e políticas – os imigrantes e refugiados, sobretudo os vindo de culturas islâmicas.

No fim do comício, uma cena emblemática desse novo tempo: uma senhora em seus 70 anos, confrontou um grupo de meninos que passam segurando placas da AfD. “Que vergonha! Que vergonha!” ela grita sozinha repetidamente. É o passado ainda vivo, que lembra das atrocidades do nazismo, espantado com o futuro sombrio e desmemoriado.

Friedrich Merz, que deve ser novo chanceler da Alemanha
Friedrich Merz, que deve ser novo chanceler da Alemanha

O nazismo pode voltar na Alemanha?

Desde que Elon Musk começou a fazer campanha para a AfD no ano passado, com participações ao vivo em encontros do partido, lives conversando com a Alice Weidel no X, entrevistas a jornais alemães endossando o apoio e favorecimentos na distribuição de conteúdo do partido em sua rede social, o mundo voltou os olhos para o partido e passou a se perguntar se existe a possibilidade real de que a extrema direita volte ao governo alemão. Mas os alarmes locais já estavam soando há mais tempo. Isso porque, de um partido pequeno, isolado pelos outros no parlamento, investigado pelo serviço de inteligência alemão e renegado mesmo por seus pares da extrema direita europeia, a AfD foi se tornando cada vez mais popular e tem ganho cada vez mais assentos nos parlamentos. Colaborou para isso que o país entrou em recessão econômica e passou por crises políticas que levaram a dissolução do atual governo e a convocação antecipada das eleições.

A gente no Brasil conhece a receita: Insatisfação popular com o governo, o medo que vira ódio, o tal “voto de protesto”, uma boa movimentação nas redes sociais, o louvor a uma ideia utópica de passado, discursos violentos endossados pela “liberdade de expressão”, a designação de um grande inimigo e a imagem de outsider. Assim se ferve um caldo neofascista.

Mas existem importantes diferenças entre o regime político alemão e o brasileiro que entram nessa conta.

A Alemanha é uma democracia parlamentar. Os eleitores maiores de 18 anos têm dois votos: um para um candidato de seu distrito e um para um partido político. O primeiro voto determina quem será o representante de cada distrito eleitoral. O segundo define quantos assentos cada partido receberá no Bundestag (parlamento) com base na sua porcentagem de votos. É um sistema híbrido, que combina a representação proporcional com mandatos diretos. Já o chanceler é eleito de forma indireta pelo Bundestag e precisa de maioria absoluta para assumir o cargo. Sem essa maioria, os partidos precisam fazer coalizões, que é o que geralmente acontece. O ex-chanceler Olaf Scholz do partido SPD, por exemplo, tinha coalizão com os Verdes e os Liberais do FDP, mas essa aliança se desfez em novembro de 2024 após disputas internas, incluindo uma crise no orçamento do governo. Foi o fracasso dessa coalizão que levou à convocação das eleições antecipadas, que ocorreram sete meses antes do previsto.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, há ainda um acordo entre os principais partidos políticos da Alemanha de que a extrema direita jamais deve voltar ao poder. Por isso, se criou o chamado “Cordão Sanitário”, que isola partidos extremistas no parlamento. Essa estrutura política foi pensada justamente para impedir ou ao menos dificultar a ascensão de um novo Hitler. E de fato, desde a criação da AfD em 2013, nenhum outro partido havia feito qualquer tipo de coalizão ou parceria com ela. Até agora.

No dia 27 de janeiro, exatamente o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, o candidato do partido conservador CDU que provavelmente será o próximo novo chanceler, Friedrich Merz, aceitou o apoio da AfD em uma proposição no parlamento sobre endurecer políticas de imigração e asilo. O ato, que aconteceu exatamente no 80º aniversário da libertação das pessoas de Auschwitz, foi visto como uma brecha no cordão sanitário e gerou uma onda de protestos pelo país, críticas por parte dos outros partidos políticos e da ex-chanceler Angela Merkel, que quebrou um longo período de silêncio para condenar a atitude do parlamentar. Merz argumentou que apenas aceitou aquele apoio específico mas que nunca fez e nunca fará qualquer tipo de parceria com o partido extremista.

A questão é que, segundo o resultado provisório das novas eleições, a AfD tem agora cerca de 140 assentos no parlamento, atrás apenas do partido vencedor, que ficou com 196. O Social Democrata tem 113, os Verdes obtiveram 84, o partido de esquerda Die Linke surpreendeu os pessimistas e aumentou significativamente o número de cadeiras para 61. E mais: foi o partido mais votado entre jovens de 18 a 24 anos, segundo dados prévios divulgados por institutos de pesquisa alemães. Com a nova configuração, fica cada vez mais difícil para os outros partidos manterem o cordão sanitário. E analistas políticos alemães têm apontado que a popularidade da AfD tem puxado a régua política para a direita, sobretudo com relação ao endurecimento das políticas de imigração, na tentativa de abocanhar parte do eleitorado extremista.

Durante a última campanha eleitoral, a AfD distribuiu panfletos que imitavam passagens aéreas só de ida, “De: Alemanha — Para: País de origem”. Na parte do passageiro se lia “Imigrantes ilegais”. A data de partida era o dia das eleições federais, 23 de fevereiro. Na parte de baixo estava escrito “Apenas a remigração pode salvar a Alemanha”.

No entanto, em um encontro de conservadores entre Alemanha, Hungria e Estados Unidos que aconteceu em Berlim em outubro do ano passado e no qual me infiltrei, o Parceria Transatlântica em uma Nova Era (Transatlantic Partnership in a New Era), foi uma deputada da CDU de Merz, Mechthilde Wittmann, que afirmou (sem apresentar dados, porque eles não existem) que o aumento da violência de gênero na Alemanha está exclusivamente relacionado ao aumento da imigração. Disse que os imigrantes da Ucrânia são diferentes, mas “outros”, se referindo aos de origem islâmica, mesmo depois de três gerações ainda não se integram, e usam mesquitas para arquitetar planos terroristas.

De isolados a “rock stars”

Uma reportagem da CNN publicada no início deste ano, relata a longa fila de jovens que esperavam em uma noite chuvosa em Suhl, na antiga Alemanha Oriental, para ouvir um ídolo improvável: Björn Höcke, uma das figuras mais extremistas da AfD. Ele é conhecido por usar terminologias nazistas em seus discursos, participar de marchas neonazistas e dar declarações como a de que “Essas políticas estúpidas de lidar com o passado nos paralisam — não precisamos de nada mais do que uma reversão de 180 graus na política da memória.”

Perguntados sobre por que apoiavam a AfD, os jovens responderam à CNN com o lema do partido: “A migração é a mãe de todas as crises. Temos muitos imigrantes ilegais neste país que não estão se comportando. E acho que muitos dos problemas que temos hoje também são causados pela imigração em massa descontrolada”. Se tornou comum durante os comícios da AfD ver jovens cantando a plenos pulmões que querem “deportar aos milhões”.

Já Höcke disse à reportagem: “Se eles veem um pouco de estrela do rock em mim, tudo bem, porque os jovens precisam de ídolos assim”.

A AfD foi criada em 2013, durante a crise financeira na Europa, especialmente a crise do euro. Suas raízes estão nos protestos eurocéticos, quando havia um grande receio de que a moeda comum, o euro, falhasse. Naquele período, tanto no espectro conservador quanto no liberal da Alemanha, representado pelos partidos FDP e CDU, havia temores de que a Alemanha perdesse sua vantagem competitiva por causa do euro.

Foi nesse contexto que começou a surgir uma nova força política no país, algo que antes não existia. Ela se formou nas margens desses partidos tradicionais. Embora o FDP e a CDU continuassem a existir, alguns de seus membros, que defendiam uma política fiscal alemã mais rígida e a adoção de medidas de austeridade para os países do sul da Europa, acabaram deixando esses partidos e fundaram a AfD.

Esse movimento foi fortemente influenciado por economistas neoliberais. O primeiro presidente da AfD, Bernd Lücke, com sua experiência como economista, defendia a ideia de que seria melhor para os países do sul da Europa saírem da zona do euro. O argumento era de que os países do sul da Europa eram “fracos”, enquanto a Alemanha era “forte”.

Por trás da questão do euro, como símbolo do que estava dando errado na Alemanha na época, a AfD conseguiu inserir sua própria agenda política. Com o tempo, o partido foi se radicalizando e se tornando cada vez mais xenófobo.

Como me disse em entrevista o Dr. David Bebnowski, historiador e cientista social do Amerika-Institut da LMU de Munique que escreveu um livro sobre a AfD, em termos da ideologia do partido, o que se vê agora é uma espécie de mistura presentes em outras partes da nova direita: Não há uma ideia uniforme. “Acho que a única coisa que talvez mantenha o partido unido é uma autoimagem nacionalista e racista. Portanto, o medo da imigração. Mas, por trás disso, há diferentes agendas. Há integrantes muito neoliberais e orientados para o mercado, como os libertários, como a Beatrix von Storch, que também é bastante nacionalista e cristã evangélica radical e Alice Weidel. E temos pessoas como Björn Höcke, que é realmente um fascista. Em última análise, eles são unidos por algo que podemos caracterizar como o que Donald Trump diria, ‘make America great again’, o ‘make Germany great again’, com enormes conotações nacionalistas e, muitas vezes, racistas”.

Alice Weidel segue a cartilha dos líderes de extrema direita. A economista de 46 anos, lésbica, casada com uma imigrante, ocupa a liderança da AfD desde 2022 mas é a líder parlamentar do partido no Bundestag desde 2017. Para além de suas propostas de deportar aos milhões, a AfD defende a manutenção do “freio da dívida”, ao mesmo tempo em que quer reduzir impostos. Em termos de política externa, o Alternativa para a Alemanha é próximo de Vladimir Putin, defende o fim das sanções contra Moscou e um corte radical no apoio militar a Kiev. O partido também advoga a retirada da Alemanha da União Europeia e que o país deve abandonar os acordos internacionais subscritos a respeito do clima.

Sobre o apoio de Elon Musk, a opinião dos alemães é mais cética. Musk não é exatamente uma figura popular no país. O bilionário tem uma gigantesca fábrica da Tesla de 3 quilômetros quadrados em Berlim, que frequentemente é alvo de protestos e disputas trabalhistas. Desde a campanha de Musk em favor da AfD, as vendas da Tesla despencaram 60% no país.

Nesse sentido, o maior ganho da AfD com o apoio dos Estados Unidos é sua internacionalização e um lugar à mesa da extrema direita mainstream. Em três anos me infiltrando em congressos e eventos de extrema direita na Europa, eu nunca vi um membro do partido participar de uma mesa de conversa, dar uma palestra ou sequer ser mencionado. Sempre houve um constrangimento, uma vergonha por parte dos ultraconservadores europeus em ter sua imagem relacionada a um partido tão radical. Em breve saberemos se isso vai mudar com o apoio trumpista.

Afinal, os tempos são outros. Políticos, influenciadores e autoridades se sentem à vontade para fazer saudações nazistas para o mundo todo ver. A tentativa de revisionismo histórico e da naturalização do fascismo é literalmente o Zeitgeist (espírito do tempo, em alemão).

Por tudo isso, essas eleições são cruciais para os próximos passos não apenas da Alemanha, ou da União Europeia mas da extrema direita no mundo todo. O que acontece em Berlim não fica em Berlim, como a história já mostrou.

Edição:
Reprodução X/Twitter Friedrich Merz/Tobias Koch

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